quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Hora de relaxar


Judeus, chaminés e o Brasil

Os judeus são basicamente debatedores. Entre eles, cada evento, pessoa ou objeto jamais é visto de um só ponto de vista. Daí, acentuam os estudiosos, as inúmeras disputas na vida e no pensamento judaicos, incluindo seus livros sagrados como o Talmude e a Torá. Historiadores desse povo disperso e com inserções diversas nos países para os quais foram forçados ou expulsos apontam essa extremada e dramática experiência de ser “o outro”, como um elemento básico dessas discordâncias e dessa afinidade com a dúvida. Afinal, ser o “povo eleito” é ser uma coletividade marcada por uma extremada alteridade...

O atual momento brasileiro está de tal ordem contaminado pela insensatez, ignorância, descrença e cinismo que vale a pena recordar uma velha anedota judaica que me foi contada em Nova York por um rabino e amigo querido. Estou, pois, consciente do meu plágio ou roubo, tão comum, aliás, no meio intelectual e jornalístico. Acentuo o ponto porque quando escrevemos não reconhecer a fonte denuncia o plagiário burro engolfado por sua vaidade. Essa turma que infesta, com pompa e circunstância, o curto cenário brasileiro.


Abe, um jovem judeu, foi ver o rabino:

— Rabi — pediu —, eu ficaria muito grato se o senhor me explicasse o Talmude.

— Claro — disse o mestre —, mas primeiro eu preciso fazer uma simples pergunta. Se dois homens saem de dentro de uma chaminé e um sai sujo e o outro limpo, quem é que se lava?

— O sujo! — respondeu Abe prontamente.

— Não, Abe! — disse o rabino debaixo do olhar espantado do jovem — Quem se lava não é o sujo porque ele se acha limpo. É justamente o limpo que pensa que está sujo. Agora, outra pergunta: se dois homens saem de uma chaminé, e um sai sujo e o outro sai limpo, quem se lava?

Abe deu um riso condescendente:

— O senhor acabou de me responder: o homem limpo, porque ele acha que está sujo

— Não, Abe — replicou o rabino — Cada um olha para si: o homem limpo sabe que não tem que se lavar, mas o sujo lava-se...

— Agora, uma pergunta final. Se dois homens saem de uma chaminé e um está sujo e o outro limpo, quem se lava?

Desta vez Abe fez uma careta de protesto. — Eu não sei, rabino. Poderia ser qualquer um, dependendo do seu ponto de vista.

— Não! Abe! — disse o rabino com firmeza — Se dois homens saem de dentro de uma chaminé, como é que um deles pode sair limpo? Ambos, obviamente, saem sujos e ambos se lavam.
Abe estava agora completamente confuso.

— Rabino, você fez exatamente a mesma pergunta três vezes, mas deu três respostas diferentes. Você está brincando comigo?
— Não, Abe — disse o Rabino — Eu nunca brinco com você. Isto é Talmude...

O aluno de doutorado que jamais leu um livro pergunta ao professor de Sociologia Política.

— Bebeto, me ensina como o Brasil deu no que deu.

— Primeiro eu tenho que lhe fazer uma ou duas perguntinhas — diz o mestre — Eis a primeira: dois ministros saem de uma chaminé, quem se limpa primeiro? O corrupto ou o honesto?

— Quem tem as costas quentes jamais pensa em se lavar — diz o jovem doutorando.

— O que você entende por “costas quentes”? — replica o professor.

— Eu estou pensando no cargo que aristocratiza e isenta, no modo de usar do cargo e no prestígio de quem o nomeou; em quem são os seus compadres, amigos e companheiros; o partido político a que ele pertence; se foi preso ou perseguido em alguma ditadura...

—É uma lista interminável... — pondera o professor doutor Humberto, interrompendo o aluno.

— E o pior é que eles pensam que esses infinitos recursos de poder podem ser corrigidos com leis, e não com uma honesta crítica dos seus costumes: dos limites de suas relações.

— Então, os dois saem sujos? —experimenta o professor.

— Não — responde o aluno — Ambos, sendo legais e caindo dentro da lei, não querem nem saber onde está a sujeira.

Eu dei uns socos uma vez na minha vida contra flamenguistas. Não eram torcedores, mas uma seita. Neste fim de semana, o Flamengo englobou o meu coração e o Brasil. Há muito mais nas identidades sociais do que pensa a nossa vã ideologia.
Roberto DaMatta

Bancos 'generosamente' renegociam dívidas incobráveis de 64 milhões de pessoas

As grandes instituições bancárias do país – Banco do Brasil, Bradesco, Itaú, Santander e Caixa Econômica Federal – anunciaram ontem que de 2 a 6 de dezembro vão concentrar seus trabalhos na negociação das dívidas de 64 milhões de brasileiros que ingressaram no terreno da inadimplência. São aqueles clientes que se encontram com mais de 90 dias sem pagar o que devem. A reportagem de Rennan Setti e Patrícia Valle destaca bem a questão da inadimplência, na edição de terça-feira de O Globo.

Os descontos são enormes, superando até as expectativas dos próprios devedores. É sinal, digo eu, de que as dívidas que contraíram são impossíveis de cobrar, por vários motivos, entre os quais a ausência de bens a serem executados. Além disso como poderia o sistema bancário acionar 64 milhões de pessoas? Seria perda de tempo. Renegociando os débitos, os bancos conseguem reduzir a inadimplência que se generalizou no Brasil.

Com uma inadimplência desse nível, é impossível aumentar o consumo de bens no país. Para ampliar o consumo, de fato só existem dois caminhos: reduzir o desemprego, valorizando os salários, ou então levando a sociedade a quitar suas dívidas hoje, porém nesse caso existe o risco social de criar as dívidas de amanhã.

Isso porque, com a quitação de débitos em atraso, o mercado consumidor passa a realizar novas compras a prazo, o que conduzirá a uma nova fase de inadimplência, tão logo passem os efeitos do 13º salário.

É um desafio para o governo Bolsonaro, sobretudo porque, formalizado novo endividamento, será ainda mais difícil para os bancos e financeiras obterem sucesso através da nuvem de ofertas sedutoras.

