segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Afrontar mitos do mercado é custoso, pois a reação é vender e forçar a elevação de juros

O Brasil é mesmo curioso. O maior faniquito no mercado financeiro com a eleição presidencial de 2022 se deu vários dias após a proclamação do vencedor. Foi quando o presidente eleito questionou “a tal da estabilidade fiscal”, em discurso a parlamentares feito em 10 de novembro.

O abalo sísmico foi grande. E continua sendo com as notícias da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que diz muito pouco sobre para onde vamos transitar.

O mercado é assim mesmo. Tratá-lo como se fosse uma instância que emite opiniões políticas é grande equívoco. Ele não tem ideologia, mas cultiva um punhado de convicções, em geral corruptelas de conceitos mais complexos de algum “economista defunto”, como dizia John Maynard Keynes.

O mercado não julga nem pune, apenas faz preço. Tudo o que se discute no mercado deve ser filtrado, mastigado e resumido para uma decisão que é essencialmente binária: comprar ou vender. Não há espaço para nuances, qualificações ou raciocínios sofisticados. O ambiente é o de um jogo de espelhos.

Não se trata de saber o que vai acontecer, mas sim de adivinhar o que os outros pensam que acontecerá. Isso tudo favorece a reprodução de mantras e verdades absolutas, dentre as quais a austeridade fiscal é uma das que mais se destacam pelo seu poder hipnótico.


Cabe ao próximo governo entender as regras e jogar o jogo, para seu próprio benefício. É desnecessário e custoso afrontar os mitos do mercado, porque a reação, típica de manada, é vender títulos e forçar a elevação dos juros, o que atrapalha o crescimento, e vender reais e comprar dólares, o que faz a inflação subir.

Como o próximo governo quer, certamente, a economia em crescimento e preços sob controle, convém moderar a incontinência verbal. Mais que isso, é preciso anunciar algum tipo de regime fiscal cuja regra impeça que o mercado pense que não há limite para gastos. Não é tão difícil.

O mercado, na sua simplicidade dicotômica, é capaz de engolir lorotas, como vem ocorrendo durante toda a gestão do ministro da Economia, Paulo Guedes. Basta contar uma mentira verossímil.

O que não tem sentido é regredirmos décadas no debate econômico e considerarmos mutuamente excludentes a urgência de combater a miséria e a necessidade de uma gestão fiscal responsável. Todos perdemos se formos levados a escolher entre alternativas que são plenamente conciliáveis.

E no mercadinho Brasil...

 


O direito de sonhar

Que tal se delirarmos por um tempinho
Que tal fixarmos nossos olhos mais além da infâmia
Para imaginar outro mundo possível?

O ar estará mais limpo de todo o veneno que
Não provenha dos medos humanos e das humanas paixões.

Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães.
As pessoas não serão dirigidas pelos carros
Nem serão programadas pelo computador.
Nem serão compradas pelos supermercados
Nem serão assistidas pela TV,
A TV deixará de ser o membro mais importante da família,
Será tratada como um ferro de passar roupa
Ou uma máquina de lavar.

Será incorporado aos códigos penais
O crime da estupidez para aqueles que a cometem
Por viver só para ter o que ganhar
Ao invés de viver simplesmente
Como canta o pássaro em saber que canta
E como brinca a criança sem saber que brinca.

Em nenhum país serão presos os jovens
Que se recusem ao serviço militar
Senão aqueles que queiram servi-lo.
Ninguém viverá para trabalhar.
Mas todos trabalharemos para viver.

Os economistas não chamarão mais
De nível de vida o nível de consumo
E nem chamarão a qualidade de vida
A quantidade de coisas.

Os cozinheiros não mais acreditarão
que as lagostas gostam de ser fervidas vivas.
Os historiadores não acreditarão que os países adoram ser invadidos.
Os políticos não acreditarão que os pobres
Se encantam em comer promessas.
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude,
E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de rir de si mesmo.

A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes
E nem por falecimento e nem por fortuna
Se tornará o canalha em virtuoso cavalheiro.

A comida não será uma mercadoria
Nem a comunicação um negócio
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos.
Ninguém morrerá de fome
Porque ninguém morrerá de indigestão.

