domingo, 22 de maio de 2022
Confronto e erosão como método
Bolsonaro pratica uma concepção primitiva de política, baseada no confronto, na intimidação dos adversários e no arbítrio, em detrimento de uma política fundada na competição eleitoral, no debate público e na legalidade.
Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, que marcou a ascensão de regimes totalitários nos anos 1930, repaginada pela extrema direita norte-americana nas últimas décadas —com sua idolatria fálica às armas, à supremacia racial e a ideias liberticidas—, foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo.
Para os praticantes dessa concepção pervertida de política, a democracia constitucional —que pacifica e institucionaliza a competição política e impõe limites jurídicos àqueles que exercem poder— aparece como um entrave inaceitável ao poder soberano devendo, portanto, ser suprimido. A verdadeira soberania, de acordo com Schmitt, não pode ser confinada pela Constituição, pelo império do direito. Ela somente se expressa no contexto do estado de exceção.
Afirmar que se trata de um modelo primitivo de política, não significa, portanto, dizer que é uma concepção destituída de método. No caso brasileiro, o constitucionalismo democrático vem sendo atacado de duas formas: o intenso confronto político deliberado e a erosão difusa da ordem jurídica e da integridade das instituições.
Politicamente, o bolsonarismo conduz um interminável confronto com as instituições e os valores da democracia liberal. Promove uma guerra cultural permanente pelas redes sociais e, ao mesmo tempo, ataca as instituições de controle e aplicação da lei, com o objetivo de minar a credibilidade, e a capacidade dessas instituições de exercerem a função de freios contrapesos ao poder presidencial.
O ataque às urnas eletrônicas, ao Supremo e aos ministros que têm conduzido o processo eleitoral é parte essencial dessa estratégia de fragilização institucional. Como demonstra relatório da organização Democracia em Xeque, publicado esta semana, após Bolsonaro propor ação de abuso de autoridade contra Alexandre de Moraes, o ministro vem sendo alvo de uma gigantesca onda de ataques nas redes sociais, voltada a intimidar e restringir sua credibilidade. Dentro dessa mesma estratégia, o bolsonarismo fomenta a animosidade das Forças Armadas contra o Supremo e o TSE.
No plano jurídico, por sua vez, o governo tem empregado as prerrogativas presidenciais, como decretos, nomeações, restrições orçamentárias, estabelecimento de sigilo e ordens para institucionais, para subverter a ordem constitucional. Essa estratégia parece ser uma consequência da incapacidade do governo de promover mudanças mais amplas com apoio de ambas casas do Congresso Nacional.
Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas, do combate ao trabalho escravo, da reforma agrária, da Polícia Federal e, especialmente, na área das armas de fogo, prejudicando não apenas a política de segurança pública, como fortalecendo milícias e grupos radicalizados que ameaçam a democracia.
Trata-se, assim, de um perigoso avanço em direção ao estado de exceção, como decorrência da associação entre confronto político sistemático e erosão jurídica como método de subversão da ordem constitucional, que precisa ser imediatamente contido, sob o risco de comprometer definitivamente o edifício democrático brasileiro. Esse é o desafio colocado às elites políticas, econômicas e sociais brasileiras neste momento.
Essa concepção tribal de política, defendida por Carl Schmitt, que marcou a ascensão de regimes totalitários nos anos 1930, repaginada pela extrema direita norte-americana nas últimas décadas —com sua idolatria fálica às armas, à supremacia racial e a ideias liberticidas—, foi descaradamente plagiada pelo bolsonarismo.
Para os praticantes dessa concepção pervertida de política, a democracia constitucional —que pacifica e institucionaliza a competição política e impõe limites jurídicos àqueles que exercem poder— aparece como um entrave inaceitável ao poder soberano devendo, portanto, ser suprimido. A verdadeira soberania, de acordo com Schmitt, não pode ser confinada pela Constituição, pelo império do direito. Ela somente se expressa no contexto do estado de exceção.