Realmente, o montante do endividamento será altamente nocivo para todos: governo, bancos, financeiras e lojas com financiamento direto. O lance de dados agora volta-se para a tentativa de fazer a roda girar, elevando a capacidade de compra e sua disposição de fazê-lo por classes assalariadas que se encontram em dificuldades, a qual se torna impossível de cobrar na mesma proporção que os consumidores têm de pagar.

Dentro desse quadro, a publicidade intensifica-se para fazer com que o mercado adquira os produtos à venda com juros embutidos previamente nos preços. Mas esta é outra questão. A meu ver é fundamental chegar à conclusão de que a grande fonte de consumo é a população brasileira. Mas sua dificuldade aumenta na mesma proporção causada pela incidência de juros sobre as compras oferecidas.

Assim não fosse, claro, o sistema bancário não proporia a redução das inadimplências, uma vez que assim agindo diminui seus lucros. Entretanto, o desafio só terá solução quando o desemprego diminuir. Mas não só o desemprego, também os salários não perderem para a inflação.
Pedro do Coutto

Comportamento de escória

Quando falta ética, quando começa uma coisa de baixíssimo padrão, que se chama ‘fritura’, que é um negócio de baixíssimo nível… isso é coisa de gente covarde, de gente desqualificada, de gente que não sabe administrar a política.
A tal da fritura é a escória do comportamento político
General Santos Cruz, demitido da Secretaria de Governo da Presidência em junho

O Grande Irmão na sala de aula

Problemas não faltam na Educação brasileira: insuficiência na formação inicial e continuada dos professores, falta de foco na aprendizagem, evasão escolar, baixa qualidade do ensino.

Falta sobretudo uma grande articulação que seja capaz de estabelecer um pacto entre o Estado, educadores, famílias, iniciativa privada e terceiro setor com vistas a alavancar a Educação. Sem um salto de qualidade o Brasil não alcançará o crescimento sustentado nem superará a desigualdade social.

Esse deveria ser o foco de um governo que recebeu do seu antecessor avanços importantes como a reforma do ensino médio e a definição da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Deveria, mas não é. Desde o início, a gestão Bolsonaro se dedica a manobras diversionistas que não atacam uma única das inúmeras mazelas do nosso sistema de ensino.


A mais nova artimanha foi a criação de um canal para receber denúncias de conteúdos ministrados na escola que, no entendimento da ministra da Família e Direitos Humanos e do ministro da Educação, atentem contra a moral, a religião, a ética e a família. Por meio dessa central, o governo quer transformar milhões de alunos nos os olhos e ouvidos do “Grande Irmão” na sala de aula.

O Big Brother de Damares Alves e Abraham Weintraub é uma resposta enviesada e equivocada a um problema real: a leitura unilateral e de conteúdo esquerdista por parte de alguns professores na interpretação de fenômenos e da ciência. Nos anos do lulopetismo essa visão distorcida se tornou política oficial, provocando danos como o atraso na definição da BNCC.

Mas não se corrige um erro com outro. A agenda ideológica, seja ela de esquerda ou de direita, sempre será um entrave para a formação dos alunos, como profissionais e cidadãos. Ambas prestam desserviço à Educação.

O estímulo ao denuncismo e à manipulação de crianças e adolescentes são típicos de regime totalitários. O expediente foi largamente utilizado na Alemanha hitlerista, na China de Mao ou na União Soviética de Joseph Stalin. O canal criado por Damares e Weintraub poderia inspirar livros de ficção como o clássico “1984”, de George Owell. Mas, infelizmente, não se trata de boa ficção e sim de desalentadora realidade.

Como medida intimidatória, atenta contra a liberdade de cátedra. Perigosamente delega ao Estado definir o que é moral e quais devem ser os valores da família. Imiscui-se ainda em questões de crença. A Constituição é muito clara quanto ao caráter laico do Estado bem como sobre a liberdade acadêmica.

País nenhum do mundo se desenvolveu e tornou-se uma sociedade mais justa elegendo professores como inimigos da Educação. Por sua própria natureza, o ar que a educação respira é o da liberdade. Estigmatizar professores, torná-los alvos de cruzadas moralistas e reacionárias, é criminoso porque compromete o futuro de nossas crianças e adolescentes.

Não estamos diante de um caso isolado. A priorização de uma agenda ideológica na Educação tem sido a constante desde a passagem relâmpago e deletéria do ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez. Com pouca intimidade com a gramática e a ortografia, o atual ministro Weintraub associou o tom folclórico do seu antecessor com uma inédita truculência verbal.

Em especial, nutre um ódio particular às instituições universitárias. Em vez de tê-las como parceiras, faz acusações levianas sem demonstrar qualquer evidências. Já acusou-as de centro de balbúrdias, agora de ter plantações ostensivas de maconha. Sua irresponsabilidade não tem limites.

É mais fácil partir para baixarias e culpar professores pelo desastre educacional do que desempenhar o papel de articulador e liderança de um grande pacto.

A guerra ideológica do Grande Irmão da Educação serve de manto para encobrir a incompetência de um ministro que tumultua o ambiente escolar, cria divisões desnecessárias e é um deserto de ideias e projetos para alavancar a Educação.

Brasil do choque


Expulsar os vendilhões do templo

O Valor Econômico noticiou na semana passada que a desigualdade de renda no Brasil parou de piorar no 3º trimestre de 2019 após quatro anos de piora continua segundo medição da Escola Brasileira de Economia e Finanças da GV com base nos dados recém divulgados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) do IBGE. A explicação parece estar no re-emprego de 1.533.000 desempregados, ainda que a maioria deles com empregos informais de 2018 para cá.

A concentração da renda é a doença planetária desta transição entre milênios que promete tempos tempestuosos para a democracia em todo o mundo. Nem mesmo a americana, único regime na historia da humanidade que desde a virada do século 19 para o 20 vinha sendo regido pela baliza “antitruste”, a da defesa da concorrência, pressuposto da liberdade que cada ser humano só pode exercer nas suas dimensões de consumidor e trabalhador neste nosso mundo economicamente orientado, escapa ao tsunami mundial de fusões e aquisições de empresas que bate recordes sucessivos ha mais de 30 anos desencadeado pela concorrência predatória dos monopólios sem lei nem limite do “capitalismo de estado” chinês, o novo nome da velha ordem socialista onde ha um só patrão e um só proprietário de todos os meios de produção.

