sábado, 9 de julho de 2022

Pensamento do Dia

 


Rico que se acha classe média tem de pagar mais imposto

Um estudo publicado no mês passado na França tentou estabelecer o limiar acima do qual alguém deve ser considerado rico no país. De acordo com o Observatório das Desigualdades, é rico quem ganha o dobro da mediana dos rendimentos e está, assim, no extrato dos 7% mais ricos: aqueles com rendimento líquido de cerca de R$ 20 mil mensais, se solteiro, ou de R$ 30 mil mensais, se viver em casal.

Uma reportagem da Rádio França Internacional em português divulgou o estudo. Nos comentários nas mídias sociais, descobrimos que muitos brasileiros que se consideram de classe média e têm salários mensais desse valor ou um pouco acima se surpreenderam ao saber que seriam considerados ricos num dos países mais ricos do mundo.

Como isso é possível? A explicação é dupla: na França, por causa das políticas de combate à desigualdade, os ricos são menos ricos. No Brasil, quem tem rendimento elevado se sentem menos rico por ter de adquirir serviços privados.


Quem ganha R$ 30 mil no Brasil não está entre os 7% mais ricos, mas entre o 1% mais rico. E muitos desses brasileiros não se sentem ricos, mas de “classe média”, apenas pagando as contas do mês, com sobras que não consideram folgadas.

Um casal que ganha R$ 30 mil pode gastar a maior parte disso com contas mensais como aluguel ou prestação de apartamento em bairro nobre, prestação de carro “confortável”, boas escolas para os filhos, um plano de saúde que cubra os melhores hospitais e uma rotina de viajar e ir a restaurantes. A dinâmica de ter pouco patrimônio e contas mensais que consomem a maior parte da renda não os faz se sentirem ricos.

Mas, objetivamente, num país em que 90% dos trabalhadores têm renda inferior a R$ 3.500 reais, quem ganha R$ 20 mil ou R$ 30 mil é rico — muito rico. É essa profunda diferença entre a realidade objetiva, capturada pelas estatísticas, e a avaliação subjetiva das pessoas que trava o enfrentamento político da desigualdade social.

Os brasileiros ricos não se sentem no topo da pirâmide. Sempre acham que os acima deles é que têm de se sacrificar. Só existe um jeito de reduzir uma desigualdade grande como a brasileira: os ricos e a classe média têm de pagar mais imposto, e o Estado tem de oferecer programas sociais abrangentes como escolas, hospitais e assistência social para redistribuir os recursos arrecadados.

Para os brasileiros que ganham R$ 10 mil, R$ 20 mil ou R$ 30 mil, quem tem de pagar esses impostos elevados não são eles, mas os que ganham R$ 50 mil ou R$ 100 mil — e estes, claro, querem empurrar a conta apenas para os multimilionários e bilionários.

Como os ricos e as pessoas que se veem como “classe média” são na verdade muito influentes politicamente, travam o debate do combate à desigualdade. Em oito anos de governos do PSDB, que reivindica sensibilidade social, e 13 do PT, que se diz de esquerda, esse problema fundamental não foi enfrentado. A construção de um sistema tributário progressivo segue sem destaque na agenda política há décadas.

Não é agradável pagar mais imposto. É um ônus que ninguém quer. Mas uma sociedade menos desigual é seguramente um melhor lugar para viver, como sabem os brasileiros que viajam à Europa.

Existe uma troca, um trade off, entre perder renda pagando mais imposto e o benefício de desfrutar uma vida tranquila numa sociedade mais justa. Hoje, além dos impostos, essa “classe média” paga escola particular, saúde particular e segurança particular nos condomínios e nos serviços. Os impostos necessários para reduzir a desigualdade e oferecer serviços públicos decentes a todos são menos do que ela gasta com esses serviços privados.

É melhor pagar mais imposto e ter os filhos estudando numa boa escola pública, como as de Portugal ou Espanha, do que temer o futuro e ter de matriculá-los numa escola privada de elite, murada e segregada, em Higienópolis ou no Leblon.

Já passou da hora de o Brasil fazer um pacto para um país mais justo. Faz parte desse pacto, é claro, que o Estado gaste melhor o dinheiro que arrecada e que eliminemos os privilégios vergonhosos que ainda existem nele. Os ricos incontestáveis e os que pertencem a essa “classe média” —entre eles eu e você, leitor do jornal —resistiremos um pouco e espernearemos, porque é muito ruim ter de pagar imposto e perder renda. Mas, se o pacto for bem feito, o resultado valerá a pena.

