sexta-feira, 3 de março de 2023

O que restará aos humanos?

No mundo em que vivemos o trabalho desempenha importante função social, dando um sentido à vida das pessoas. Não ter emprego é quase como não ter vida. Desde a primeira revolução industrial vivemos na “sociedade do trabalho”. Essa realidade vem sendo alterada profundamente com o advento da Inteligência Artificial. O fenômeno já tinha sido observado por Yuval Harari em 2016, quando escreveu o livro “Homo Deus: uma breve história do amanhã”, e fez a previsão de que até 2050 surgiria uma nova classe social: a dos inempregáveis.

Ou seja, pessoas “irrelevantes”, cujas profissões tendem a desaparecer em decorrência da substituição do homem pela automação em tarefas repetitivas. Elas não encontrariam espaço nas novas profissões que surgirão a partir do desenvolvimento tecnológico. Assim, a humanidade estaria diante de um duplo desafio: de um lado, assegurar o sustento dessa nova classe social; de outro, encontrar um meio de ocupar o tempo dos “inempregáveis”, dando sentido a suas vidas. Do contrário, ou elas vão enlouquecer ou cairão nas teias de mazelas sociais como o alcoolismo, dependência das drogas, depressão crônica, entre outras.


O risco de vivermos em uma “sociedade do não-trabalho” aumentou extraordinariamente desde a época da previsão de Harari. A Inteligência Artificial, na sua fase preditiva, era capaz de trabalhar com grandes volumes de dados, gerando previsões mais assertivas. A supremacia humana em suas decisões, que já vinha sendo substituída por decisões automatizadas, mudou de patamar. Agora a IA, na fase generativa, invade o espaço até então privativo do homem: o criativo.

A fase atual desse processo é o ChatGPT, capaz de produzir conteúdo original, habilidade que só o homem era capaz. Sim, hoje as máquinas são capazes de compor uma música ou escrever um livro. Elas impactam profundamente na saúde, na educação, no jornalismo e numa infinidade de atividades intelectuais. Em um futuro não muito distante, o exército de inempregáveis pode ser engrossado também por profissionais dessas áreas, sobretudo se eles não se reiventarem para novas profissões.

A IA generativa está no seu limiar, mas veio para promover uma revolução na relação homem-máquina. Autora dos livros “A inteligência artificial vai suplantar a inteligência humana?” e “Desmistificando a Inteligência artificial”, a professora da PUC Dora Kaufman situa a inteligência artificial no patamar de “revelações científicas que em algum sentido questionam a supremacia humana”, assim como questionaram “as descobertas de Giordano Bruno no século dezesseis e as de Charles Darwin no século dezenove”.

Desenvolvido pela empresa OpenAI, o ChatGPT parece ficção científica, mas não é. E, se ele vem assustando muita gente, é porque, como disse Kaufman, “ameaça nossos atributos identitários, espécie de reserva de mercado”. É dela a pergunta pertinente em relação ao futuro da humanidade: “o que restará para os humanos?”

O advento de tecnologias disruptivas sempre provoca receios e incertezas quanto aos benefícios de seu uso. Não está sendo diferente com a IA. Daí ser absolutamente natural a polêmica sobre as vantagens e desvantagens do ChatGPT. Na educação, o debate é intenso, dado o impacto – para o bem ou para o mal – no processo de aprendizagem, portanto na formação profissional, intelectual e ética de nossos jovens.

Não é uma questão banal e preocupa educadores de todo o mundo. Nos Estados Unidos, o departamento de educação da cidade de Nova York proibiu o uso do ChatGPT em sua rede escolar. Não foi um caso isolado. Na França, o Instituto de Estudos Políticos de Paris também o baniu, ao tempo em que revistas acadêmicas como Nature e Science recusam artigos de coautoria com o GPT, por uma razão inconteste: o autor de um artigo acadêmico responde legalmente pelo seu conteúdo e metodologia.

Até certo ponto, entende-se a postura cautelosa. Mas há que se tomar cuidado para não cair em uma posição conservadora, refratária a avanços científicos e tecnológicos. A educação não pode se dar ao luxo de não integrar ao processo de aprendizagem as novas tecnologias. Até porque a IA generativa é hoje o campo de maior investimento da inteligência artificial e deve dar um salto de qualidade nos próximos anos.

A incorporação de tais avanços no processo de aprendizagem aumenta as responsabilidades de educadores e gestores, no sentido de ensinar seus alunos a não aceitar acriticamente conteúdos criados pela ChatGPT. De saber pesquisar, discernir o certo do errado e de usar as novas ferramentas em favor de sua formação para profissões que ainda não existem, mas que existirão quando completar seus ciclos de estudos. E sobretudo a pautar-se por valores éticos na sua relação com a máquina.