A diferença é que no Brasil, que também não escapou à hecatombe planetária do pequeno empreendimento, o processo de concentração da renda deu-se predominantemente “no tapetão”, em função do avanço avassalador das corporações de “servidores” do estado sobre o PIB na “Era PT” mediante a imposição de aumentos sucessivos de salários e outras formas disfarçadas de remuneração muito acima da inflação. Combinadas a estagnação do investimento publico que custou esse processo maciço de transferência direta de renda das classes pobre e média para a privilegiatura com o consequente sucateamento da infraestrutura, da educação, da saúde e da segurança publicas, foram simplesmente suprimidas as condições essenciais para o resgate dos miseráveis da miséria.

Na China, partindo de abaixo de zero, o processo foi de forte crescimento econômico com reforma geral da infraestrutura física e tecnológica e enorme ganho de poder de concorrência global. Nos EUA e outras economias avançadas as perdas deram-se ao menos concomitantemente com ganhos de produtividade e forte investimento na infraestrutura científica e tecnológica. Mas no Brasil houve perdas por todos os lados que se meça. A única exceção foi o padrão de vida da privilegiatura que hoje desfruta de remuneração 36 vezes maior que a do resto do país computados apenas os ganhos nominais e tem “petrificados” todos os seus outros privilégios, da impunidade às taxas de juros especiais, por cima do maior de todos que é a dispensa de competir por um lugar ao sol e apresentar resultados para manter empregos.

Pobreza – hoje não ha mais espaço para dúvidas quanto a isso – não existe por si, é exclusivamente consequência de instituições políticas dolosamente iníquas. O Japão é uma ilha de pedra que mal tem água que se possa beber por cima e nada de valor por baixo do solo, e está lá como prova do que pode fazer por um povo a adoção de instituições copiadas do mundo que funciona. O Brasil só chegará “lá” quando fizer a mesma coisa, começando por excluir de sua constituição tudo que não diga respeito a todos os brasileiros, sem nenhuma exceção, e por “despetrificá-la” para transformá-la do congelador de privilégios que é hoje num instrumento de facilitação de mudanças dentro de normas democráticas.

Mas para poder partir para isso tem de chegar vivo à altura de fazê-lo, o que requer umas poucas reformas que ficariam melhor descritas como “manobras de ressuscitação” de um organismo econômico em coma. A chamada reforma administrativa é a mais urgente delas. Sem a privilegiatura devolver um pouco do que nos tomou não saímos da UTI. E a que está proposta para o Brasil é até tímida, ainda que inclua um componente proto-revolucionário. Ela não vai longe o bastante para pedir o fim da irrestrita estabilidade no emprego do funcionalismo que está na raiz de todos os vícios que estão matando o Brasil. Propõe apenas “desautomatizá-la”; desliga-la da “relação de sangue”; desatrela-la do simples pertencimento à casta para liga-la remotamente ao mérito e ao desempenho, ao condiciona-la a um período de três anos como trainee do candidato a funcionário estável seguidos de avaliação, ainda que da casta pela casta, e à existência de vaga no serviço público e não apenas da disposição de algum padrinho de aumentar seu rebanho particular.

Nem isso passou da soleira da porta, porém. Como sempre não por interferência de uma oposição formal ao governo, mas por determinação do próprio presidente da República, ele, como todos, um membro da privilegiatura de cujas prerrogativas a mais corrosiva é a de deter o monopólio do acesso à politica. É esta que, nunca é demais lembrar, mantem o divisor de águas do Brasil na barreira vertical do feudalismo – nobreza contra plebeus – e não no da divisão horizontal da democracia à qual nunca ascendemos – esquerda contra direita – como a massa distraída dos otários é levada pela privilegiatura a acreditar.

O estado de direito não é essa (des)ordem institucional que está estabelecida porque nos foi imposta. É um ideal, um devir que se define por tudo que está ausente dela: igualdade perante a lei, um homem um voto, fidelidade da representação do País Real no País Oficial, hegemonia do povo, etc.

Que a privilegiatura use todos os meios para continuar desfrutando seus privilégios compreende-se. Mas ao endossar o critério de “orientação pela proximidade” que faz os políticos deduzirem pela apalpação do “rabo” a figura do elefante da “impopularidade” e invocarem o “estado de direito” como definido pela privilegiatura sempre que alguém tenta empurrar-nos para o verdadeiro, a imprensa nega ao Brasil a chave da libertação dessa servidão. Ja passou da hora da que se pretende democrática expulsar esses vendilhões do templo.

A taxação da gorjeta e a revolução econômica

Dê gorjeta e ajude a rechear os cofres do governo. Nem a caixinha dos garçons está livre da fome arrecadadora da equipe econômica – uma fome seletiva, porque o dono do restaurante, assim como outros empregadores, poderá ser aliviado de alguns custos. Virar de cabeça para baixo as velhas noções de justiça tributária é uma das grandes inovações do governo Bolsonaro. Taxar o pescador artesanal é parte dessa revolução. Ele terá de entregar à União uma fatia do seguro-defeso, o benefício recebido em tempo de reprodução de peixes, quando ele suspende a atividade. Serão 7,5% sobre o valor de um salário mínimo. O pescador se junta, assim, a quem recebe o seguro-desemprego.

Também com alíquota de 7,5%, a taxação do dinheiro pago ao desempregado ajudará, segundo a explicação oficial, a cobrir os custos do programa de empregos para jovens de 18 a 29 anos. Se esse programa produzir o efeito estimado pelo governo, custará uns R$ 10 bilhões. No mesmo período a contribuição sobre o seguro-desemprego poderá render até R$ 12 bilhões. As estimativas são oficiais. A União sairá no lucro. O desempregado e sua família ficarão mais apertados, mas quem se importa com detalhes como esse no governo do “seu” Jair?


Baratear a mão de obra é parte do programa de estímulo à contratação de jovens. As empresas terão menores encargos se obedecerem aos critérios definidos pelo governo. Mas a inovação trabalhista é mais ampla e mais ambiciosa. Cortar os custos da mão de obra é um dos objetivos centrais da reforma tributária recém-prometida pelo secretário da Receita Federal. Essa política tem sido uma das bandeiras mais valorizadas pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

A reforma, segundo explicou o secretário em entrevista ao Estado, será executada em quatro etapas. A última será dedicada à desoneração dos encargos trabalhistas. Se a ideia é manter a carga tributária, será preciso compensar de alguma forma a desoneração dos empregadores. Os detalhes permanecem pouco claros, mas a equipe econômica tentará, provavelmente, respeitar os limites aritméticos. De algum lugar será preciso extrair a compensação. Garantir esse equilíbrio será um dos desafios principais – e a fórmula encontrada, uma das marcas – da mudança tributária.