Afirmar que se trata de um modelo primitivo de política, não significa, portanto, dizer que é uma concepção destituída de método. No caso brasileiro, o constitucionalismo democrático vem sendo atacado de duas formas: o intenso confronto político deliberado e a erosão difusa da ordem jurídica e da integridade das instituições.
Politicamente, o bolsonarismo conduz um interminável confronto com as instituições e os valores da democracia liberal. Promove uma guerra cultural permanente pelas redes sociais e, ao mesmo tempo, ataca as instituições de controle e aplicação da lei, com o objetivo de minar a credibilidade, e a capacidade dessas instituições de exercerem a função de freios contrapesos ao poder presidencial.
O ataque às urnas eletrônicas, ao Supremo e aos ministros que têm conduzido o processo eleitoral é parte essencial dessa estratégia de fragilização institucional. Como demonstra relatório da organização Democracia em Xeque, publicado esta semana, após Bolsonaro propor ação de abuso de autoridade contra Alexandre de Moraes, o ministro vem sendo alvo de uma gigantesca onda de ataques nas redes sociais, voltada a intimidar e restringir sua credibilidade. Dentro dessa mesma estratégia, o bolsonarismo fomenta a animosidade das Forças Armadas contra o Supremo e o TSE.
No plano jurídico, por sua vez, o governo tem empregado as prerrogativas presidenciais, como decretos, nomeações, restrições orçamentárias, estabelecimento de sigilo e ordens para institucionais, para subverter a ordem constitucional. Essa estratégia parece ser uma consequência da incapacidade do governo de promover mudanças mais amplas com apoio de ambas casas do Congresso Nacional.
Esse ataque infralegal fica muito evidente no campo do meio ambiente, dos direitos indígenas, do combate ao trabalho escravo, da reforma agrária, da Polícia Federal e, especialmente, na área das armas de fogo, prejudicando não apenas a política de segurança pública, como fortalecendo milícias e grupos radicalizados que ameaçam a democracia.
Trata-se, assim, de um perigoso avanço em direção ao estado de exceção, como decorrência da associação entre confronto político sistemático e erosão jurídica como método de subversão da ordem constitucional, que precisa ser imediatamente contido, sob o risco de comprometer definitivamente o edifício democrático brasileiro. Esse é o desafio colocado às elites políticas, econômicas e sociais brasileiras neste momento.
O ódio que nos move
O ódio é a própria matéria-prima de que foi feito o país. Esse país surgiu do genocídio dos povos indígenas, do tráfico de escravos de populações africanas, da ambição desenfreada de bandeirantes, e por aí vai. Em meio a isso, o desejo de liberdade, a informalidade assegurada pelos amplos territórios, a mistura generalizada… Esses fatores produziram também uma riqueza e complexidade culturais notáveis.
O Brasil é um país misturado e desigual. A radicalidade dessa desigualdade sempre manteve um ódio social latente, que irrompe sistematicamente em violência desorganizada e de tempos em tempos explode em colapso político e social, como agora. Sem dúvida as redes sociais digitais contribuíram decisivamente para organizar o ódio e levá-lo a um outro patamar de infiltração na subjetividade de amplos grupos sociais. Mas o que nunca faltou no país foi motivo para ódio.
Francisco Bosco, autor de "O diálogo possível- Por uma reconstrução do debate público brasileiro".
O Brasil é um país misturado e desigual. A radicalidade dessa desigualdade sempre manteve um ódio social latente, que irrompe sistematicamente em violência desorganizada e de tempos em tempos explode em colapso político e social, como agora. Sem dúvida as redes sociais digitais contribuíram decisivamente para organizar o ódio e levá-lo a um outro patamar de infiltração na subjetividade de amplos grupos sociais. Mas o que nunca faltou no país foi motivo para ódio.
Francisco Bosco, autor de "O diálogo possível- Por uma reconstrução do debate público brasileiro".
