quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Passado presente

Se o passado se repete no presente, já não é mais passado, é presente
Paulo Coelho

Não há planeta B

No final de sua vida o escritor e poeta Ferreira Gullar dizia ser preciso reinventar a utopia. Sem ela a humanidade perdia sentido e a vida seria um tédio.

Talvez uma nova utopia esteja nascendo com a geração de Greta Thunberg, ativista sueca de 16 anos, e das quatro milhões de crianças e adolescentes que foram às ruas na última sexta-feira. Salvar o planeta deixou de ser uma bandeira de alguns nichos para ser uma causa transversal, capaz de mobilizar multidões, sensível a todos os povos e países do mundo.

Deve-se a essas crianças e adolescentes a visibilidade que a causa ambiental adquiriu. Se não fosse a teimosia de uma menina sueca de 16 anos, autista e vegana, de todas as sextas-feiras fazer uma greve solitária em protesto contra o aquecimento global, o tema não estaria presente com tanta intensidade na Assembleia da ONU. Greta chega a ser áspera em suas cobranças aos líderes mundiais, como aconteceu em seu discurso na cúpula do clima das Nações Unidas.


Sua figura asceta e inflexível é vista por seus críticos como manifestações de um “fundamentalismo ecológico”. Mas é facilmente explicável. Será a sua geração que sofrerá as consequências se a temperatura do planeta subir dois graus até 2050. Apesar do Acordo de Paris de 2015, pouco avançou-se nesses quatro anos. Segundo a própria ONU, a temperatura mundial já aumentou um grau e pode aumentar mais de três até o final do século. Daí o alerta do Secretário Geral das Nações Unidas, António Guterres: “não se negocia com a natureza”.

Se é para deter a marcha da insensatez que pode levar à morte de centenas de milhões de pessoas, bem-vinda a teimosia de Greta Thunberg. Muitas vezes a história foi impulsionada pela teimosia e obstinação de uma pessoa. Estão aí os exemplos de Martin Luther King e Mahatma Gandhi.

Greta não é Gandhi ou um Luther King, longe disso. Mas sem as manifestações iniciadas por ela, a cúpula do clima das Nações Unidas seria apenas um evento a mais, sem nenhum efeito prático. A pressão deu resultados.

A Alemanha vai liberar 100 bilhões de euros para um plano climático e presidentes de diversos países anunciaram investimentos que somam 500 milhões de dólares. Liderados pelo Chile, 70 países se comprometeram a rever seus planos de cortes de emissões de gases de efeito estufa. É um bom passo, embora falte a adesão de três grandes poluidores: Estados Unidos, China e Índia.

Voltando à transversalidade da questão climática. Governantes dos quatro cantos do mundo, grandes corporações econômicas, grandes fundos do mundo, consumidores, todos, absolutamente todos, começam a entender que não há um planeta B. Ou salva-se o que existe ou morremos todos.

A questão é saber se o Brasil, que já foi um protagonista desde a Eco-92, sairá do canto do ringue e voltará a desempenhar o papel de liderança, hoje encarnado pelo Chile. Desse ponto de vista, o discurso de Jair Bolsonaro na ONU foi uma ducha de água fria. O presidente perdeu uma bela oportunidade de se projetar internacionalmente e, pela via da conciliação, ser protagonista em uma questão tão sensível como a ambiental.

Em vez disso, culpou a mídia, as ONGs e a França pela crise amazônica. Preferiu falar para os seus em vez de falar para o mundo, enveredando por um discurso ideológico mais adequado aos tempos da invasão da Baia dos Porcos e da Crise dos Mísseis, como se estivéssemos em plena guerra fria dos anos 60.

Por aí o Brasil está condenado à condição de pária na questão ambiental, uma das principais balizas do planeta, hoje e no futuro.

Hubert Alquéres

O Brasil encolheu

São raros os momentos na história do Brasil em que o país andou para trás. Sem dúvida, um deles foi no segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, quando mergulhamos numa recessão sem precedentes, cujo ônus até hoje não foi revertido. Mais raros ainda são os momentos em que o país diminuiu de tamanho em relação às demais nações do mundo. Terça-feira foi um dia assim, em razão do agressivo e radical discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na qual reiterou posições ultraconservadoras, antiambientalistas e antiglobalistas.

Por suas dimensões continentais e mérito de nossa diplomacia, todo presidente brasileiro goza do privilégio de abrir a Assembleia-Geral da ONU. É um legado de gerações de diplomatas, que todo presidente da República, inclusive os militares, procuraram honrar. Essa tradição começou na segunda Assembleia-Geral da história, quando discursou o então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha.