Mas outros mistérios também são importantes. Não se explicou ainda, por exemplo, como ficarão os impostos estaduais e municipais nesse novo quadro. Ainda falta discutir como se poderá montar uma tributação mais funcional e mais compatível com as necessidades de uma economia mais aberta. Tem-se falado muito sobre simplificação, um tema importante, sem dúvida, mas ainda muito limitado.

Como ficarão as exportações e os investimentos? Haverá, finalmente, um esforço para definir a situação do agronegócio no caso de extinção da Lei Kandir? O governo federal pretende iniciar um trabalho conjunto com os governos estaduais para desenhar um sistema razoavelmente articulado e eficiente? A questão tributária é muito mais complexa – e mais importante para o conjunto da economia – do que parece pensar a equipe econômica.

O ministro da Economia, no entanto, continua tratando como prioritário um item menor – e muito discutível sob vários aspectos – de sua pauta reformista: a redução dos encargos do empregador. O tema seria muito mais importante se essa desoneração bastasse para desencadear contratações. Mas o custo da mão de obra é apenas um dos fatores determinantes da geração de empregos, e nem sempre o mais importante.

Nenhum empresário mentalmente normal contrata funcionários só por causa do custo baixo, isto é, sem precisar de sua contribuição. Ou, para expor o assunto numa linguagem mais negocial: não se contrata mão de obra quando sua contribuição é nula ou até negativa. Ou mesmo quando é positiva, mas muito baixa. Qual pode ser a contribuição de um empregado a mais, mesmo competente e barato, quando as vendas são fracas e as perspectivas de melhora são baixas?

Além disso, necessidades adicionais são normalmente preenchidas, em tempos de ampla ociosidade, pelo pessoal já empregado. Se o quadro mudar, no entanto, e houver necessidade real, o empresário se disporá até a pagar salários elevados, para evitar o desperdício de oportunidades. Se os negócios vão bem e os ganhos potenciais são elevados, quem deixará para os concorrentes um mercado tão apetitoso?

Como o governo recusou, durante mais de um semestre, dar qualquer incentivo à reativação dos negócios, as condições de emprego continuaram muito ruins. No terceiro trimestre, mesmo com alguns sinais de maior atividade, a soma dos desempregados, subempregados e desalentados ainda superou 24 milhões.

Os poucos incentivos em vigor a partir de setembro – como a liberação do FGTS – e o pagamento do 13.º salário devem dar algum impulso ao consumo. Isso poderá favorecer, no começo do ano, alguma recomposição de estoques. Juros baixos também têm ajudado. Mas é difícil dizer, neste momento, se o ganho de vigor da economia será duradouro. Os 70.852 empregos formais criados em outubro são em parte sazonais. Qual o saldo? Nada garante, por enquanto, o prolongamento de um quadro mais favorável.

As estimativas de crescimento econômico em 2020 continuam em torno de 2%, pouco acima, pouco abaixo. Confirmado esse ritmo, a redução do desemprego continuará muito lenta, confirmando a previsão de analistas da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. E se os negócios esquentarem e as empresas precisarem de mais funcionários? Nesse caso, tentarão contratar, e ganharão como bônus a desoneração da folha, se a reforma tributária tiver chegado a esse ponto. A redução de custos será, então, um benefício para os empregadores sem ter sido um fator de criação de empregos. No futuro, quem sabe?

Assim começa o autoritarismo

Esse problema da escravidão aqui no Brasil foi porque o índio não gosta de trabalhar, até hoje. O índio preferia morrer do que cavar mina, do que plantar para os portugueses. O índio preferia morrer. Foi por causa disso que eles foram buscar pessoas nas tribos na África, para vir substituir a mão de obra do índio. Isso tem que ficar claro, ora!
Ricardo Albuquerque, procurador do Ministério Público Estadual do Pará

Alto salário de parlamentares do Chile pode ser reduzido após protestos

Os protestos incessantes no Chile colocaram os membros do Parlamento do país em risco.

"Ladrões", "trapaceiros" e "corruptos" são alguns dos insultos que recebem dos manifestantes desde o início do surto social, no dia 18 de outubro.

Uma das principais causas da indignação com a classe política tem a ver com os altos salários que os deputados e senadores do país sul-americano recebem.

Embora o desconforto sobre esse assunto tenha sido instalado muito antes da crise atual, a violência das últimas manifestações colocou na mesa o tema da redução desses salários.

E assim, pressionados pelo clamor das ruas, e após cinco anos de tentativas fracassadas e resistência de vários partidos políticos, a controversa iniciativa parece finalmente estar saindo do papel.


De um modo geral, o projeto — que já tem maioria e será votado nesta quarta-feira, dia 27 de novembro, na Câmara dos Deputados — busca reduzir a remuneração mensal bruta de senadores e deputados de US$ 11.700 (cerca de R$ 49.300) para US$ 5.850 (aproximadamente R$ 24.700).

Com esta medida, espera-se diminuir a tensão e fazer frente às críticas contra os parlamentares por conta de seus salários "excessivos".

Mas essas remunerações são realmente excessivas em comparação com outros países? Quanto os deputados e senadores chilenos ganham em relação a seus vizinhos da América Latina? E do mundo?

As respostas parecem dar razão aos manifestantes.

De acordo com um estudo realizado pelo Centro Latinoamericano de Políticas Econômicas e Sociais (Clapes UC), em 2018, o Chile era o país que, na América Latina, pagava as maiores remunerações a seus parlamentares, sem considerar subsídios adicionais, como diárias ou despesas de transporte, entre outros.

O relatório afirma que, na região, o salário bruto mensal médio no mesmo ano corresponde a US $ 10.205 (R$ 43 mil), ajustado pela paridade do poder de compra (PPC) — o sistema de medição que permite saber o que um dólar pode comprar em cada país e, portanto, faz comparações mais precisas.