Camões previu o Brasil de hoje melhor que Nostradamus
Que Nostradamus, que nada! Quem profetizou sobre os eventos neste Brasil do ano da graça de 2022 foi Luís Vaz de Camões, o maior poeta vivo da língua portuguesa (morreu em 1580 apenas para os leitores ingratos).
Está tudo lá, no soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”, publicado há 424 anos sob o disfarce de ser apenas mais um poema a respeito da servidão amorosa.
“Fogo que arde sem se ver” é uma metáfora para Simone Tebet — a senadora sul-mato-grossense que não falta ao trabalho (compareceu a 95% das sessões), não rasga dinheiro público (gastou só cerca de 40% da verba de gabinete e da cota parlamentar), nem responde a processo judicial. Teve atuação firme na CPI da Covid e tem baixa rejeição. Pode crescer e aparecer. A menos que o vice seja o Aécio, porque aí incinera tudo.
“Ferida que dói, e não se sente” é referência a Lula. Responsável pelos maiores escândalos de corrupção da nossa História, há quem acredite que “não tem, nesse país, uma viv’alma mais honesta”. Mas sejamos justos: pelo menos uma vez não faltou com a verdade — foi quando disse que no Congresso havia 300 picaretas. Tanto havia que comprou vários deles, assim que teve oportunidade.
“É um andar solitário entre a gente” remete a Ciro Gomes, que não tem conseguido fazer alianças ou agregar apoios. Com seu destempero e incontinência verbal, parece “querer estar preso por vontade” a uma posição de coadjuvante na disputa.
“É um cuidar que ganha em se perder” alude, obviamente, a Luciano Bivar. Político profissional (não necessariamente na melhor acepção dos termos), neutralizou (e rifou) Sergio Moro e agora pode fazer acordos à direita e à esquerda, acima e abaixo, dentro e fora. Terá R$ 770 milhões para ser fragorosamente derrotado (fará campanha “pró-forma”) e eleger uma megabancada de deputados com poder de barganha. Perde e sai ganhando, seja qual for o futuro presidente.
“É servir a quem vence, o vencedor” descreve João Doria. Levou a melhor nas prévias do PSDB — e só nelas. O partido não o quer e parece que os eleitores também não fazem muita questão. Foi importantíssimo na luta contra a Covid-19, mas a vaidade — como cantou Billy Blanco — põe o bobo no alto e retira a escada.
Em “É ter com quem nos mata, lealdade”, Camões conseguiu retratar, à perfeição, a relação dos bolsonaristas com seu mito. O presidente se opôs à vacinação, ao distanciamento social, ao uso de máscaras — e se a Covid-19 não matou mais foi porque prefeitos, governadores e a população fizeram o que precisava ser feito. Bolsonaro conseguiu ser o pior presidente desde 1889 — o que não é pouca coisa, num país que já teve Sarney, Collor e Dilma.
“Tão contrário a si é o mesmo Amor” fala dos eleitores que tentaram se curar da dilmite tomando Bolsonariol e agora acham que dá para combater bolsonarite com uso de Lulalckmin, um genérico transgênico.
Claro que a profecia camoniana pode ter outras interpretações (quanto mais polissêmica uma previsão, maiores as chances de dar certo). Mas é evidente, ora pois, que Camões (pre)via melhor com um olho só do que Nostradamus com dois.
Está tudo lá, no soneto “Amor é um fogo que arde sem se ver”, publicado há 424 anos sob o disfarce de ser apenas mais um poema a respeito da servidão amorosa.
“Fogo que arde sem se ver” é uma metáfora para Simone Tebet — a senadora sul-mato-grossense que não falta ao trabalho (compareceu a 95% das sessões), não rasga dinheiro público (gastou só cerca de 40% da verba de gabinete e da cota parlamentar), nem responde a processo judicial. Teve atuação firme na CPI da Covid e tem baixa rejeição. Pode crescer e aparecer. A menos que o vice seja o Aécio, porque aí incinera tudo.