Essa é uma questão global. A regulação do uso da IA preditiva e generativa passa a ser uma necessidade e um desafio para todos os governos do planeta. Não é sensato transferir essa missão para as empresas tecnológicas, que já deram sobejas demonstrações da sua incapacidade de se autorregular.

A Inteligência Artificial vem reconfigurando toda a sociedade. A educação não ficará imune a esse processo. Muito menos o mercado de trabalho. Como em todas as revoluções industriais, profissões vão desaparecer e novas surgirão. O alerta de Harari quanto ao surgimento, até o ano de 2050, de uma classe de “desocupados”, sem meio de sobrevivência e sem uma função social deve ser levado em consideração.

Paralelamente, recomenda-se não ter uma visão catastrofista em relação ao uso da inteligência artificial. No século passado o economista John Maynard Keynes preconizou que o desenvolvimento tecnológico traria desemprego em massa. No entanto, a História provou que todas as revoluções industriais geraram mais empregos do que destruíram, por uma razão: desenvolvimento tecnológico resulta em forte expansão da economia e do consumo, fazendo surgir novas atividades para a garantia da sobrevivência das pessoas.

A premonição de Keynes não se confirmou. Não está escrito nas estrelas que a premonição de Harari se confirmará.

Terroir nazi-fascista

Sommelier: “Hum… Notas feudais e chicotadas… com aroma bem acentuado de abuso e desprezo… é um terroir nazi-fascista. Esse vinho é Salton ou Aurora”. Ou da cooperativa Garibaldi, acrescento à fala da personagem no desenho do cartunista Céllus.

Algum parente meu precisou ser muito resistente para vencer a fome, superar os maus tratos e não virar comida de tubarão nas travessias em navios negreiros. E isso foi só uma prévia antes de apanhar pra trabalhar de graça. A “abolição”, assim, entre aspas, aconteceu em 1888, ou seja, já tinha muito preto que morava por aqui e não recebeu um pão dormido, pior que isso, era expulso sem direito nenhum para dar espaço aos imigrantes brancos enquanto se amontoava de qualquer jeito nos morros.

A família Salton, por exemplo, vinda da Itália, desembarcou em 1878, quando existia uma lei de embranquecimento do país. Através de cotas (vejam só) trazia-se imigrantes brancos que recebiam terras. O curioso é o imigrante chegar em 1878 e já em 1893, somente 15 anos depois, seu Antônio Salton já ter um comércio consolidado, com terreno amplo para plantação e elaboração de vinho. Então eu pergunto, para reflexão: se o Brasil tivesse dado terra e dignidade para o escravo preto, quem seria a família milionária dona de uma das maiores fábricas de vinho do país, a família do italiano imigrante ou os descendentes de escravos?


Os cerca de duzentos trabalhadores que foram libertados de trabalhos degradantes, análogos à escravidão na empresa terceirizada por vinícolas da serra gaúcha vieram em sua grande parte da Bahia, nossa Roma Negra. A imagem na capa do jornal é confusa, mas diz muita coisa. Estão sentados “no chão”, alguns descalços e sem camisa, sirenes ao fundo, cercados pela polícia de arma em punho, não os culpados, os criminosos abusadores/torturadores, não, mas os próprios trabalhadores, expostos mais uma vez, humilhados até os ossos, de certo exaustos, confusos de fome e medo.

Mas quando o assunto é a exploração do trabalho no Brasil, não há nada tão ruim que não possa piorar. A corregedoria da polícia militar investiga o envolvimento de PMs suspeitos de acobertar a prática, espancamentos e ameaças ao grupo. Antes mesmo de deixarem o RS nos quatro ônibus em direção à Bahia, numa viagem de mais de 2 dias, Pedro Augusto de Oliveira, o responsável pelo aliciamento, foi preso, porém, pagou fiança de 40mil reais, vai responder em liberdade e propôs uma “acordo” em que cada trabalhador receberia menos de 3mil reais por danos morais. Ué?! A liberdade dele vale muitas mil vezes mais que a dos outros? É escarnio que chama isso?

E a bagaça vai longe. O Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves divulgou nota dizendo que o problema é que “há larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”. Então tá, o problema é o bolsa família e não os escravocratas. Ainda em Caxias do Sul o vereador Sandro Fantinel, do Patriota, fez discurso em tribuna recomendando que os empresários da região “não contratem mais aquela gente lá de cima, a cultura dos baianos é viver na praia tocando tambor, que empreguem os argentinos”.

As vinícolas Salton, Aurora e a cooperativa Garibaldi “repudiam e se solidarizam com os trabalhadores”, afirmam estarem tomado “medidas austeras na busca de soluções perenes”. Ufa! Olha, meus parabéns, fico bem mais aliviado. Ao menos agora, ao ler nas embalagens a indicação “contém 30% de suco de uva”, dá pra saber que o restante é um pouco de água (provavelmente desviada), sangue, suor e lágrimas. Vai, Brasél!