Os parlamentares do Chile, no entanto, recebem mais que o dobro da média, com US$ 23.035 (R$ 97,2 mil, ajustado ao PPC), seguido pelo México e pelo Brasil, com US $ 20.609 (R$ 87 mil) e US$ 16.462 (R$ 69,5 mil), respectivamente.

Além do salário, os deputados brasileiros recebem auxílio-moradia no valor de R$ 4,2 mil mensais e Cota para o Exercício da Atividade Parlamentar, que varia de R$ 30,7 mil a R$ 45,6 mil, dependendo do Estado do deputado. Para os senadores, essa cota vai de R$ 21 mil a R$ 44,2 mil por mês. Conhecido como "cotão", o benefício serve para pagar, por exemplo, gastos com telefonia, correios, hospedagem, alimentação e passagem aérea.

Deve-se esclarecer que o parlamento mexicano reduziu seus salários este ano para 74.548 pesos mexicanos (US $ 3.842 ou R$ 16,2 mil) depois que o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) decidiu que era necessário diminuir o salário de cem funcionários públicos no âmbito de seu "plano de austeridade".

Enquanto isso, os países da América Central recebem salários menores. No Panamá, por exemplo, os parlamentares recebem um salário bruto de US$ 3.025 (R$ 12,7 mil, ajustado ao PPC) — o que corresponde a menos de um terço da média da região.

Esses dados analisados ​​pela Clapes UC consideram apenas a remuneração recebida pelos deputados de cada país, pois nem todos possuem sistemas legislativos de duas câmaras (ou seja, deputados e senadores).

A percepção do salário excessivo dos parlamentares chilenos se intensifica ainda mais quando comparada ao salário mínimo estabelecido no país, que é de US$ 377 (R$ 1.590).

Ou seja, o salário bruto recebido pelos deputados e senadores é 31 vezes o salário mínimo do país.

Mas, fora a América Latina, como é no resto do mundo?

Em 2016, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) realizou um estudo comparativo dos salários no Chile, em relação a outros países do mundo.

Com base nos dados obtidos, a organização garante que o país "ocupa o primeiro lugar nas remunerações parlamentares mais altas do conjunto de 26 países estudados".

O relatório coloca o Chile com um salário de US$ 24.599 (R$ 103,8 mil ajustado ao PPC), bem acima de países europeus como o Reino Unido (US$ 7.892 ou R$ 33,3 mil), França (US$ 6.650 ou R$ 28 mil), Noruega (US$ 6.142 ou R$ 25,9 mil) ou Espanha (US$ 4.164 ou R$ 17,5 mil).

Além disso, o estudo destaca que no Chile a função parlamentar não é de dedicação exclusiva, como em outros países onde eles recebem salários mais baixos, como Noruega e Espanha.

Isso significa que os chilenos podem exercer suas profissões enquanto participam de seu trabalho parlamentar. Algo que na prática só acontece porque muitos têm, por exemplo, escritórios privados de advocacia.

Diante desses dados, muitos cidadãos chilenos pedem uma mudança. De fato, de acordo com a pesquisa da Cadem de junho deste ano, 93% concordam com a redução da remuneração de deputados e senadores.

Mas a pergunta que surge é por que o salário de um parlamentar chileno é tão acima da média.

Para responder isso, precisamos voltar à Constituição de 1980, onde está estabelecido que os deputados e senadores receberão uma remuneração equivalente à de um ministro de Estado, "incluindo todas as atribuições que lhes correspondem".

Em conversa com a BBC Mundo, Claudio Fuentes, especialista em ciências políticas e autor de uma das propostas para reduzir a remuneração parlamentar, explica que "no serviço público havia a ideia de que se o salário é baixo, a pessoa remunerada terá poucas habilidades".

"Você tinha que atrair pessoas dispostas a renunciar a altos salários. Daí o salário dos ministros e, portanto, dos parlamentares: a economia do país exigia pessoas muito bem treinadas. Essa é a lógica por trás dos salários competitivo ", acrescenta.

Isso fez com que o parlamento chileno estivesse cada vez mais integrado pela elite.

"Houve uma transformação. Os representantes começaram a vir de escolas particulares pagas, com uma origem social mais elitista".

E essa é apenas uma das críticas que, nos últimos tempos, têm sido ouvidas nas ruas do Chile.

Que seus políticos, seja de governo ou oposição, estão "desconectados" do mundo popular, pois vivem numa única sociedade, frequentam as mesmas escolas e, nas férias, os mesmos balneários.

A discussão do projeto de lei para reduzir a remuneração parlamentar no Chile não foi isenta de polêmicas.

Isso porque agora não só se busca reduzir o salário bruto de deputados e senadores, mas também sua verba de gabinete, que é usada para pagar assessores e despesas operacionais, entre outras coisas.

No caso dos senadores, essa verba passa de US$ 25 mil (R$ 105,5 mil) por mês, enquanto no caso dos deputados são mais de US $ 12.520 (R$ 52,8 mil).

Outro ponto polêmico tem a ver com a redução do salário de outros poderes do Estado.

Segundo o Banco Central do país, 12 mil funcionários podem ser afetados, e teriam seus salários cortados pela metade.

Lamberto Cisternas, um porta-voz da Suprema Corte, manifestou o desagravo desses funcionários: "Uma baixa desse tipo significa atentar contra a independência dos juízes".

Nesse debate, algumas autoridades chilenas fizeram referência ao caso do México, advertindo que a decisão do presidente do país de reduzir seu salário dentro de um "plano de austeridade" produziu efeitos "indesejados".

"Foi uma redução muito drástica e fez com que muitas pessoas deixassem o governo. Cerca de 200 funcionários renunciaram a partir dessa regra e o restante apresentou recursos de proteção", disse o presidente do Banco Central do Chile, Mario Marcel.

Provavelmente, esses últimos pontos controversos serão discutidos no Senado, quando o projeto chegar lá para sua última aprovação.

O que está claro é que a redução da remuneração parlamentar é praticamente iminente e que, a partir do primeiro semestre de 2020, deputados e senadores chilenos devem estar recebendo metade do seu salário atual.

Pensamento do Dia

 Pawel Kuczynski 

Graciliano, Bolsonaro e o comunismo

O lançamento do Aliança pelo Brasil (APB) reflete a atualidade de um dos romances seminais da literatura brasileira, “S. Bernardo”. A trajetória do homem simples que se tornou um rico produtor rural, egocêntrico e autoritário, completou 85 anos.