É pau, é PEC, é o fim do caminho

O Brasil está na beirola do abismo. Até aí, tudo bem. Mas, às vezes, nosso país, abençoado por Deus e bonito por natureza, exagera. Na semana passada, o Senado aprovou a PEC kamikaze. Os kamikazes, pra quem não sabe, eram os pilotos suicidas do Japão que, na Segunda Guerra Mundial, atiravam seus aviões em cima dos navios inimigos repetindo o lendário grito de guerra “Toba,Toba,Toba!”. Uma metáfora perfeita para Jair BolsoNero, que, apesar de não saber o que quer dizer metáfora, prefere tacar fogo em tudo que vê pela frente mesmo sabendo que vai se queimar todo. O “pobrema” é que vaso sanitário ruim não quebra, e o brasileiro vai ter que aguentar a desadministração bolsonárquica até a próxima eleição, quando será substituído por algo igual ou semelhante.

Alheios a tudo e a todos, os senadores também não se emendam e resolveram, com uma canetada só, fazer um PIX de 50 bilhões para reeleger o presidente. Os da situação e os da oposição também, porque, acima das suas ideologias, os parlamentares só têm um interesse: o próprio interesse. E não interessa o que os outros vão dizer. O IBAMA deveria verificar urgentemente se a madeira utilizada na cara de pau dos senadores e deputados não veio ilegalmente da Amazônia. O que está por trás dessa manobra ilícita e pornográfica com o dinheiro do contribuinte desempregado? Segundo minhas fontes, o objetivo do Senado é decretar o estado de emergência até dezembro. Pelo que eu sei, o Brasil está em estado de emergência desde que foi descoberto e isso nunca foi motivo para se declarar calamidade pública. Não temos terremoto, não temos maremoto mas, em compensação, vocês vão ver o povo que eu vou eleger pro Congresso.

Por falar em candidatos, aqui no Rio de Janeiro, dois candidatos a senador (André Miliciano e Alessando Molão) estão disputando a vaga pra ver quem mais puxa o saco do Lula. Isso não deveria ser um problema, porque o escroto do Lula tem duas bolas, uma para cada candidato se dependurar. Pelo menos, fora do Brasil, as coisas também estão indo de péssimo a pior. Até na civilizada Inglaterra existem políticos medíocres, que só parecem mais inteligentes que os nossos, porque falam inglês. É o caso do Boris Johnson, que resolveu renunciar depois que um site de fofocas revelou que o seu cabeleireiro é o mesmo do Guga Chacra.

Além de tudo, a fome voltou a assolar o país e eu, Agamenon Mendes Pedreira, posso provar que é verdade. Sem ter o que comer desde a pandemia, sou obrigado a viver de restos das nababescas refeições que o Washington Olivetto publica no Globo. Tá ruim pra todo mundo, mas, pra mim, tá pior. No entanto, alguns miseráveis têm mais sorte que eu, como é o caso do mendigo pegador, o único que eu conheço que comeu alguma coisa nos últimos tempos.

Agamenon Mendes Pedreira é sem teto de gastos.

A PEC do jeitinho

Esqueça por um momento que você simpatiza com esse ou aquele lado nas eleições. Sejamos razoáveis: há algo muito estranho, para dizer o mínimo, com um pacote de 41 bilhões de reais em “bondades na veia”, como definiu para mim um colega, a menos de três meses das eleições. Se alguém discordar, sugiro fazer um velho jogo dos filósofos: inverta sua posição. Se você é simpático a Bolsonaro, imagine que Lula estivesse aumentando em 50% o valor do Bolsa Família às vésperas das eleições; se você é lulista, tente pensar se você não iria, lá no fundo, gostar da ideia. Pois é. O ponto é que em uma República não é assim que as coisas devem funcionar.

Há muitas lições nessa “PEC das bondades”, que prefiro chamar de “PEC do jeitinho brasileiro”, votada no Congresso. Não é a primeira vez que nosso mundo político faz isso, mas agora chegamos ao estado da arte. Seu primeiro jeitinho é a definição de estado de emergência. Não há enquadramento para isso no Brasil atual. A economia vem ganhando fôlego, cresceu acima das expectativas no primeiro semestre, o país gerou mais de 1 milhão de empregos formais só neste ano, e temos o maior número de carteiras assinadas da série histórica do Caged. É evidente que continuamos com uma montanha de problemas estruturais. Baixa produtividade, educação pública pífia, Estado caro e ineficiente. Agora temos o drama psicanalítico da Petrobras, a qual queremos que funcione com autonomia, com regras de mercado, e ao mesmo tempo cumpra uma “função social”. A solução, empurramos com a barriga.


O segundo é a regra do teto de gastos. O teto foi criado em 2016 para conter o desastre fiscal que levou à enorme crise de 2015/2016. Gosto de comparar o teto com uma operação bariátrica. Ninguém gosta de fazer, mas de repente é a solução para um problema que fugiu ao controle. O teto foi nossa âncora fiscal. Deu alguma previsibilidade à política fiscal, permitiu a redução sustentável da taxa de juros, até a pandemia, e induziu reformas, como a previdenciária, ainda que tenhamos feito o trabalho pela metade. Mas seu maior ganho é normativo. Como diz Marcos Mendes, “todos queremos estabilidade fiscal, no longo prazo, pois isso garante menos inflação e mais crescimento, mas, no curto prazo, todo mundo tem um bom motivo para gastar um pouco mais”. A missão do teto é esta: conter a tentação do curto prazo. Criar uma lógica objetiva de responsabilidade fiscal, segundo a qual é preciso fazer escolhas. Queremos dar mais 200 reais no Auxílio Brasil? Ok, corte-se do outro lado. Uma visão sustentável do país, capaz de nos proteger de surtos de populismo. Do tipo exato que estamos vivendo agora.