As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo
Porque não existirão crianças de rua.
As crianças ricas não serão como se fossem dinheiro
Porque não haverá crianças ricas.

A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la
E a polícia não será a maldição daqueles que podem comprá-la.

A justiça e a liberdade, irmãs siamesas
Condenadas a viver separadas
Voltarão a juntar-se, bem agarradinhas,
Costas com costas.

Na Argentina, as loucas da Plaza de Mayo
Serão um exemplo de saúde mental
Porque elas se negaram a esquecer
Os tempos da amnésia obrigatória.

A Santa Madre Igreja corrigirá
Algumas erratas das Tábuas de Moisés,
E o sexto mandamento mandará festejar o corpo.
A Igreja ditará outro mandamento que Deus havia esquecido:
“Amarás a natureza, da qual fazes parte”.

Serão reflorestados os desertos do mundo
E os desertos da alma
Os desesperados serão esperados
E os perdidos serão encontrados
Porque eles são os que se desesperaram por muito esperar
E eles se perderam por tanto buscar.

Seremos compatriotas e contemporâneos
De todos o que tenham
A vontade de beleza e vontade de justiça
Tenham nascido quando tenham nascido
Tenham vivido onde tenham vivido
Sem importarem nem um pouquinho
As fronteiras do mapa e do tempo.

Seremos imperfeitos
Porque a perfeição continuará sendo o aborrecido privilégios dos deuses
Mas neste mundo, trapalhão e fodido,
Seremos capazes
De viver cada dia como se fosse o primeiro
E cada noite como se fosse a última.

Eduardo Galeano

Temos tudo?

O mundo com vários abcessos prestes a rebentar. Ainda há pouco exultávamos de esperança, e já ninguém tem paz na alma. É que não há mais tempo de duração. Todas as nossas horas são ofegantes, e cadentes as estrelas anunciadas e anunciadoras. Temos tudo, e falta-nos o essencial. É como se de repente a vida ficasse do avesso e a não soubéssemos vestir
Miguel Torga, "Diário XVI"

Os dias já foram piores, mas ainda estão assim. Até quando?

“O governo não pode ser só do Partido dos Trabalhadores, temos que ter governo com mais gente da sociedade, com mais gente de outros partidos, com mais gente que não tem nenhum partido”, disse Lula a uma plateia de apoiadores em auditório no Instituto Universitário de Lisboa, na semana passada.


“Pertence à história do nosso país. A bandeira é nossa, a bandeira é de todos”, disse Lula ao comemorar no sábado (19) o Dia da Bandeira. “Sabemos que temos que ter responsabilidade. Não gastar mais do que ganha. Mas eu também sei que temos que cuidar do povo mais pobre”, havia dito Lula em dias anteriores.

E em mais um aceno aos brasileiros que lhe negaram o voto para que se elegesse, afirmou: “Não queremos perseguição, violência, queremos um país em paz. Queremos muito pouco, apenas o que é essencial, o que está na Bíblia, na nossa Constituição, na declaração universal dos direitos humanos”.

Em meio às falas pacificadoras do presidente eleito, o general da reserva Braga Netto, candidato a vice na chapa derrotada de Bolsonaro, deixou em polvorosa os bolsonaristas mais fanáticos que não se conformam com o resultado das eleições. Na sexta-feira (18), à saída do Palácio do Alvorado, ele ouviu de uma mulher:

“A gente está na chuva, no sufoco”.

E respondeu:

“Eu sei, senhora. Tem que dar um tempo, está bom? Vocês não percam a fé, é só o que eu posso falar para vocês agora”.


Não percam a fé em quê? Por que é só isso o que ele pode dizer agora? Em mensagem de áudio enviada a amigos, o ministro Augusto Nardes, do Tribunal de Contas da União, peça importante no processo que culminou com a cassação do mandato da presidente Dilma, deu voz ao que corre nas franjas do meio militar:

“Está acontecendo um movimento muito forte nas casernas. É questão de horas, dias, uma semana. Vamos perder alguma coisa, mas o futuro da nação pode se desencadear de forma positiva, apesar deste conflito que deveremos ter nos próximos dias”.

