A cada ano do último século, ao menos dois vírus foram transmitidos de animais que eram seus hospedeiros originais para populações humanas. Entre eles estão o HIV, o H1N1, o ebola e, é claro, o novo coronavírus.
E com 2% do dinheiro que o mundo está gastando com a pandemia de covid-19, seria possível criar um programa de prevenção, ao longo de dez anos, para que outros vírus de perigo semelhante ao Sars-CoV-2 não tenham a chance de passar de seus hospedeiros originais para humanos.
Esses são dois argumentos centrais de um artigo científico publicado recentemente na revista Science e assinado por integrantes de diversos centros acadêmicos e de pesquisa, entre eles as universidades americanas Harvard e Duke e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Citando evidências de que o desmatamento e o contato cada vez mais próximo entre humanos e animais silvestres (seja pelo tráfico, caça ou por necessidade alimentar) é o que causa o "salto" do vírus de seu hospedeiro para humanos, os autores dizem que medidas para diminuir essa proximidade são cruciais - e relativamente baratas - para evitar pandemias futuras.
"Os riscos (de infecções) são maiores do que nunca, à medida que associações cada vez mais íntimas entre humanos e reservatórios de doenças na vida selvagem aceleram o potencial de vírus se espalharem globalmente", diz o artigo.
Os cientistas delinearam uma série de estratégias para limitar essas cadeias de transmissão, com investimentos de US$ 22 bilhões a US$ 31 bilhões por ano por uma década, "para monitorar e policiar o comércio de animais selvagens e impedir o desmatamento tropical" e assim "ajudar a prevenir futuras pandemias", segundo a Universidade de Harvard.
O custo seria uma fração dos gastos trilionários em perdas de vida e econômicas da atual pandemia - que podem chegar a US$ 20 trilhões, segundo algumas estimativas. É também um valor insignificante para as nações mais ricas do mundo, argumenta à BBC News Brasil Mariana Vale, professora-adjunta no Departamento de Ecologia da UFRJ e coautora do estudo publicado na Science.
"Nossa proposta, que não está dita explicitamente no artigo (da Science) mas é consenso entre os autores — e estamos produzindo um estudo mais detalhado a respeito —, é de que quem tem que pagar a maior parte dessa conta são os países desenvolvidos, que têm muito a perder", diz a brasileira.
"As perdas dos EUA e da Europa são enormes, e o custo dessa prevenção é muito pequeno, até US$ 30 bilhões. Só em 2019, os EUA gastaram cerca de US$ 700 bilhões no setor militar."
O dinheiro alimentaria um fundo internacional de financiamento de ações de controle de desmatamento, tráfico de animais, biossegurança e vigilância sanitária.
O grande porém é a vontade política de acessar esse dinheiro, aponta Vale, lembrando que o atual governo brasileiro abdicou dos recursos internacionais do Fundo Amazônia - um dinheiro vindo de países ricos e cujo desenho inspirou a estratégia dos cientistas agora — porque não quis se ater às metas de preservação da floresta.
Na prática, desmatamento, tráfico de animais e até mesmo guerras criam o ambiente propício a pandemias porque todas essas ações aumentam o contato dos humanos com animais silvestres, os quais podem hospedar vírus com potencial pandêmico, diz Mariana Vale.
"Geralmente o desmatamento ocorre em fases, começando pelo corte da madeira e pela caça, que já aumentam o contato (das pessoas que entram na floresta) com animais", explica a cientista.
Quanto mais áreas desmatadas, maiores serão as chamadas bordas da floresta: áreas em que comunidades de pessoas passam a viver e a se alimentar perto de animais silvestres, que podem transmitir vírus diretamente para humanos ou para animais de criação desses humanos, como porcos e aves.
Essa dinâmica é especialmente forte em florestas tropicais, pela quantidade de animais selvagens que elas abrigam, explica Vale.
"É batata: você tem desmatamento, tem epidemia (nas populações próximas) logo depois. Há centenas de artigos científicos mostrando isso", diz ela. "A malária de fronteira, por exemplo, é característica de áreas de fronteira agrícola quando ocorrem desmatamentos. (A doença) vem do contato com a floresta."
Outro grande risco pandêmico vem do tráfico de animais silvestres e selvagens, porque toda a sua cadeia — desde a coleta, o transporte, o comércio e o uso desses animais, para consumo ou para estimação — cria possíveis momentos de contágio.