A afinidade entre o partido do presidente Jair Bolsonaro e a trama de Graciliano Ramos (1892-1953) converge na imaginária ameaça comunista, no cenário de grave crise econômica, instituições fragilizadas e exaltação da fé religiosa.

O Aliança pratica a defesa do “livre mercado, da propriedade privada e do trabalho, e repudia o socialismo e o comunismo”, anunciou a advogada Karina Kufa no ato de fundação da sigla há cinco dias. Instantaneamente, ressoaram as palavras de ordem do bolsonarismo: “A nossa bandeira jamais será vermelha”.

Impressiona que os preceitos de um partido do século XXI - quando a China comunista se tornou referência capitalista no mundo - remontem ao Brasil do início do século XX. Na revolução de 1930, uma aliança com os militares, e não com os comunistas, alçou Getúlio Vargas (1882-1954) ao poder.

As premissas do Aliança convidam a uma angustiante viagem ao passado. É lamentável que a economia recessiva, na esteira da crise de 1929, dialogue com o cenário econômico atual. No início dos anos 30, o país amargava os efeitos da falência da cafeicultura, no ocaso da política do café-com-leite, enquanto o ministro da Fazenda, Oswaldo Aranha, renegociava a dívida externa e o câmbio despencava.

Passados 90 anos, a economia também resfolega, sofrendo as consequências de uma instabilidade política que remonta às eleições de 2014, agravada pelo impeachment de 2016 e o aprofundamento de uma polarização que não dá sinais de esgotamento.


Assim como em 1930, o desânimo e a insatisfação contaminam os brasileiros. O contraste é que se no Brasil dos anos 30 os focos revolucionários culminaram na insurreição paulista de 32, hoje os brasileiros parecem conformados.

“S. Bernardo” foi publicado em 1934, mas Graciliano Ramos começou a esboçá-lo dois anos antes, em plena revolução constitucionalista, quando Getúlio ainda não havia se consolidado no cargo. Ambientado na área rural de Alagoas, terra natal do autor, os personagens receiam que o agravamento da turbulência abra caminho para o comunismo.

Esse temor é tratado no livro com fina ironia, já que o velho Graça era comunista e o sistema nunca chegou perto de ser implantado no país. O escritor só viria a se filiar ao PCB em 1945, mas viu-se perseguido e preso pela política getulista um ano antes do golpe de 1937.

Com a razão comprometida pelo ciúme obsessivo, o fazendeiro Paulo Honório, proprietário de S. Bernardo - um dos personagens mais irascíveis e cruéis da literatura brasileira - enxerga a ameaça comunista ao seu lado na cama.

“Sim, senhor, conluiada com o [professor] Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim, senhor, comunista! Eu construindo, ela desmanchando!”, praguejou sobre a esposa Madalena.

Numa passagem do romance, ele se queixa de ter gastado uma pequena fortuna com a compra de material escolar para os alunos da escola que inaugurou visando a obter benesses do Estado. “O governador se contentaria se a escola produzisse alguns indivíduos capazes de tirar o título de eleitor”, calculou.

Mas a esposa o pressionava para reformar o prédio, comprar um globo terrestre, cadernos para os alunos - “despesa supérflua” - e a melhorar a qualidade de vida do professor, Luís Padilha. Quando é demitido por conspiração, Padilha culpa Madalena. “Seu Paulo embirra com o socialismo. É melhor a senhora [Madalena] deixar de novidade, essas conversas [sobre justiça social] não servem”, lamentou.

Outra premissa do Aliança pelo Brasil é de que o partido “não pratica a exclusão de Deus da vida” e “prega a moral judaico cristã”. A relação estreita entre política e religião marca a legenda e é pano de fundo do romance.

Um dos personagens principais é o padre Silvério, influente na cidade e com nuances socialistas, mas que refreia seus instintos políticos.
Durante um jantar na casa de Paulo Honório e Madalena, o padre Silvestre defendeu a necessidade de “reformas”, mas não o comunismo, porque este gera “miséria, a desorganização da sociedade, a fome”.

O vigário enfatiza que o comunismo no Brasil seria “lorota” e não pegaria porque o povo brasileiro “tem religião, é católico”. Convicto de que estaria sendo traído - o que nunca ocorreu - o fazendeiro vocifera contra a esposa, mais afeita à literatura, às artes em geral e à política que à leitura da Bíblia: “comunista, sem religião”, vociferou em outro trecho.

O repúdio ao comunismo e ao socialismo - “ideologias nefastas”, conforme o documento do Aliança - é relativizado na prática se o fundador do Aliança ocupa a presidência da República.

Há um mês, Bolsonaro foi recepcionado pelas três principais lideranças da China em plena comemoração dos 70 anos da Revolução Comunista.

A China governada pelo Partido Comunista é o principal parceiro comercial do Brasil: o superávit brasileiro é de US$ 29 bilhões. O Brasil é o quarto principal destino dos investimentos chineses no mundo. São 45 anos de relação bilateral, inauguradas em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, em pleno regime militar brasileiro. Ainda durante a campanha, Bolsonaro se indispôs com os chineses, mas o pragmatismo prevaleceu depois da posse. A retórica ideológica, no entanto, persiste no plano eleitoral.

Governo Bolsonaro vai taxar as grandes... fortunas? Não, as grandes pobrezas

O título desta coluna não tenta ser uma provocação, e sim a descrição de uma dura realidade. Vi a feliz frase sobre “taxar as grandes pobrezas” numa lúcida análise de Eliane Cantanhêde no jornal O Estado de S. Paulo. As reformas que o governo de extrema direita está realizando deveriam, de fato, ter começado com os olhos postos nas franjas mais frágeis da sociedade, e não ao contrário. Assim, em vez de ter começado, por exemplo, taxando as grandes fortunas, os grandes bancos, os grandes dividendos, as grandes heranças, os escandalosos privilégios dos políticos e das corporações, que levaram a política no mundo todo a se arrastar desprestigiada pelo chão, decidiram ampliar ainda mais as grandes pobrezas, cobrando imposto até sobre o seguro-desemprego. Esquecendo-se de que só uma política social assegura o exercício pleno da democracia, com a soberania do povo. O contrário conduz aos tempos sombrios da escravidão.