“Ferida que dói, e não se sente” é referência a Lula. Responsável pelos maiores escândalos de corrupção da nossa História, há quem acredite que “não tem, nesse país, uma viv’alma mais honesta”. Mas sejamos justos: pelo menos uma vez não faltou com a verdade — foi quando disse que no Congresso havia 300 picaretas. Tanto havia que comprou vários deles, assim que teve oportunidade.
“É um andar solitário entre a gente” remete a Ciro Gomes, que não tem conseguido fazer alianças ou agregar apoios. Com seu destempero e incontinência verbal, parece “querer estar preso por vontade” a uma posição de coadjuvante na disputa.
“É um cuidar que ganha em se perder” alude, obviamente, a Luciano Bivar. Político profissional (não necessariamente na melhor acepção dos termos), neutralizou (e rifou) Sergio Moro e agora pode fazer acordos à direita e à esquerda, acima e abaixo, dentro e fora. Terá R$ 770 milhões para ser fragorosamente derrotado (fará campanha “pró-forma”) e eleger uma megabancada de deputados com poder de barganha. Perde e sai ganhando, seja qual for o futuro presidente.
“É servir a quem vence, o vencedor” descreve João Doria. Levou a melhor nas prévias do PSDB — e só nelas. O partido não o quer e parece que os eleitores também não fazem muita questão. Foi importantíssimo na luta contra a Covid-19, mas a vaidade — como cantou Billy Blanco — põe o bobo no alto e retira a escada.
Em “É ter com quem nos mata, lealdade”, Camões conseguiu retratar, à perfeição, a relação dos bolsonaristas com seu mito. O presidente se opôs à vacinação, ao distanciamento social, ao uso de máscaras — e se a Covid-19 não matou mais foi porque prefeitos, governadores e a população fizeram o que precisava ser feito. Bolsonaro conseguiu ser o pior presidente desde 1889 — o que não é pouca coisa, num país que já teve Sarney, Collor e Dilma.
“Tão contrário a si é o mesmo Amor” fala dos eleitores que tentaram se curar da dilmite tomando Bolsonariol e agora acham que dá para combater bolsonarite com uso de Lulalckmin, um genérico transgênico.
Claro que a profecia camoniana pode ter outras interpretações (quanto mais polissêmica uma previsão, maiores as chances de dar certo). Mas é evidente, ora pois, que Camões (pre)via melhor com um olho só do que Nostradamus com dois.
O passado está vencendo o futuro do Brasil
O passado está vencendo o futuro do país em duas frentes. A primeira é a bolsonarista. O projeto de Bolsonaro não só elogia o passado, inclusive o macabro mundo das torturas, como é vazio de propostas para modernizar o Brasil nos próximos anos. Surpreendentemente, a oposição também não consegue se livrar dos problemas pretéritos. Uma combinação de políticas dos rancores com a falta de uma proposta para além do curto prazo gera uma paralisia de ação e de proposição. Neste cenário, as candidaturas movem-se pelo retrovisor, quando a sociedade espera um norte mais amplo para enfrentar os desafios do século XXI.
Bolsonaro é um presidente saudosista, tanto da ditadura militar quanto de um mundo conservador idílico que teria havido no passado, quando o patriarcalismo podia vender uma falsa ideia de harmonia entre todos os grupos sociais. O autoritarismo e a política dos valores radicais se encontram nesse modelo mental. Seus inimigos são a Constituição de 1988, com sua proposta de universalização de direitos por meio de políticas públicas e de democratização do sistema político, bem como as visões mais recentes sobre o meio ambiente, a questão de gênero, a igualdade racial e a maior preocupação das empresas com seu impacto na comunidade - o bolsonarismo critica fortemente o modelo de ESG nas redes sociais.
