sexta-feira, 23 de julho de 2021

O absurdo observado por Ignácio de Loyola Brandão em 1961 virou o Brasil de 2021

“Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, publicado em 1981, é uma obra-prima da literatura do absurdo, que antecipa em 40 anos o nosso estranhíssimo Brasil enfermo de hoje.

Autores da literatura do absurdo têm o dom de ver nas minúcias da realidade e nas entrelinhas anômalas da vida cotidiana indícios de uma sociedade que, aparentemente, ainda não existe. E parece que não vai existir. Mas que está lá, na invisibilidade enganadora da falsa consciência do real, do que é ainda gestação de relações sociais e de mentalidades. Uma sociedade de contraste com tudo que estamos habituados a considerar uma sociedade “normal”.

Parece fantasia de escritor imaginoso. Cada vez mais, porém, essas obras são verdadeiras etnografias de transformações sociais que levarão a sociedades tão absurdas quanto suas antecipações literárias.

Em seu primeiro livro, “Depois do sol”, Loyola traz à luz de seus contos as revelações da noite da cidade de São Paulo. A noite como o inverso do dia, não apenas como o diferente, a sociedade oculta. Na antropologia brasileira, as realidades invertidas da noite de exu foram estudadas por Marco Aurélio Luz e Georges Lapassade, em “O segredo da macumba”. O que confirma a etnografia subjacente à literatura do absurdo.

O absurdo de “O outro lado do espelho”, de Lewis Carroll, é cada vez mais real. Alice, a personagem do livro, era real, existia e entendia a narrativa nele contida. As histórias de Franz Kafka são o absurdo naturalizado.


Na fábula política do avesso do avesso de “A revolução dos bichos”, de George Orwell, podemos, com facilidade, identificar sociedades que conhecemos, a começar da nossa, naquela conclusão fatídica: no baile de humanos com porcos, “já se tornara impossível distinguir quem era homem, quem era porco”.

Em “Não verás país nenhum”, Loyola descreve uma estranha São Paulo, progressivamente corroída pelo absurdo de um sistema de dominação e de um modo de vida decorrente, aos quais as personagens se ajustam com pequena estranheza.

Souza, a personagem principal, aos poucos será diluído no emprego que não o emprega. Adelaide, sua mulher, esposa adjetiva e praticamente imaginária, revelará com o tempo que ela é, na verdade, o oposto da mulher pelo marido imaginada. Os habitantes da cidade enferma são realidades irreais, desencontradas consigo mesmas, conformadas no inconformismo meramente residual.

Loyola não pretendeu fazer sociologia, embora haja no livro um fundo de temas sociológicos, do tipo tratado pela sociologia fenomenológica, a que de certo modo analisa as relações sociais a partir do imaginário que lhes dá sentido.

O absurdo descrito no romance, com o tempo, foi se confundindo cada vez mais com a realidade. A invasão da casa-refúgio da classe média, de Souza, é patrocinada por um sobrinho de Adelaide, a esposa que se fora e já não existe. Estranhos passam a nela viver como se fosse sua própria casa. Estavam à vontade no que não era seu, enquanto Souza já não estava à vontade na casa que supunha sua. É o direito de propriedade que se esfuma.

A realidade da classe média vai se desgastando para passar a ser aquilo que era, uma fantasia cruel, um vazio. Uma classe cada vez mais excluída até o ponto de se tornar parte do monturo, do lixo da cidade. Ela se torna uma classe de descartáveis, sem lugar, seres que não são, confinados no nada, desprovida dos valores e privilégios da sociedade de consumo, de suas coisas cada vez mais inúteis como os móveis de apego simbólico levados para o lixão.

Sem objeto, os sociólogos têm sua cota de desfiguração na sociedade que se esvai. A transformação do modo de ser da sociedade do absurdo reduzido a pseudoconceitos. Eles começavam a se esmerar na conceituação sociológica que nada conceitua a não ser a superficialidade de uma sociedade já desprovida de práxis e de protagonismo histórico. A sociedade que é não sendo, a da alienação absoluta.

O absurdo observado por Loyola em 1961 tornar-se-ia a sociedade brasileira de 2021. O Brasil de hoje não é uma surpresa, um acidente, um erro de cálculo. Lentamente, há 60 anos, ele já estava sendo o que é hoje. O poder se tornou um jogo de aparências, um faz de conta, não raro um circo. O povo deixou de ser agente de sua própria história para se tornar espectador passivo e indiferente.

