quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Em busca de novas ruínas

Impressiona a capacidade com que Jair Bolsonaro consegue marcar, pelo obscurantismo, qualquer assunto em que intervenha.

Sejam os embates internacionais contra a devastação da Amazônia, seja a falta de compaixão pelas vítimas da pandemia, ou mesmo o descaso agressivo com o futuro de milhões de estudantes de todas as idades.

Sempre surpreende, com a maldade intrínseca impregnada nas ações. Meteu-se numa hipotética luta ideológica e tudo o que faz, nesta área, desanda antes de andar.


O Ministério da Justiça, transformado em central salva-vidas para socorrer membros do governo que caem nas garras da lei, está truncando seu papel. Sacrificou a posição de equilíbrio e bom senso para voltar-se à administração da rede paralela de Inteligência que o presidente reclamava.

A última arapongagem (quem diria que tal termo iria voltar à moda 30 anos depois) foi fichar antifascistas. O pretexto, para investigar quem está contra o governo, pressupõe, no mínimo, que o presidente vestiu a carapuça. Sem juízo de valor, é o que dizem as palavras.

A construção desta rede, a maior criação de Bolsonaro até o momento, ainda em processo, vem acompanhada de um conjunto de atos suspeitos: revogação de portarias de controle do mercado de armas; estudos para controle direto das PMs; ampliação da Abin entregue ao comando de alguém da sua confiança familiar; introdução de fortes tentáculos pessoais na Polícia Federal; aprofundamento de um sentimento ambíguo com relação ao Supremo Tribunal Federal: ora quer destruir, ora dominar.

Tal descalabro tem interface com a desastrada condução no Ministério da Saúde, que Bolsonaro conseguiu reduzir a escombros.

Conforme o estilo, tenta vincular o fracasso no combate à pandemia aos que imagina seus concorrentes. Acuados pelo necessário isolamento, governadores e prefeitos não conseguem reagir, nem mesmo para apontar as evidências. Que estão à mão, numa conta simples: se 20 mil mortes estão na conta de um deles, 100 mil estão na conta de Bolsonaro.

Desautorizou seus ministros, tirando-lhes a chance de uma ação organizada e eficaz. Menosprezou e acrescentou mais letalidade à pandemia. Como? Tornando-se garoto propaganda de um remédio que, em lugar da cura comprovada, complica os tratamentos e aprofunda os riscos. É estranho que o Ministério Público ainda não tenha investigado as relações de Bolsonaro com a cloroquina.

Já a Educação, ministério onde a ignorância bolsonarista acampou e domina, enfrentará o teste de um terceiro titular. Que, desconhecido, precisa não só demonstrar competência como fazer esquecer as asneiras dos antecessores. O MEC está destruído, ali o recomeço é no ponto zero.

E, para completar, com a chegada da temporada eleitoral, abre-se o espaço à corrida pelos palanques dos grotões. Antes dominados pelos coronéis da política, foram fidelizados por Lula e, agora, já batem continência para Bolsonaro.

É a nova vertente da mutação do atraso. Tendo suas bandeiras populistas desfraldadas pela bolsa emergencial de R$ 600, Bolsonaro percebe que falta dinheiro para mantê-las no mastro até as urnas. E dá mais um grande passo atrás: aprova o novo imposto, que é o velho imposto, condenado e extinto. Entrega-se à arrecadação fácil e preguiçosa da CPMF.

Conduzindo-se em campanha em tempo integral segue o presidente. Do alto da sela, na mesma perspectiva com que antes animava seus incendiários, fanáticos apoiadores agora reclusos por temor à Justiça, alguns até abrigados no exterior. Cederam lugar à ingênua plateia dos palanques do interior. É o que se verá daqui para o fim do ano.

O governo fica onde está, abandonado, como os brasileiros. E Bolsonaro sai em busca da construção de novas ruínas.

Estupidez como saída

Havia, é claro, apenas uma rota de saída para eles: a estupidez. Eles só poderiam manter a sociedade em sua forma atual sendo incapazes de entender que alguma melhoria era possível. Por mais difícil que fosse, eles conseguiram isso, em larga medida, por fixarem os olhos no passado e se recusarem a notar as mudanças que aconteciam ao seu redor
George Orwell, " Como morrem os pobres"

A tentação populista

O populismo no Brasil, como de resto em toda a América Latina, pode ser caracterizado por um arremedo de Estado de bem-estar social, com uma agenda nacionalista e estatizante, além de uma legislação trabalhista que concedeu representação e muitos direitos aos trabalhadores, mas também exacerbou seu corporativismo e lhes tomou a autonomia. No nosso caso, deixou raízes tão fortes que sobreviveu ao golpe de 1964, serviram de alicerce social para o regime militar por bom período, bem como renasceram das cinzas durante os governos petistas. Agora, em mais uma das reviravoltas que nos promove, ressurge como uma tentação para o presidente Jair Bolsonaro alavancar seu projeto de reeleição em meio à crise causada pela pandemia da covid-19.