O projeto bolsonarista tem um referencial em tendências do presente, em especial a visão de extrema direita ao estilo de Viktor Orbán. Mas esse modelo húngaro não apresenta nenhuma ideia relevante sobre como enfrentar os enormes desafios contemporâneos. O mesmo cenário se repete com Bolsonaro: ele não tem nenhuma proposta consistente para resolver os dilemas da educação, da saúde, das questões urbanas, da temática ambiental e, sobretudo, da desigualdade e da pobreza sob os marcos da realidade contemporânea.
A distopia bolsonarista não é só o mundo caótico que propõe. Ela começa, na verdade, com a ameaça de golpe caso não vença a eleição, ou caso ganhe a Presidência da República e não consiga governar de forma autocrática por conta dos controles democráticos advindos do STF, do Congresso Nacional e da Federação. É importante frisar que o uso de métodos autoritários está no horizonte próximo tanto na hipótese de derrota como na de reeleição. Isso ocorre porque Bolsonaro não vislumbra sair do poder tão cedo nem ter uma oposição que funcione como limitadora de sua autoridade, o que o torna um obstáculo para qualquer futuro alternativo e baseado num projeto mais plural de sociedade, atento às tendências e desafios do século XXI.
Diante desta distopia bolsonarista, a oposição deveria apresentar-se como uma porta para um novo futuro. Só que o passado também tem dominado a estratégia e mesmo a agenda dos oposicionistas, da chamada terceira via ao lulismo. A primeira razão está na força da política do rancor em sua lógica de atuação. Os partidos e lideranças políticas ainda não se recuperam do trauma disruptivo que se iniciou em 2013, a partir do qual grande parcela do sistema partidário desestruturou-se completamente, em especial o centro democrático. Mas, em vez de buscar um novo arranjo, a maioria dos líderes insiste em reforçar as brigas e as animosidades pretéritas, num jogo entrópico em que o passado engole o futuro.
A política do rancor tem sua base primeira dentro dos próprios grupos e partidos políticos. A autodestruição do PSDB é o maior exemplo disso. As mágoas entre as lideranças tornaram inviável ter uma candidatura própria ou coligada com outras legendas, de modo a somar, e não a subtrair. O conflito entre Doria e Aécio é um jogo de soma negativa, ninguém ganha com ele. Sob esta lógica suicida, líderes plumados do partido estão hoje mais preocupados com o espólio depois das eleições - quem vai ser o chefe maior dos tucanos - do que com a forma como será apresentado o partido aos seus eleitores históricos, cada vez em menor número, mas que mereciam mais respeito.
As mágoas internas também estão dentro do lulismo. Mas elas não são apenas a continuação de brigas do passado, embora muitas vezes o sejam, como comprova o imbróglio em Pernambuco e noutros estados. Há um rancor conceitual com a forma pela qual Lula governou em seus oito anos de mandato, num modelo baseado em alianças amplas e, especialmente, em políticas públicas lastreadas em compromissos construídos entre divergentes. Muitos não entenderam e/ou não gostaram da escolha de Alckmin para o posto de vice porque até hoje não compreenderam e/ou assimilaram o modo lulista de governar, preferindo um sectarismo que não tem base na necessidade democrática de lidar e dialogar com uma sociedade heterogênea como a brasileira.
O debate atual está tão eivado de rancores e miopias que não se percebe que, se o melhor da lógica política da redemocratização for recuperado, não há nenhuma contradição na aliança entre Lula e Alckmin. Que os concorrentes reclamem dessa dupla, é explicável pela disputa dos votos. Que os aliados do lulismo reclamem, é porque não entenderam nada da história recente. Bolsonaro é um corte histórico radical porque optou por uma política contra os compromissos entre divergentes, algo que já estava em crise desde o segundo governo Dilma, embora menos por motivos ideológicos e mais por inabilidade e pelo desgaste do modelo político criado na Nova República.