Sim, o governo Jair Bolsonaro está levando a cabo reformas que, começando pela previdenciária e continuando com mudanças trabalhistas —carteira verde-amarela ou taxar o seguro-desemprego—, castiga os grandes bolsões de pobreza e miséria que juntos representam a maioria dos 210 milhões de brasileiros. O novo projeto das aposentadorias deveria ter começado por levar em conta aqueles milhões de trabalhadores que durante toda uma vida realizaram os trabalhos mais duros, nas fábricas, no campo, em todos os setores menos remunerados. Justamente esses milhões que trabalharam duro durante mais de 30 anos e que, quando chegar sua vez de um justo descanso, terão que sobreviver com uma pensão de fome; eles que, ganhando um salário mínimo, não conseguiram economizar nem acumular capital, porque mal tinham como chegar ao fim do mês sem se endividar.

Ao contrário, quem já ao longo da vida goza de um trabalho bem remunerado chega à aposentadoria com um acúmulo de bens que dá e sobra para poder viver sem aposentadoria e com tranquilidade. Sim, são as grandes pobrezas que estão sendo castigadas e humilhadas para que os privilegiados de sempre possam continuar desfrutando e sem apertos na hora da aposentadoria.

A quem culpar por essa tragédia social em que os mais frágeis serão novamente os bodes expiatórios do capitalismo brutal que vai deixando rios de dor e injustiças pelo caminho? Ao governo ultraliberal de Bolsonaro? Não. Antes da sua chegada, uma esquerda distraída e culpada, que passou 13 anos no poder e com o consenso de até 80% da população em alguns momentos, teve a oportunidade de realizar essas mesmas reformas, mas com o coração voltado para os mais frágeis. Reformas com forte conteúdo social, começando pela base de uma pirâmide de trabalhadores que cada vez se amplia mais, enquanto continua enriquecendo as grandes fortunas que são a minoria da população.

Essa esquerda que neste momento só soube dizer não às reformas da ultradireita, sem apresentar alternativas sociais, não foi capaz de realizar as grandes reforma com forte conteúdo social. Nem a trabalhista nem a política nem a do Estado, ainda que tenha feito algumas mudanças na Previdência. E não porque faltasse a esses governos consenso popular ou força no Congresso, já que governou com os partidos mais fortes. Foi, entretanto, incapaz de instaurar governos social-democratas, de centro-esquerda, em vez de sair de braços dados com a grande direita do dinheiro. Ainda me lembro de ter escutado o então presidente Lula dizer numa reunião com banqueiros em São Paulo: “Vocês nunca antes tinham ganhado tanto como comigo”. Triste recorde que humilha os pobres que devem pagar juros absurdos para poder sobreviver.

Agora, quando essa direita tomou o poder e é ela que faz essas reformas com o coração posto naqueles que menos precisam delas, de pouco serve derramar lágrimas de carpideira. Já é tarde. A esquerda não terá mais força para suscitar um movimento de rebeldia. Perdeu o trem, adormecida que estava sobre os louros de um consenso impressionante, que não soube aproveitar.

Em um período semelhante de 14 anos, na Espanha, o governo socialista de Felipe González, com apoio do rei Juan Carlos, teve tempo de transformar um país arruinado, despedaçado após 40 anos de dura ditadura franquista. Encontraram um país que precisava ser reconstruído política, jurídica e socialmente após décadas de pobreza material e cultural, em que tinham sido abolidas todas as liberdades modernas e os direitos mais elementares. E o fizeram com as grandes reforma progressistas que devolveram ao país os direitos sindicais, de liberdade de expressão, de divórcio, de gênero e do aborto. Essas grandes reformas que colocam um país na rota da modernidade e que a esquerda brasileira não soube concluir quando tinha força para isso.

Vivemos tempos duros, nos quais uma onda mundial tenta reverter as grandes reformas democráticas que tornaram o mundo menos desigual e lhe permitiram viver os ares de uma democracia séria e segura, sem a qual não existem reformas possíveis. E nestes momentos quem mais sofrerá com essa tentativa de volta à escuridão política e social serão sem dúvida os párias de sempre, que, por sua vez, sustentam com seu trabalho as colunas do mundo.

Se os políticos de esquerda e de direita encasquetarem em não querer olhar para essas massas de trabalhadores que a sociedade do consumo abandonou na pobreza; se não forem capazes de abrir os olhos a essas tremendas injustiças sociais que aumentam com os problemas dos milhões de migrantes que percorrem o mundo como uma sombra e um alarme, então é possível que pela primeira vez o mundo, que sempre foi melhor em seu presente que em seu passado, porque as conquistas da ciência e a tecnologia lhe abriam espaços novos de liberdade, acabe nos fazendo suspirar pelo passado, numa grave miragem perversa.

O Brasil se reduz cada vez mais a essa nova trindade apresentada simbolicamente pelo novo partido criado por Bolsonaro, de Deus, violência e caça às bruxas comunistas, que já não existem mais porque, além de tudo, se aburguesaram. A esses milhões que se entregaram nas mãos de Bolsonaro agitando a bandeira de Jesus com a Bíblia na mão seria preciso recordar a dura passagem do evangelho em que Jesus grita: “Atam cargas pesadas e as colocam sobre os ombros dos mais fracos que sois incapazes de suportar” (Mt, 23, 4ss).

Que leiam, sim, os evangelhos, mas para entender que o cristianismo foi, em seus primórdios, revolucionário e em defesa dos mais necessitados. Que o profeta de Nazaré, perante as multidões famintas, necessitadas e sem poder que lhe seguiam, exclamou: “Tenho compaixão por esta gente”. E é essa compaixão por quem é abandonado no caminho por ser diferente é a única coisa que pode mais uma vez salvar este mundo atormentado e cada dia mais injusto. Quem se atreverá a apostar nessa utopia sem a qual a realidade nos levará ao inferno da violência e do desprezo pelos valores do único humanismo que pode nos salvar? Todo o resto são inúteis atalhos sem saída.