Nosso país vem ficando para trás na corrida mundial para reinventar o Estado e modernizar a economia, que sofre o choque de uma crise sanitária sem precedentes e uma brutal recessão econômica. Sob o impacto de aceleradas inovações tecnológicas, que alteram a divisão internacional do trabalho, as relações entre capital e trabalho e também a própria organização do trabalho, a sociedade brasileira se depara com a necessidade de uma agenda econômica e social robusta, inovadora, que enfrente o problema do desenvolvimento econômico com menos desigualdades sociais. Entretanto, nem o governo Bolsonaro nem a oposição são capazes de formular essa agenda, bloqueada por narrativas ideológicas de caráter liberal-conservador ou nacionalista-reacionária, no campo oficial, e social-democrata ou nacional-desenvolvimentista, entre as forças de oposição.


São embarcações à deriva num mar revolto, sem chance de corrigir o rumo. É aí que o pulo do gato de um populismo de direita, que misture corporativismo, paternalismo social, conservadorismo nos costumes e uma recidiva nacional-desenvolvimentista começa a ganhar força no governo Bolsonaro, com apoio dos militares que compõem o eixo principal de sua equipe de governo, o que tem tudo a ver com suas concepções históricas sobre o papel do Estado brasileiro, impregnadas de positivismo e nacionalismo. O sonho do Brasil potência dormia em berço esplêndido; após a posse de Bolsonaro, busca um caminho de volta à cena política.

O ciclo de modernização em curso no Brasil é desigual e socialmente injusto, não se apoia na capacidade própria da nossa economia, mas em fluxos do comércio mundial nos quais nossa vocação natural é produzir commodities de minérios e alimentos, o que tem resultado na progressiva redução de nossa complexidade industrial. Além disso, a nossa baixa inovação tecnológica também resulta dessas demandas, bem como toda a ideologia que fomenta essas inovações. Assim, o moderno e o modernoso se confundem no mundo das narrativas, enquanto a realidade social e econômica continua amarrada por toda uma estrutura de relações institucionais, econômicas e sociais com um pé na economia arcaica e outro no atraso cultural. Esse quadro estressa nosso Estado de direito democrático.

Essa tensão estrutural hoje permeia a vida nacional e tem como epicentro a relação entre a política institucional, cujo desenvolvimento ocorre por meio das instituições da democracia representativa, e as redes sociais, nas quais os diferentes atores se digladiam ao defender suas visões de mundo. Interpretam a realidade de forma distorcida pela perspectiva ideológica, muitas vezes de caráter religioso. Nesse cenário, o projeto ultraliberal de modernização do ministro da Economia, Paulo Guedes, que já tinha contradições com a agenda reacionária de costumes do presidente Bolsonaro, naufragou na pandemia e não tem chance de se restabelecer. Ao mesmo tempo, as medidas de emergência adotadas pelo Congresso para compensar os efeitos sociais e econômicos da pandemia estão chegando ao seu limite.

Por ironia, essas medidas econômicas de caráter heterodoxo tiveram impacto favorável à popularidade do presidente da República, que estava em queda aberta, principalmente no Norte e Nordeste, entre os mais pobres e os mais jovens. Pode-se dizer que o abono emergencial caiu no colo de Bolsonaro e passou a ser um vetor de seu projeto de reeleição, do qual não pretende mais abrir mão. Vem daí sua tentação populista. A oposição, que não pode apostar no “quanto pior, melhor” nem “pôr mais azeitona na empada” de Bolsonaro, está perplexa e paralisada diante da situação, como aquela presa enfeitiçada pela cobra que prepara o bote iminente.

