Na Ilha de Vera Cruz, o fim da escravidão como fator de acumulação de capital jamais foi aceito pelos “proprietários” de escravos. Barões do café e outros representantes das oligarquias rurais que detinham o poder econômico naquela época exigiram indenização pelo “prejuízo financeiro” imposto a eles pelo imperador Dom Pedro II. Insatisfeitos, ajudaram a acabar com a monarquia m 1889, pouco mais de um ano após a abolição, a fundar, por meio de golpe militar, uma República de araque (porque dominada por duas oligarquias de dois Estados), e a pressionar os presidentes do novo regime a importar mão-de-obra da Europa para embranquecer nossa classe trabalhadora.
Tanto ódio por outro ser humano condenou este país ao fracasso, à construção de uma sociedade profundamente injusta, desigual, racista, violenta com os mais pobres e com a maioria negra, irreconciliável. Um leitor indignado fez certa vez paralelo com os Estados Unidos para contestar a ideia de que o racismo, e não a taxa de juros, a péssima infraestrutura e o sistema tributário caótico, é o maior entrave ao desenvolvimento do Brasil. Ocorre que, nos EUA, os negros representam 12% da população; aqui, 56%, numa contagem subestimada.
Ora, se uma minoria branca e endinheirada não aceita conviver com a maioria negra e pobre, nós temos um problema, Houston. Negros americanos, descendentes como os do Brasil de africanos escravizados, lutam por direitos e igualdade desde sempre e, mesmo assim, foram submetidos a regimes de segregação racial, em alguns Estados, até a década de 1960. A segregação oficial foi banida, políticas afirmativas para tentar igualar oportunidades entre negros e brancos foram adotadas, iniciativas de compensação pelo horror sofrido durante séculos de escravidão e de segregação se tornaram realidade, mas, mesmo assim, a população negra americana continua sendo discriminada de maneira ignominiosa, talvez, pela maioria branca, em todos os setores da sociedade do país mais rico do mundo.
Aqui, a maioria da população, negra, oprimida por quase 400 anos de escravidão “oficial” e por outros 133 de discriminação dissimulada e, portanto, covarde, começou a se beneficiar de políticas afirmativas apenas neste século e restritas ao Estado.
Cotas de 10%, 20%, reservadas ao maior contingente populacional do país, são humilhantes e estão longe de resolver o problema secular que nos assola e nos impede se sermos uma nação.
As consequências do nosso péssimo começo _ não se pode falar nem em “contrato social”, afinal, como bem explica Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV, não há contrato quando uma das partes é infinitamente mais beneficiada pelos recursos do Estado do que as outras _ estão aí, na paisagem urbana de nossos centros urbanos, na estagnação econômica que nos assola há 40 anos, na concentração de renda que relega 50 milhões à miséria e a mais de 100 milhões à pobreza e à falta de oportunidades para ascender e ter uma vida razoavelmente digna, na violência que tira a vida de cerca de 60 mil brasileiros todo ano, a maioria de pele negra ou parda. A Constituição de 1988 é, sem dúvida, o maior avanço que este país já teve na conformação de um arcabouço legal que nos permita começar a mudar essa paisagem. Desde então, os gastos sociais cresceram de forma significativa, mas os grandes problemas permanecem intocados.
Um deles é o domínio do orçamento público por interesses de grupos específicos, que curiosamente têm conseguido aumentar suas benesses nas últimas duas décadas, talvez, por saberem que, em algum momento, realizar-se-á em plena Brasília, localizada a mais de mil quilômetros do mar, o último baile da Ilha Fiscal (festa de gala que simbolizou o fim da monarquia, realizada no pequeno palácio, localizado na Baía da Guanabara).
"Não é segredo e tampouco exagero observar que muita gente enriqueceu no Brasil pela via da captura do Estado. Exemplos recentes incluem subsídios do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), desonerações tributárias, gastos tributários e outros. Essa forma de enriquecimento constitui um verdadeiro veneno social”, escreve Arminio Fraga ex-presidente do Banco Central, em seu sucinto e ao mesmo tempo iconoclasta estudo “Estado, Desigualdade e Crescimento no Brasil”.
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