O fato é que nos governos FHC e Lula, durante 16 anos, houve conflitos, mas também acordos importantes e formas de congregar posições diferentes. Para entender esse processo, é preciso ir além do presidencialismo de coalizão. Ambos os presidentes conversaram e negociaram com atores sociais diversos e antagônicos e sempre deixaram uma porta aberta para o diálogo.
Hoje, após quase uma década de tantas brigas que se transformaram em rancores, as forças políticas oposicionistas estão míopes em relação ao significado da distopia bolsonarista. Há lideres políticos e sociais que não apostam numa conversa civilizada entre si porque acreditam ser possível fazer oposição se Bolsonaro vencer. Para esses, sugiro um exercício: pergunte aos movimentos de direitos humanos húngaros e ao financista George Soros se é possível contrapor-se e controlar democraticamente o governo Orbán. A resposta será negativa e deveria iluminar quem se amarrou no passado e poderá assim inviabilizar o futuro do país, de nossos filhos e netos.
Somente será possível evitar a distopia bolsonarista se os oposicionistas conversarem mais entre si e, principalmente, se escolherem Bolsonaro como alvo central de suas críticas, usando o fracasso das políticas atuais como parâmetro de um novo modelo voltado para o futuro do país. Obviamente que cada partido ou força política pode buscar seu caminho próprio, mas quem não entender que o maior desafio histórico do momento é evitar a continuidade do bolsonarismo certamente estará fazendo um jogo contra o Brasil no curto prazo, e em detrimento das próximas gerações, no longo prazo.
Ao fazer da política um jogo de rancores e vetos aos demais oposicionistas, cada grupo neste espectro contribui para o fortalecimento do bolsonarismo. Seria preciso que as candidaturas de terceira via, Ciro Gomes, Janones e Lula dissessem que têm diferenças entre si, mas que aceitam assinar, formalmente, um pacto para evitar tanto o duplo golpe que Bolsonaro pode dar - seja para evitar a derrota, seja para governar autocraticamente -, como a continuidade das ideias perversas presentes nas políticas públicas bolsonaristas, como a destruição do meio ambiente, o sucateamento da educação e da ciência, a desestruturação do SUS e o armamento da população a serviço das milícias políticas e de bandidos.
Mais do que tudo, as candidaturas de oposição precisam se livrar da lógica do passado e apresentar projetos de futuro para o país que dialoguem com três coisas: com as experiências que deram certo no pós-1988 (e elas são pluripartidárias); com a lista de equívocos e desastres promovidos pelo bolsonarismo, para se contrapor a tais políticas; e, por fim, com ideias novas que circulam no mundo e no Brasil sobre os desafios contemporâneos. No lugar da distopia bolsonarista é preciso apresentar soluções que se alimentem de evidências científicas, de práticas bem-sucedidas e replicáveis, além de um ideal de sociedade mais plural e congregador.
Os rancores e os sectarismos não irão vencer o pesadelo bolsonarista. Apenas a apresentação de sonhos coletivos de futuro, por meio de uma perspectiva generosa de conversa com todos os grupos sociais, será capaz de levar o Brasil a um caminho mais amplo de mudanças. E nenhum partido ou candidato oposicionista conseguirá fazer tal transformação sozinho, pois só um oposicionismo plural poderá sepultar a distopia representada por Bolsonaro. É preciso entender isso antes que seja tarde.
Bolsonaro é um presidente saudosista, tanto da ditadura militar quanto de um mundo conservador idílico que teria havido no passado, quando o patriarcalismo podia vender uma falsa ideia de harmonia entre todos os grupos sociais. O autoritarismo e a política dos valores radicais se encontram nesse modelo mental. Seus inimigos são a Constituição de 1988, com sua proposta de universalização de direitos por meio de políticas públicas e de democratização do sistema político, bem como as visões mais recentes sobre o meio ambiente, a questão de gênero, a igualdade racial e a maior preocupação das empresas com seu impacto na comunidade - o bolsonarismo critica fortemente o modelo de ESG nas redes sociais.