À luz da sociedade cinzenta da atualidade, das incertezas de agora, dos abusos do poder paralelo e oculto, das invisibilidades planejadas que nos manipulam e manipulam nossa própria vida, podemos reler “Não verás país nenhum” como obra de antecipação do Brasil de agora. Ninguém podia imaginar, porém, que a metamorfose ocorreria tão depressa e de maneira tão amplamente perturbadora.

Pensamento do Dia

 


Um Brasil sem futuro

Falta um ano para as eleições presidenciais, e só tem turbulência em volta. Mas, entre disparates golpistas, a Arena renascendo e os generais aloprados, temos outro problema grave. No longo prazo, talvez mais grave. Quem frequenta o circuito dos encontros com pré-candidatos, lê atento os jornais e conversa com políticos de todos os partidos logo percebe o tamanho. Quase nenhum dos principais líderes políticos vive no século XXI. Constroem suas ideologias, à direita ou à esquerda, sobre os alicerces de uma realidade que não mais existe. E isso quer dizer que, como está, não importa que grupo suceda a Bolsonaro. Governará o país sem um diagnóstico da transformação em curso.

Há exceções. Alguns deputados federais e mesmo senadores, um ou outro dirigente partidário, mesmo técnicos e acadêmicos que dão apoio às candidaturas. Mas são exceções e, quase sempre, gente com influência menor nos altos-comandos das legendas.

Isso não tem rigorosamente nada a ver com idade. Joe Biden é um político do tempo da Guerra Fria que já se candidatara à Presidência quando a internet apareceu, já concorrera duas vezes à Casa Branca quando se falou a sério de mudanças climáticas e, quase octogenário, redirecionou o Estado a toda no sentido da era em que vivemos.


Sua visão de EUA se traduz em dois pilares. Uma sociedade e uma economia que sejam digitais e verdes. As frentes para tocar esse projeto, no entanto, são muitas. Uma é dar infraestrutura ao país para que possa crescer nesse caminho. Isso quer dizer redes físicas de banda larga por toda parte. Também quer dizer subsídios, investimentos e incentivos para a conversão de antigos e criação de novos negócios. Mas também é um cuidado pesado com retreinamento de mão de obra. E, principalmente, a compreensão de que, se a operário basta o ensino médio, no século XXI um percentual maior da população precisa ter formação superior. Este é um século em que o PIB está relacionado ao número de cérebros bem-educados. País que não dá universidade a muita gente é país pobre.

Outra perna do trabalho é enfrentar os monopólios do Vale do Silício. Há motivos pontuais — a pandemia de desinformação, que abala democracias e faz morrer gente. Mas, no médio e longo prazos, é mais que isso. Com talentos e recursos financeiros concentrados em poucos grupos fortes demais, como é a natureza dos monopólios, a criação trava, o mercado congela, a inovação desaparece.

Operários em fábricas não voltarão mais. Toda a classe em cima da qual Karl Marx ergueu sua leitura de uma revolução futura deixará de existir. Afinal, “quarta era industrial” é metáfora, não descrição. A Era Industrial acabou. Assim como o tempo do combustível fóssil está terminando — sim, ele resistirá ainda um quê a mais, só que não muito. Bata na porta de uma petroleira, e a moça da recepção logo corrigirá: “Não, aqui somos uma empresa de energia”.

Isso não quer dizer que não exista mais necessidade de esquerda. O digital criou um tipo de precarização de serviços, com Ubers e Rappis, que precisa ser resolvido. Tampouco aponta para a extinção da direita — empresários precisam de mais apoio do que nunca para fazer a transição digital. É um processo complexo, difícil, inevitável — que, no Brasil, não está sendo feito em inúmeros setores. Isso torna o país ainda menos competitivo.

A conta da incompetência de todos os governos passados com educação chegou. Precisaremos resolver a educação pública de qualidade com urgência. Isso e um projeto econômico verde para a Amazônia são as prioridades do próximo Planalto. Só que formar daqui a 20 anos não bastará. Os empresários Horácio Lafer Piva, Pedro Passos e Pedro Wongtschowski vêm defendendo um programa de importação de cérebros. Estão certos, e é inevitável.

É o básico para qualquer governo pós-pesadelo.