Os Estados Unidos são, hoje, o maior destino de animais silvestres traficados no mundo, principalmente para o mercado de "pets exóticos", diz a pesquisadora. "Uma quantidade gigantesca de animais chega por essa via (ao país), e tem potencial de contágio. Então a redução desse comércio é muito importante."
Guerras e migração forçada também podem criar momentos de contágio, ao forçarem que pessoas fujam para florestas para se proteger e precisem recorrer a animais silvestres para se alimentar, acrescenta Vale.
Um dos artigos acadêmicos citados pelo estudo da Science foi feito em março deste ano e aponta o potencial dos morcegos em causar pandemias.
Seu possível papel em ter sido o hospedeiro original do vírus da Sars-CoV-2 ainda é investigado pela ciência, mas não para por aí. O vírus do ebola e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) provavelmente também chegaram a humanos por intermédio de morcegos.
"Os morcegos são tidos como uma reserva natural para esses vírus, especialmente coronavírus, que constituem cerca de 31% de seu viroma (vírus presentes em seus corpos)", diz o artigo, feito por pesquisadores de universidades chinesas.
E morcegos têm maior probabilidade de se alimentar em regiões onde vivem humanos quando seus habitats naturais forem destruídos ou degradados, o que nos leva a um perigo que ronda a Floresta Amazônica.
"A Amazônia tem um número enorme de reservatórios (de vírus), por ter uma enorme diversidade: é, por exemplo, a floresta com a maior diversidade de morcegos de todo o mundo", explica Mariana Vale. "E as áreas de contato com humanos têm aumentado enormemente com o avanço do desmatamento."
Florestas tropicais são um foco de contágio justamente porque têm a maior biodiversidade, ou seja, têm muitos mamíferos que podem abrigar vírus perigosos.
"Mas não tem problema se a floresta tiver em bom estado, porque daí a taxa de contato (com humanos) é muito baixa e a possibilidade de transmissão se torna muito pequena", diz Vale.
Justamente por abrigar a maior floresta tropical do mundo, o Brasil "tem um papel muito importante na prevenção de novas pandemias", prossegue a pesquisadora.
"A Amazônia é um local de alto risco — talvez não altíssimo, pelo fato de a população humana ser relativamente pequena ali. Mas, ao mesmo tempo em que o Brasil tem essa responsabilidade, tem também a capacidade de fazer um programa exemplar de prevenção de pandemia a partir da ação ambiental. A gente sabe fazer e tem a capacidade institucional para isso, desde satélites para fiscalização até capacidade de vigilância sanitária."
O artigo coassinado por Vale lembra que o Brasil promoveu "o maior exemplo de redução do desmatamento, entre 2005 e 2012, (quando) o desmatamento da Amazônia caiu 70%, ao mesmo tempo em que a produção da soja, dominante ali, aumentou."
Além disso, essa dinâmica de transmissão favorecida pelo desmatamento se aplica também aos arbovírus, cujo hospedeiro é o mosquito, e que são tão comuns no Brasil — da febre amarela ao zika.
No artigo da Science, os pesquisadores defendem a remoção de subsídios que favoreçam o desmatamento e mais apoio aos direitos indígenas, para conter o desmatamento.
E também a proibição internacional do comércio de espécies de alto risco de transmissão de vírus, como primatas, morcegos e roedores. Nesse aspecto, o artigo defende que se invistam US$ 19 bilhões por ano em programas para erradicar o consumo de carne silvestre na China.
Outros quase US$ 300 milhões seriam aplicados na criação de uma biblioteca da genética de vírus, que ajude no mapeamento de locais de onde possam surgir novos patógenos de alto risco.
A estratégia prevê também investimentos em vigilância sanitária e biosegurança na criação de animais de consumo, que são potenciais intermediários de vírus que atingem humanos, principalmente em áreas próximas a florestas.
"Se tem algo positivo que possa sair desta catástrofe que tem sido a pandemia, espero que seja o entendimento de que a saúde do ser humano depende da saúde do planeta", conclui Mariana Vale. "São camadas e camadas de evidência disso. E mesmo assim a gente não consegue resolver esse problema. A perda de biodiversidade tem consequências enormes."