O projeto bolsonarista tem um referencial em tendências do presente, em especial a visão de extrema direita ao estilo de Viktor Orbán. Mas esse modelo húngaro não apresenta nenhuma ideia relevante sobre como enfrentar os enormes desafios contemporâneos. O mesmo cenário se repete com Bolsonaro: ele não tem nenhuma proposta consistente para resolver os dilemas da educação, da saúde, das questões urbanas, da temática ambiental e, sobretudo, da desigualdade e da pobreza sob os marcos da realidade contemporânea.
O máximo que o bolsonarismo nos apresenta é uma distopia: um mundo dominado pela sociedade completamente armada, por empreendedores que agem como predadores ambientais, por nenhuma garantia de direitos trabalhistas, pela destruição da ciência, pela colonização da escola por doutrinadores religiosos e pela aliança do atraso oligárquico do Centrão com o projeto autoritário de poder eterno da família Bolsonaro. O futuro do Brasil bolsonarista seria como um Mad Max tupiniquim, só que com maior predomínio masculino no comando do caos.
A distopia bolsonarista não é só o mundo caótico que propõe. Ela começa, na verdade, com a ameaça de golpe caso não vença a eleição, ou caso ganhe a Presidência da República e não consiga governar de forma autocrática por conta dos controles democráticos advindos do STF, do Congresso Nacional e da Federação. É importante frisar que o uso de métodos autoritários está no horizonte próximo tanto na hipótese de derrota como na de reeleição. Isso ocorre porque Bolsonaro não vislumbra sair do poder tão cedo nem ter uma oposição que funcione como limitadora de sua autoridade, o que o torna um obstáculo para qualquer futuro alternativo e baseado num projeto mais plural de sociedade, atento às tendências e desafios do século XXI.
Diante desta distopia bolsonarista, a oposição deveria apresentar-se como uma porta para um novo futuro. Só que o passado também tem dominado a estratégia e mesmo a agenda dos oposicionistas, da chamada terceira via ao lulismo. A primeira razão está na força da política do rancor em sua lógica de atuação. Os partidos e lideranças políticas ainda não se recuperam do trauma disruptivo que se iniciou em 2013, a partir do qual grande parcela do sistema partidário desestruturou-se completamente, em especial o centro democrático. Mas, em vez de buscar um novo arranjo, a maioria dos líderes insiste em reforçar as brigas e as animosidades pretéritas, num jogo entrópico em que o passado engole o futuro.
A política do rancor tem sua base primeira dentro dos próprios grupos e partidos políticos. A autodestruição do PSDB é o maior exemplo disso. As mágoas entre as lideranças tornaram inviável ter uma candidatura própria ou coligada com outras legendas, de modo a somar, e não a subtrair. O conflito entre Doria e Aécio é um jogo de soma negativa, ninguém ganha com ele. Sob esta lógica suicida, líderes plumados do partido estão hoje mais preocupados com o espólio depois das eleições - quem vai ser o chefe maior dos tucanos - do que com a forma como será apresentado o partido aos seus eleitores históricos, cada vez em menor número, mas que mereciam mais respeito.
As mágoas internas também estão dentro do lulismo. Mas elas não são apenas a continuação de brigas do passado, embora muitas vezes o sejam, como comprova o imbróglio em Pernambuco e noutros estados. Há um rancor conceitual com a forma pela qual Lula governou em seus oito anos de mandato, num modelo baseado em alianças amplas e, especialmente, em políticas públicas lastreadas em compromissos construídos entre divergentes. Muitos não entenderam e/ou não gostaram da escolha de Alckmin para o posto de vice porque até hoje não compreenderam e/ou assimilaram o modo lulista de governar, preferindo um sectarismo que não tem base na necessidade democrática de lidar e dialogar com uma sociedade heterogênea como a brasileira.