Liberdade da vacina


Quanto mais pessoas vacinadas, mais livres seremos novamente
Angela Merkel

São todos cúmplices

Não resta espaço para dúvida de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, mandou o recado ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), ameaçando caso o voto impresso não fosse aprovado.

Lira trucou a ameaça e, como o governo Jair Bolsonaro tem DNA golpista, mas é eminentemente composto de pessoas despreparadas e algo covardes, o presidente e seu general recolheram as ameaças, ao menos por ora, e o resultado foi que o PP e o Centrão avançaram algumas casas para tomar conta de tudo — se apossando de novo até de espaços dos militares.

Foi o Centrão que tirou o general Eduardo Pazuello da Saúde. Mantendo Roberto Dias, o assessor que o general e seu sub, o coronel Elcio Franco, não conseguiram demitir.

Agora é de novo um alto expoente do PP, seu presidente, Ciro Nogueira, que faz outro general pegar o quepe. Luiz Ramos, assim como Pazuello, verga a espinha e aceita ir para um ministério de menor importância.

O mesmo faz Paulo Guedes, ao bater continência para o capitão e para a ala política que já comanda a maior parte do Orçamento e aceitar perder um naco de seu “superministério” para acomodar outro demitido de luxo.


Para onde esses arranjos por baixo da mesa levam o Brasil? Para a esculhambação institucional e política a cada dia mais absoluta e para a constatação óbvia de que não temos um governo, mas uma bodega tocada à base de muita fisiologia, nenhum trabalho, zero planejamento e uma única ideia fixa: a reeleição cada vez mais difícil de alguém que nunca poderia presidir qualquer país.

Quem ameaçou, Braga Netto, e o aliado de quem foi ameaçado, Ciro Nogueira, dividirão a mesa às reuniões ministeriais como se nada tivesse acontecido. O resto das autoridades, aquelas a quem sempre cobro neste espaço, seguirão fingindo acreditar nos desmentidos frouxos, sem se dar conta de que, de bravata em bravata, vai-se corroendo a democracia a partir de dentro.

Está claro que Braga Netto não fala em nome do conjunto das Forças Armadas. Mas também resta evidente que a quantidade de golpistas que ousam dizer suas ideias em voz alta é maior hoje no meio militar que em 2018. Isso já é altamente nocivo para o ambiente político e institucional brasileiro. E nos cobrará um preço enorme.

Também é evidente que Lira, Nogueira e os demais “progressistas” — ah, as ironias das siglas partidárias — não vão com Bolsonaro para uma tentativa canhestra de invasão do Congresso, à Trump. Mas também é cristalino quanto ganharam poder e dinheiro do Orçamento, em múltiplas frentes, só para blindar o presidente e tentar ajudá-lo a se livrar da CPI da Covid e a emplacar seus nomes no Senado.

Além dos bilhões das emendas do relator, nome oficial do orçamento secreto cujo tesoureiro é Lira, agora há o fundão multiplicado. Será que Bolsonaro, agora que o PP deixou vazar a ameaça de Braga Netto e que Ciro Nogueira está de mudança para o Planalto, vai mesmo vetar a farra? Ainda mais diante da possibilidade de fusão de PSL, PP e DEM, partido que pode ser seu próprio destino numa cara campanha eleitoral no ano que vem? Difícil de acreditar nisso, hein?

Não espanta que Bolsonaro, diante desse cenário, declare seu amor filial ao Centrão. Nem mesmo surpreende que os militares, tirados por ele da caserna, comecem a demonstrar nostalgia da ditadura.

Mas chama muito a atenção o silêncio covarde dos que se diziam democratas, iam às ruas pedir o fim da corrupção — e agora se calam diante da escalada diária de mortes, ruína social e econômica e autoritarismo.

São industriais, integrantes do mercado, profissionais liberais e outros que apertaram 17 e agora não têm a coragem de admitir que elegeram o pior presidente do Brasil. São tão cúmplices quanto os fardados e o Centrão.

No Brasil, Robin Hood trabalha para os ricos

No país a que chamamos de Brasil, levou-se muito tempo, séculos, para os governantes se preocuparem minimamente com o desenvolvimento de seu próprio povo, particularmente com a maioria pobre e majoritariamente negra. No império, os negros eram proibidos de estudar. Depois da abolição da escravidão, em 1888, a proibição acabou, mas as poucas escolas construídas localizavam-se longe, muito longe, de onde viviam os negros dos grandes centros urbanos _ dificultar a mobilidade foi, aliás, um dos principais expedientes do apartheid sul-africano que tanto chocou o mundo de 1948 a 1991.