Cabe aqui um recado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, que justificou a alusão feita ao famigerado decreto AI-5 por temer protestos como o que sacodem o resto da América Latina. Ministro, troque o medo pela compaixão proposta por Nazaré. Deixe-se guiar pelas vozes e os sentimentos certos. Pode valorizar os mascarados agressivos dos protestos do Chile, ou prestar atenção na música do cantor Victor Jara que os jovens chilenos têm cantado durante os atos: “o direito de viver em paz”, buscando dignidade por um novo pacto social que corrija as mesmas injustiças de taxar a grande pobreza, herdada de Pinochet.

E quem paga...

A agenda social existe, e não é por causa do Chile ou da Argentina. Existe porque deve existir. Todos os estudos do mundo mostram que é correto transferir renda aos mais pobres. Então essa agenda existe. Agora, tudo passo a passo. Estamos evoluindo
Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica

Revolta contra elites alavanca protestos na América do Sul

Bolívia, Chile, Equador e agora Colômbia: na América Latina crescem os protestos contra os governos. Eles nem afetam tanto países governados autocraticamente, onde muitos esperavam uma maior exacerbação, como Nicarágua e Venezuela, mas outros onde isso era menos esperado, especialmente o Chile.

Antes conhecido como modelo na América do Sul, o país está passando pelos maiores protestos desde seu retorno à democracia. O que começou devido ao aumento relativamente insignificante das tarifas do metrô evoluiu para um debate sobre a desigualdade e a elaboração de uma nova Constituição.

Na Bolívia, dois blocos se opõem de forma inconciliável após uma eleição presidencial presumivelmente manipulada, e a renúncia e exílio do ex-presidente Evo Morales.

No Equador, o presidente Lenín Moreno foi forçado a voltar atrás no início de outubro e reintroduzir subsídios para combustível após violentos protestos. O corte dos subsídios era na verdade uma condição para a concessão de um empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI).

E na Colômbia, na última sexta-feira os manifestantes protestaram contra a desigualdade econômica, corrupção e violência contra indígenas e ativistas.

"Não devemos cair na armadilha de colocar tudo no mesmo saco. Os motivos também têm raízes locais, embora existam semelhanças. As populações têm uma enorme insatisfação com suas elites, tanto econômicas quanto políticas", analisa Ingrid Spiller, chefe do departamento América Latina da Fundação Heinrich Böll. Para a especialista, as elites nacionais são "completamente alheias à realidade" e "não têm mais noção do que realmente preocupa o povo".

Philipp Kauppert, diretor do escritório da Fundação Friedrich Ebert na Bolívia, também enfatiza que, apesar da diversidade da situação política, há uma "forte insatisfação das populações com suas elites políticas e desconfiança em relação ao partidos".


Na comparação internacional, o continente latino-americano apresenta alto grau de desigualdade social. Mas atribuir os atuais protestos a apenas essa causa, como se costuma fazer na atual cobertura jornalística, parece não ser consistente. Na América Latina está atualmente sendo revelada uma profunda desconfiança em relação às elites, independente de estarem politicamente à esquerda ou à direita.

Normalmente, uma democracia é capaz de integrar os insatisfeitos com o governo num pool de partidos de oposição dentro do sistema político. Por que isso parece não funcionar na América Latina? "Na maioria dos países da região, no passado se votou pela mudança de governo, ou seja: os canais democráticos foram usados para votos de protesto, resultando na vitória de outsiders, como no caso de Bolsonaro no Brasil", diz Philipp Kauppert.

Também na Bolívia ele vê um papel destacado dos outsiders que prometem um caminho completamente novo. Chi Hyun Chung, um político evangélico de direita de ascendência sul-coreana, era considerado um azarão nas eleições presidenciais de 20 de outubro, mas surpreendentemente conquistou 9% dos votos. Algumas semanas atrás, o político local Luis Fernando Camacho ainda era completamente desconhecido de um grande número de bolivianos. Com barulho e palavras de ordem conservadoras, ele agora avança com toda força, tendo o cargo de presidente na mira.

"Muitos não acreditam mais ser possível mudar algo através de eleições ou do trabalho em partidos políticos. A insatisfação é tão alta que já chega às ruas". Kauppert acredita que essa situação reacendeu um debate na América Latina sobre a crise fundamental da democracia. No entanto: "Acredito que ainda seja possível superar esses protestos e crises na região por mecanismos democráticos, e prefiro falar de uma crise dos partidos, já que muitos não se sentem mais representadas por seus partidos e a elite política."

Ingrid Spiller, por sua vez, questiona a cultura democrática em grande parte dos países latino-americanos. "A população pôde ir às urnas, mas no fim o Estado implementou políticas que não serviam a um equilíbrio de interesses entre todos os setores da população e das classes sociais". Por fim, teriam prevalecido outros grupos de influência poderosos, definindo a política estatal.

A especialista ressalta, além disso, que na América Latina também há menos partidos com programas políticos definidos do que na Europa: "Os partidos latino-americanos são mais grupos de interesse e, em grande parte, desacreditados entre a população."

Mas ainda permanece a questão: por que só agora explode esse descontentamento, sentido basicamente por uma geração jovem que não vivenciou nenhuma das ditaduras latino-americanas passadas?

"Em muitos países da América Latina, uma nova classe média surgiu nos anos após a democratização, nas décadas de 80 e 90. E com ela veio a esperança de um futuro democrático e socialmente mais justo. Essa classe média chegou a seus limites econômicos também devido à queda dos preços das matérias primas e outros fatores", avalia Philipp Kauppert. Assim, foi-se o boom dos altos preços das matérias primas, que fortalecera a economia de muitos países da região e também essa jovem classe média, sem ter fornecido a prometida prosperidade estável.

Depois de Equador, Chile e Bolívia, o "vírus do protesto" latino-americano saltou recentemente para a Colômbia. Na última sexta-feira (22/11) ocorreram as maiores manifestações em massa na história recente do país. "É possível irmos além da região", frisa Kauppert. "De Hong Kong ao Líbano até a América Latina, parece haver um maior potencial de mobilização no mundo. Gente que não tinha coragem, ou achava que não faria diferença, está agora indo às ruas para mostrar sua insatisfação e ainda canalizá-la politicamente."

O subdiretor da Fundação Friedrich Ebert postula que a mídia social também está ajudando a criar uma consciência global sobre questões como a desigualdade e a presunção das elites políticas. Caso seja assim, adverte, é possível a onda de protestos se espalhe para outros países.
Deutsche Welle