O debate atual está tão eivado de rancores e miopias que não se percebe que, se o melhor da lógica política da redemocratização for recuperado, não há nenhuma contradição na aliança entre Lula e Alckmin. Que os concorrentes reclamem dessa dupla, é explicável pela disputa dos votos. Que os aliados do lulismo reclamem, é porque não entenderam nada da história recente. Bolsonaro é um corte histórico radical porque optou por uma política contra os compromissos entre divergentes, algo que já estava em crise desde o segundo governo Dilma, embora menos por motivos ideológicos e mais por inabilidade e pelo desgaste do modelo político criado na Nova República.
O fato é que nos governos FHC e Lula, durante 16 anos, houve conflitos, mas também acordos importantes e formas de congregar posições diferentes. Para entender esse processo, é preciso ir além do presidencialismo de coalizão. Ambos os presidentes conversaram e negociaram com atores sociais diversos e antagônicos e sempre deixaram uma porta aberta para o diálogo.
Hoje, após quase uma década de tantas brigas que se transformaram em rancores, as forças políticas oposicionistas estão míopes em relação ao significado da distopia bolsonarista. Há lideres políticos e sociais que não apostam numa conversa civilizada entre si porque acreditam ser possível fazer oposição se Bolsonaro vencer. Para esses, sugiro um exercício: pergunte aos movimentos de direitos humanos húngaros e ao financista George Soros se é possível contrapor-se e controlar democraticamente o governo Orbán. A resposta será negativa e deveria iluminar quem se amarrou no passado e poderá assim inviabilizar o futuro do país, de nossos filhos e netos.
Somente será possível evitar a distopia bolsonarista se os oposicionistas conversarem mais entre si e, principalmente, se escolherem Bolsonaro como alvo central de suas críticas, usando o fracasso das políticas atuais como parâmetro de um novo modelo voltado para o futuro do país. Obviamente que cada partido ou força política pode buscar seu caminho próprio, mas quem não entender que o maior desafio histórico do momento é evitar a continuidade do bolsonarismo certamente estará fazendo um jogo contra o Brasil no curto prazo, e em detrimento das próximas gerações, no longo prazo.
Ao fazer da política um jogo de rancores e vetos aos demais oposicionistas, cada grupo neste espectro contribui para o fortalecimento do bolsonarismo. Seria preciso que as candidaturas de terceira via, Ciro Gomes, Janones e Lula dissessem que têm diferenças entre si, mas que aceitam assinar, formalmente, um pacto para evitar tanto o duplo golpe que Bolsonaro pode dar - seja para evitar a derrota, seja para governar autocraticamente -, como a continuidade das ideias perversas presentes nas políticas públicas bolsonaristas, como a destruição do meio ambiente, o sucateamento da educação e da ciência, a desestruturação do SUS e o armamento da população a serviço das milícias políticas e de bandidos.
Mais do que tudo, as candidaturas de oposição precisam se livrar da lógica do passado e apresentar projetos de futuro para o país que dialoguem com três coisas: com as experiências que deram certo no pós-1988 (e elas são pluripartidárias); com a lista de equívocos e desastres promovidos pelo bolsonarismo, para se contrapor a tais políticas; e, por fim, com ideias novas que circulam no mundo e no Brasil sobre os desafios contemporâneos. No lugar da distopia bolsonarista é preciso apresentar soluções que se alimentem de evidências científicas, de práticas bem-sucedidas e replicáveis, além de um ideal de sociedade mais plural e congregador.
Os rancores e os sectarismos não irão vencer o pesadelo bolsonarista. Apenas a apresentação de sonhos coletivos de futuro, por meio de uma perspectiva generosa de conversa com todos os grupos sociais, será capaz de levar o Brasil a um caminho mais amplo de mudanças. E nenhum partido ou candidato oposicionista conseguirá fazer tal transformação sozinho, pois só um oposicionismo plural poderá sepultar a distopia representada por Bolsonaro. É preciso entender isso antes que seja tarde.
Assinar:
Postagens (Atom)