Entretanto, o governo Bolsonaro está diante de escolhas duras, do tipo, aumentar impostos ou reduzir as despesas. No primeiro caso, não conta com o apoio da maioria dos políticos, mas encontra ressonância nos meios empresariais. No segundo, tem apoio da opinião pública, mas enfrenta resistência feroz das corporações. A tendência de Bolsonaro é forçar a barra para Guedes “furar o teto de gastos”, estabelecendo exceções, como os gastos com o reaparelhamento das Forças Armadas. Quando fala em “desengessar” o Orçamento da União, destinando verbas de despesas obrigatórias — que normalmente não são executadas para reduzir o deficit fiscal — em investimentos em obras públicas, faz concessões incompatíveis com seu próprio projeto. Num momento de grandes mudanças globais, nas quais vamos ficando para trás, estamos enxugando gelo. O Brasil não tem uma agenda moderna, democrática, socialmente mais justa e mobilizadora da sociedade.

Bolsonaro é o Brasil de sempre

A derrota do projeto eleitoral de Jair Bolsonaro e Paulo Guedes para a economia brasileira é um fato que se pode aplaudir ou lamentar, mas é incontestável. Definido em linhas gerais como uma ampla e profunda transformação do Estado brasileiro, e a consequente “libertação” da economia para gerar aumento de produtividade e crescimento, era um conjunto de intenções aplaudidas por boa parte da sociedade, antes de ser um plano.

Ficou até aqui muito aquém do pretendido (de novo, pode-se saudar ou lamentar essa constatação) e agora não há mais condições políticas, tempo e, ao que parece, intenção de realizá-lo. Grosso modo, a derrota deve ser atribuída a dois grandes fatores. O primeiro é o fato de que não havia uma estratégia, entendida como adequação dos meios (sobretudo políticos) aos fins (reforma do Estado) dentro de um período de tempo. Perdeu-se tempo precioso elaborando o que seria “nova” política, além da dedicação de Bolsonaro ao que se chama na linguagem militar de “teatros secundários”.

Como consequência, para o “projeto” acabou sendo ainda mais violenta a devastação trazida pelo segundo grande fator: o imponderável da pandemia da covid-19, que destruiu qualquer outro cálculo que não fosse o da sobrevivência política. A brutal crise de saúde pública agravou os males que já existiam: escancarou a incompetência do governo central, aprofundou a miséria, a crise fiscal e abalou uma economia que ensaiava uma recuperação apenas tímida, presa aos limites estruturais de sempre.


Para todos os efeitos o presidente é hoje um personagem político diminuído em seus poderes e com escassa capacidade de liderança, obcecado com a situação pessoal, gradativamente abandonado pelas elites econômicas que apostaram nele e agora fascinado pelas recompensas político-eleitoreiras trazidas pelo assistencialismo emergencial. Como se antecipava, a economia definiria os rumos de Bolsonaro, que agora precisa gastar o que não tem.

Surge com razoável nitidez o caminho após a derrota do “projeto”, e é bem a cara do Brasil “velho” (aquele que nunca deixou de ser). A premente ampla reforma tributária esbarra na incapacidade política de se proceder à eliminação de distorções tais como renúncias fiscais que atendem a vários interesses setoriais antagônicos, além da dificuldade política de coordenar os vários entes da Federação. O Brasilzão de sempre, esse que continua aí, indica que o caminho do menor esforço político nos levará a mais e não menos impostos.

A pretendida reforma do Estado dependia de uma reforma administrativa que atacasse gastos públicos – aumentá-los muito além da capacidade de financiá-los foi um claro consenso da nossa sociedade, como assinalou o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida. Reforma que sumiu no horizonte. Há um compromisso verbal com a manutenção da âncora fiscal além do período de emergência, mas as nuvens da política sugerem que esse período será estendido para o ano que vem.

Furar o teto de gastos é uma contingência política criada no plano imediato pela convergência entre os “desenvolvimentistas” no Planalto, entre eles os saudosistas do período militar (que convenientemente se esquecem de como aquilo acabou), e a massa do Centrão que enxerga uma oportunidade nos cofres públicos sem fundos. Juros baixos e inflação bem comportada permitirão que essa “estratégia” se mantenha por um tempo razoável, que é o tempo para se programar para uma reeleição. As ambiciosas privatizações e a propalada diminuição do Estado ficam para depois.

Bolsonaro deve ser ajudado por um conjunto de concessões e obras de infraestrutura que movimentarão setores como construção e atrairão investidores, ainda que preocupados com a eterna insegurança jurídica que paira como sempre sobre os negócios. Vai ser indiretamente ajudado também pelos setores modernos do agro negócio que desprezam como o governo fala sobre questões ambientais, mas acham que bem ou mal sobreviverão às pressões internacionais, e seguirão crescendo.