Por fim, demos um jeito na legislação eleitoral. Em 1997, o Congresso aprovou a lei eleitoral, proibindo a criação de benefícios, em ano eleitoral, exatamente para que coisas como essa PEC não acontecessem. Em primeiro lugar, porque há sempre boas razões para que o mundo político seja generoso com o dinheiro do contribuinte. É perfeitamente plausível que o país tenha uma renda mínima mais robusta que os atuais 400 reais. Não há problema, em tese, que ela seja fixada nesse patamar de meio salário mínimo, como sugere a PEC. O único detalhe é que isso jamais deveria ser feito à luz de ganhos eleitorais de curto prazo. É esse o sentido da lei eleitoral, e isso vale para qualquer partido, qualquer candidato e qualquer eleição. O governo teve desde janeiro de 2019 para se preocupar com isso. Não o fez. A oposição, por sua vez, votou unânime a favor da PEC, ao menos no Senado. Disse que era um “estelionato eleitoral”, mas votou com a mesmíssima lógica do governo: a lógica das eleições.

Entra aí o tema fascinante do jeitinho brasileiro. Sua lógica é a seguinte: há um conjunto de normas, que nós mesmos criamos para que as coisas funcionem melhor, mas há a tentação do curto prazo. “Sei que eu estou fora do prazo”, diz o cidadão no guichê da repartição, ou “sei que bebi um pouco além da conta”, diz o motorista na blitz da Lei Seca, “mas você tem como dar um jeito?”. Há quem veja isso como traço positivo de nossa personalidade. Da nossa capacidade de improvisar e resolver problemas. Já há quem diga que tudo vem da nossa recusa da norma abstrata. Da recusa da igualdade de todos, como “indivíduos”, em nome da “pessoa”, em geral quem tem poder, como sugeriu Roberto DaMatta. A recusa dos rigores do mundo das regras que valem para todos, base do sucesso das sociedades liberais avançadas. Foi esse o toque de Sérgio Buarque em seu Raízes do Brasil. A “cordialidade”, típica do nosso caráter, era a antessala do jeitinho. Da capacidade de dar um drible e resolver tudo no plano das relações pessoais. Nessa PEC tem de tudo um pouco. A ideia da norma é que vale, mas se o governo tem maioria, e a oposição não tem coragem, então não vale tanto assim; o apelo ao sentimento, sobre “esses milhões de pessoas que estão precisando”; a ideia autoindulgente de que “é só desta vez”, que ninguém é contra nenhuma regra, mas que é “preciso ter sensibilidade”.

Alguém poderia perguntar: mas tinha alguma alternativa? O truque de uma medida como essa é sempre passar a ideia de que há uma “urgência”, e que, mesmo com o nariz torcido, é preciso votar. A resposta é simples: é claro que há alternativas. A primeira delas é evidente: criar despesa de um lado, reduzindo-se do outro. Nos últimos meses, o Congresso engavetou a reforma administrativa, congelou a PEC dos penduricalhos, que daria um fim aos supersalários (acima do teto constitucional), aprovou um fundão eleitoral de 5 bilhões de reais, 16 bilhões para as emendas de relator e não tomou nenhuma medida para cortar despesa na estrutura da máquina estatal.

São escolhas. Não acho que o Brasil viva um momento de terra arrasada. Reformas importantes foram feitas nos últimos anos. Da Lei das Estatais, que hoje reforça a autonomia de gestão de uma empresa como a Petrobras, até a lei das agências reguladoras, de 2019, que permite ao presidente da Anvisa peitar o presidente da República. Da reforma trabalhista, que modernizou, ainda que timidamente, nossas relações de trabalho, passando pelo marco do saneamento, que vem induzindo investimentos em um setor-chave para a redução da miséria no país, até a autonomia do Banco Central, que permite hoje uma política técnica e sem interferência política no combate à inflação. Cito essas coisas para dizer que é um brutal erro dar marcha a ré. Escorregar nos velhos vícios, como vemos nessa PEC. E isso vale para qualquer governo, e qualquer oposição.

Um grande país se faz com fidelidade a ideias e visões de longo prazo, e requer alguma frieza diante das paixões da hora. Reconheço não ser um bom momento para dizer essas coisas, a menos de três meses de uma eleição presidencial. Mas no fundo é a lição que, mais dia, menos dia, teremos de aprender.