Na Ilha de Vera Cruz, o fim da escravidão como fator de acumulação de capital jamais foi aceito pelos “proprietários” de escravos. Barões do café e outros representantes das oligarquias rurais que detinham o poder econômico naquela época exigiram indenização pelo “prejuízo financeiro” imposto a eles pelo imperador Dom Pedro II. Insatisfeitos, ajudaram a acabar com a monarquia m 1889, pouco mais de um ano após a abolição, a fundar, por meio de golpe militar, uma República de araque (porque dominada por duas oligarquias de dois Estados), e a pressionar os presidentes do novo regime a importar mão-de-obra da Europa para embranquecer nossa classe trabalhadora.

Tanto ódio por outro ser humano condenou este país ao fracasso, à construção de uma sociedade profundamente injusta, desigual, racista, violenta com os mais pobres e com a maioria negra, irreconciliável. Um leitor indignado fez certa vez paralelo com os Estados Unidos para contestar a ideia de que o racismo, e não a taxa de juros, a péssima infraestrutura e o sistema tributário caótico, é o maior entrave ao desenvolvimento do Brasil. Ocorre que, nos EUA, os negros representam 12% da população; aqui, 56%, numa contagem subestimada.

Ora, se uma minoria branca e endinheirada não aceita conviver com a maioria negra e pobre, nós temos um problema, Houston. Negros americanos, descendentes como os do Brasil de africanos escravizados, lutam por direitos e igualdade desde sempre e, mesmo assim, foram submetidos a regimes de segregação racial, em alguns Estados, até a década de 1960. A segregação oficial foi banida, políticas afirmativas para tentar igualar oportunidades entre negros e brancos foram adotadas, iniciativas de compensação pelo horror sofrido durante séculos de escravidão e de segregação se tornaram realidade, mas, mesmo assim, a população negra americana continua sendo discriminada de maneira ignominiosa, talvez, pela maioria branca, em todos os setores da sociedade do país mais rico do mundo.

Aqui, a maioria da população, negra, oprimida por quase 400 anos de escravidão “oficial” e por outros 133 de discriminação dissimulada e, portanto, covarde, começou a se beneficiar de políticas afirmativas apenas neste século e restritas ao Estado.

Cotas de 10%, 20%, reservadas ao maior contingente populacional do país, são humilhantes e estão longe de resolver o problema secular que nos assola e nos impede se sermos uma nação.

As consequências do nosso péssimo começo _ não se pode falar nem em “contrato social”, afinal, como bem explica Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV, não há contrato quando uma das partes é infinitamente mais beneficiada pelos recursos do Estado do que as outras _ estão aí, na paisagem urbana de nossos centros urbanos, na estagnação econômica que nos assola há 40 anos, na concentração de renda que relega 50 milhões à miséria e a mais de 100 milhões à pobreza e à falta de oportunidades para ascender e ter uma vida razoavelmente digna, na violência que tira a vida de cerca de 60 mil brasileiros todo ano, a maioria de pele negra ou parda. A Constituição de 1988 é, sem dúvida, o maior avanço que este país já teve na conformação de um arcabouço legal que nos permita começar a mudar essa paisagem. Desde então, os gastos sociais cresceram de forma significativa, mas os grandes problemas permanecem intocados.

Um deles é o domínio do orçamento público por interesses de grupos específicos, que curiosamente têm conseguido aumentar suas benesses nas últimas duas décadas, talvez, por saberem que, em algum momento, realizar-se-á em plena Brasília, localizada a mais de mil quilômetros do mar, o último baile da Ilha Fiscal (festa de gala que simbolizou o fim da monarquia, realizada no pequeno palácio, localizado na Baía da Guanabara).

"Não é segredo e tampouco exagero observar que muita gente enriqueceu no Brasil pela via da captura do Estado. Exemplos recentes incluem subsídios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), desonerações tributárias, gastos tributários e outros. Essa forma de enriquecimento constitui um verdadeiro veneno social”, escreve Arminio Fraga ex-presidente do Banco Central, em seu sucinto e ao mesmo tempo iconoclasta estudo “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”.