Com a perspectiva real de vacinas que ajudem a controlar o vírus, a tragédia dos milhares e milhares de mortos vagarosamente se acomoda na psicologia coletiva. No jeitão do Brasil de sempre, aquele que Bolsonaro prometeu mudar, sonhando com o que poderia vir a ser, sem conseguir deixar de ser o que é.

Plano para prevenir novas pandemias custaria 2% dos gastos globais com a covid-19

A cada ano do último século, ao menos dois vírus foram transmitidos de animais que eram seus hospedeiros originais para populações humanas. Entre eles estão o HIV, o H1N1, o ebola e, é claro, o novo coronavírus.

E com 2% do dinheiro que o mundo está gastando com a pandemia de covid-19, seria possível criar um programa de prevenção, ao longo de dez anos, para que outros vírus de perigo semelhante ao Sars-CoV-2 não tenham a chance de passar de seus hospedeiros originais para humanos.

Esses são dois argumentos centrais de um artigo científico publicado recentemente na revista Science e assinado por integrantes de diversos centros acadêmicos e de pesquisa, entre eles as universidades americanas Harvard e Duke e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Citando evidências de que o desmatamento e o contato cada vez mais próximo entre humanos e animais silvestres (seja pelo tráfico, caça ou por necessidade alimentar) é o que causa o "salto" do vírus de seu hospedeiro para humanos, os autores dizem que medidas para diminuir essa proximidade são cruciais - e relativamente baratas - para evitar pandemias futuras.

"Os riscos (de infecções) são maiores do que nunca, à medida que associações cada vez mais íntimas entre humanos e reservatórios de doenças na vida selvagem aceleram o potencial de vírus se espalharem globalmente", diz o artigo.

Os cientistas delinearam uma série de estratégias para limitar essas cadeias de transmissão, com investimentos de US$ 22 bilhões a US$ 31 bilhões por ano por uma década, "para monitorar e policiar o comércio de animais selvagens e impedir o desmatamento tropical" e assim "ajudar a prevenir futuras pandemias", segundo a Universidade de Harvard.

O custo seria uma fração dos gastos trilionários em perdas de vida e econômicas da atual pandemia - que podem chegar a US$ 20 trilhões, segundo algumas estimativas. É também um valor insignificante para as nações mais ricas do mundo, argumenta à BBC News Brasil Mariana Vale, professora-adjunta no Departamento de Ecologia da UFRJ e coautora do estudo publicado na Science.



"Nossa proposta, que não está dita explicitamente no artigo (da Science) mas é consenso entre os autores — e estamos produzindo um estudo mais detalhado a respeito —, é de que quem tem que pagar a maior parte dessa conta são os países desenvolvidos, que têm muito a perder", diz a brasileira.

"As perdas dos EUA e da Europa são enormes, e o custo dessa prevenção é muito pequeno, até US$ 30 bilhões. Só em 2019, os EUA gastaram cerca de US$ 700 bilhões no setor militar."

O dinheiro alimentaria um fundo internacional de financiamento de ações de controle de desmatamento, tráfico de animais, biossegurança e vigilância sanitária.

O grande porém é a vontade política de acessar esse dinheiro, aponta Vale, lembrando que o atual governo brasileiro abdicou dos recursos internacionais do Fundo Amazônia - um dinheiro vindo de países ricos e cujo desenho inspirou a estratégia dos cientistas agora — porque não quis se ater às metas de preservação da floresta.

Na prática, desmatamento, tráfico de animais e até mesmo guerras criam o ambiente propício a pandemias porque todas essas ações aumentam o contato dos humanos com animais silvestres, os quais podem hospedar vírus com potencial pandêmico, diz Mariana Vale.

"Geralmente o desmatamento ocorre em fases, começando pelo corte da madeira e pela caça, que já aumentam o contato (das pessoas que entram na floresta) com animais", explica a cientista.

Quanto mais áreas desmatadas, maiores serão as chamadas bordas da floresta: áreas em que comunidades de pessoas passam a viver e a se alimentar perto de animais silvestres, que podem transmitir vírus diretamente para humanos ou para animais de criação desses humanos, como porcos e aves.

Essa dinâmica é especialmente forte em florestas tropicais, pela quantidade de animais selvagens que elas abrigam, explica Vale.

"É batata: você tem desmatamento, tem epidemia (nas populações próximas) logo depois. Há centenas de artigos científicos mostrando isso", diz ela. "A malária de fronteira, por exemplo, é característica de áreas de fronteira agrícola quando ocorrem desmatamentos. (A doença) vem do contato com a floresta."