Fato ou fake? Algo se trama para tentar impedir a posse de Lula ou tudo não passa de boatos devidamente espalhados para manter os bolsonaristas em pé de guerra, e o futuro governo sob pressão? A Polícia Rodoviária Federal informa num dia que os bloqueios às estradas diminuíram, e, no outro, que voltaram a aumentar.

Em vídeo, o general André Luiz Ribeiro Campos Allão, comandante da 10ª Região Militar do Exército, em Fortaleza, explicou à tropa as providências que tomou em favor dos manifestantes que se mantêm à frente do quartel com reivindicações golpistas:

“Toda manifestação ordeira e pacífica ela é justa, não interessa o que ela pede. Ela é justa”.

O general está rigorosamente em linha com o pronunciamento recente dos Comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, que com palavras parecidas disseram a mesma coisa. Campos Allão ainda acrescentou num rasgo de filosofia barata:

“O mal vai ser vencido com o bem, o mal não é vencido com o mal. Assim tenho atuado”.

Caso não se arrependa do que anunciou nas redes sociais, o ex-mensaleiro do PT, Valdemar Costa Neto, presidente do PL, partido que no momento abriga Bolsonaro, pedirá amanhã ao Tribunal Superior Eleitoral que votos depositados em urnas antigas no segundo turno das recentes eleições sejam desconsiderados.

Costa Neto, segundo ele mesmo, não defende a realização de uma nova eleição, nada disso. O que pretende é que com a anulação dos votos depositados em urnas antigas reverta-se a vitória de Lula. Apenas isso. Tem provas de irregularidades? Nenhuma. Mas, e daí? Não custa pedir para acirrar os ânimos dos baderneiros.

Os dias já foram piores, mas ainda estão assim. Até quando?

Conselhos aos governantes

É o título do volume 15 das Edições do Senado Federal com mais de 800 páginas que congrega textos de 13 autores sobre o assunto e primorosa apresentação do ilustre pernambucano Walter Costa Porto.

Vai das recomendações do grego Isócrates (436 a.C – 338 a.C) ao seu discípulo Nicoclés, rei de Salamina, às duas cartas de D. Pedro II à filha Isabel, então regente, por ocasião das viagens do Imperador.

Nessa coletânea, estão, entre outros, textos de Platão, Cervantes, Mazarino, Maurício de Nassau, e o mais famoso de todos, O Príncipe, de Maquiavel.

Além dos mencionados exemplos, há uma vasta literatura que se propõe aconselhar os governantes na tentativa de moldar comportamentos e influenciar decisões dos detentores do poder político.

Entre detratores e admiradores, caminha o mais injuriado gênio da raça, Maquiavel, a quem o biógrafo Roberto Ridolfi denominou de “o profeta desarmado” e cujo epitáfio, escrito em latim, faz justiça ao florentino: “Nenhum elogio corresponde à grandeza deste homem”.

Foi Maquiavel, sabiamente, que colocou um freio em todos que pretendem “educar o Príncipe”, dando conselhos, ao advertir: “O Príncipe deve sempre aconselhar-se, mas quando ele próprio e não outrem o julgue conveniente […] Os bons conselhos venham de onde vierem, nascem forçosamente da sabedoria do Príncipe e não a sabedoria do Príncipe nasce dos bons conselhos”.

Ao descrever o que é e não o que deveria ser, a obra de Maquiavel é um formidável choque de realismo político na conquista e no exercício do poder de modo a manter a integridade do Estado.

A propósito, nestes tempos de transição entre o poder poente e o poder nascente, os novos governantes devem estar atentos não só aos ensinamentos de pensadores que têm validade universal, mas também, e sobretudo, às lições e exemplos, extraídos da experiência concreta do desafio de governar.

Neste sentido, é importante ressaltar a força e o valor de três constatações factuais.

Primeira, governar é a arte de gerar uma satisfação média entre os governados: agradar a todos é impossível e a poucos, fatal.

Segunda, o tempo de governar tem ritmos, não admite desperdícios. Há tempo de semear, tempo de colher e deve atender ao lema romano que se traduz em “apressa-te devagar” e significa trabalhar de maneira rápida, porém não apressada.

Terceira, resistir à praga dos aduladores que têm encantos mil, invejável capacidade de lisonjear e trair. Dissimulam, mas se entregam diante de holofotes como papagaios de piratas.