Outro grande risco pandêmico vem do tráfico de animais silvestres e selvagens, porque toda a sua cadeia — desde a coleta, o transporte, o comércio e o uso desses animais, para consumo ou para estimação — cria possíveis momentos de contágio.

Os Estados Unidos são, hoje, o maior destino de animais silvestres traficados no mundo, principalmente para o mercado de "pets exóticos", diz a pesquisadora. "Uma quantidade gigantesca de animais chega por essa via (ao país), e tem potencial de contágio. Então a redução desse comércio é muito importante."

Guerras e migração forçada também podem criar momentos de contágio, ao forçarem que pessoas fujam para florestas para se proteger e precisem recorrer a animais silvestres para se alimentar, acrescenta Vale.

Um dos artigos acadêmicos citados pelo estudo da Science foi feito em março deste ano e aponta o potencial dos morcegos em causar pandemias.

Seu possível papel em ter sido o hospedeiro original do vírus da Sars-CoV-2 ainda é investigado pela ciência, mas não para por aí. O vírus do ebola e da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers) provavelmente também chegaram a humanos por intermédio de morcegos.

"Os morcegos são tidos como uma reserva natural para esses vírus, especialmente coronavírus, que constituem cerca de 31% de seu viroma (vírus presentes em seus corpos)", diz o artigo, feito por pesquisadores de universidades chinesas.

E morcegos têm maior probabilidade de se alimentar em regiões onde vivem humanos quando seus habitats naturais forem destruídos ou degradados, o que nos leva a um perigo que ronda a Floresta Amazônica.

"A Amazônia tem um número enorme de reservatórios (de vírus), por ter uma enorme diversidade: é, por exemplo, a floresta com a maior diversidade de morcegos de todo o mundo", explica Mariana Vale. "E as áreas de contato com humanos têm aumentado enormemente com o avanço do desmatamento."

Florestas tropicais são um foco de contágio justamente porque têm a maior biodiversidade, ou seja, têm muitos mamíferos que podem abrigar vírus perigosos.

"Mas não tem problema se a floresta tiver em bom estado, porque daí a taxa de contato (com humanos) é muito baixa e a possibilidade de transmissão se torna muito pequena", diz Vale.

Justamente por abrigar a maior floresta tropical do mundo, o Brasil "tem um papel muito importante na prevenção de novas pandemias", prossegue a pesquisadora.

"A Amazônia é um local de alto risco — talvez não altíssimo, pelo fato de a população humana ser relativamente pequena ali. Mas, ao mesmo tempo em que o Brasil tem essa responsabilidade, tem também a capacidade de fazer um programa exemplar de prevenção de pandemia a partir da ação ambiental. A gente sabe fazer e tem a capacidade institucional para isso, desde satélites para fiscalização até capacidade de vigilância sanitária."

O artigo coassinado por Vale lembra que o Brasil promoveu "o maior exemplo de redução do desmatamento, entre 2005 e 2012, (quando) o desmatamento da Amazônia caiu 70%, ao mesmo tempo em que a produção da soja, dominante ali, aumentou."

Além disso, essa dinâmica de transmissão favorecida pelo desmatamento se aplica também aos arbovírus, cujo hospedeiro é o mosquito, e que são tão comuns no Brasil — da febre amarela ao zika.

No artigo da Science, os pesquisadores defendem a remoção de subsídios que favoreçam o desmatamento e mais apoio aos direitos indígenas, para conter o desmatamento.

E também a proibição internacional do comércio de espécies de alto risco de transmissão de vírus, como primatas, morcegos e roedores. Nesse aspecto, o artigo defende que se invistam US$ 19 bilhões por ano em programas para erradicar o consumo de carne silvestre na China.

Outros quase US$ 300 milhões seriam aplicados na criação de uma biblioteca da genética de vírus, que ajude no mapeamento de locais de onde possam surgir novos patógenos de alto risco.

A estratégia prevê também investimentos em vigilância sanitária e biosegurança na criação de animais de consumo, que são potenciais intermediários de vírus que atingem humanos, principalmente em áreas próximas a florestas.

"Se tem algo positivo que possa sair desta catástrofe que tem sido a pandemia, espero que seja o entendimento de que a saúde do ser humano depende da saúde do planeta", conclui Mariana Vale. "São camadas e camadas de evidência disso. E mesmo assim a gente não consegue resolver esse problema. A perda de biodiversidade tem consequências enormes."