Seja para evitar as tensões entre Estados Unidos e União Soviética, que começavam a se estranhar na famosa Guerra Fria, seja pelo fato de o país ter ficado de fora do Conselho de Segurança, não se sabe ao certo, esse privilégio se manteve ao longo dos anos, sem que houvesse qualquer texto ou norma da ONU que determine a sua obrigatoriedade. Por isso mesmo, a tradição é o Brasil buscar um ponto de equilíbrio, um posicionamento que corresponda ao consenso majoritário, fugindo dos confrontos entre as nações.


O que se viu terça-feira, porém, foi o presidente brasileiro fazer um discurso duro, quase belicoso, que elegeu como adversários os índios, os ambientalistas, alguns líderes europeus e seus adversários de sempre: os líderes da Venezuela, de Cuba e dos partidos que integram o Foro de São Paulo. Foi um discurso para o público bolsonarista, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e outros líderes conservadores com os quais se alinha. Nossos mais experientes diplomatas, de forma pública ou velada, não escondem o desconforto com o teor do discurso de Bolsonaro. Foi um tiro no próprio pé.

Entre diplomatas experientes e especialistas em relações internacionais, é quase unânime a avaliação de que a política externa de Bolsonaro levou o Brasil ao isolamento. Seu discurso na ONU aprofundará essa situação, em especial por causa da questão ambiental e do confronto aberto com o presidente francês, Emmanuel Macron, que lidera a Cúpula da Clima. Seu alinhamento incondicional com Donald Trump na política internacional parece coisa daquele menino encrenqueiro que arruma confusão porque conta com a proteção de um primo grandalhão. Não é assim que as coisas funcionam na política externa.

Bolsonaro deveria prestar mais atenção ao que acontece com seus aliados mais importantes, antes de confrontar os principais chefes de Estado do Ocidente. Matteo Salviani, o primeiro-ministro da Itália, tentou antecipar as eleições e acabou perdendo o cargo. Em Israel, Benjamin Netanyahu, do Likud, corre o risco de perder o cargo de primeiro-ministro para Benny Gantz, do Azul e Branco, que topa fazer um governo de coalizão, mas, com apoio dos partidos árabes, quer ser o primeiro-ministro. Na Inglaterra, o novo primeiro-ministro, Boris Jonhson, tentou suspender o Parlamento na marra, para impor o Brexit sem acordo com a União Europeia, porém acabou levando uma invertida da Suprema Corte britânica, que considerou sua decisão inconstitucional, o que agora pode lhe custar o cargo.

Para completar o inferno astral dos aliados, o presidente norte-americano Donald Trump, que discursou na ONU logo após Bolsonaro, recebeu a notícia de que a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos abriu um processo de impeachment contra ele. Segundo a deputada democrata Nancy Pelosi, por telefone, Trump teria pressionado o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, para que este investigasse o filho de um de seus principais adversários, Joe Biden. “Isto é uma quebra da Constituição americana”, afirmou a presidente da Câmara.

O tipo de diplomacia praticada por Bolsonaro tem desses problemas. Relações entre países devem ser duradouras e estruturantes, não podem se basear apenas no relacionamento pessoal e afinidade ideológica dos governantes. Bolsonaro critica os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff por privilegiar aliados políticos por razões ideológicas, sem levar em conta os reais interesses do Brasil. Está fazendo a mesma coisa com sinal trocado, com a diferença de que, em vez de ampliar as relações diplomáticas, está se isolando.

O alinhamento automático com Trump, por exemplo, é uma armadilha em termos de comércio mundial, pois a guerra cambial entre os Estados Unidos e a China não é um bom negocio para o Brasil, que hoje tem nos chineses nossos principais parceiros comerciais. Esse é um dos fatores de redução dos investimentos no Brasil, por causa da retração do crescimento mundial provocado por essa guerra comercial.

Invasão de terras indígenas dispara sob governo Bolsonaro

A pauta indígena foi um dos temas mais explorados pelo presidente Jair Bolsonaro em seu discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas nesta terça-feira. Ele associou a atuação de lideranças indígenas aos interesses estrangeiros e voltou a defender uma visão integracionista sobre os povos originários. No mesmo dia, um relatório divulgou que as invasões de terras indígenas dispararam nos nove primeiros meses de 2019.

Até o lançamento do texto, foram contabilizados 160 casos de invasão, exploração ilegal de recursos naturais ou danos diversos ao patrimônio dos povos indígenas. O número já supera o registrado em todo o ano de 2018, quando houve 111 casos.

Além disso, o número de terras indígenas atingidas mais que dobrou nesse período, quando comparado ao ano passado inteiro, passando de 76 em 2018 para 153 até setembro deste ano. Em 2018, eram 13 os estados com notificações do tipo. Em 2019, até agora, há 19 nessa situação.


Os dados referentes a este ano são preliminares e foram divulgados durante o lançamento do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil, referente a 2018. É uma publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), vinculado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

Embora as invasões tenham apresentado forte recrudescimento no governo Bolsonaro, já havia uma tendência de aumento desde 2017, quando o indicador teve alta de 62,7%. O aumento foi mais tímido em 2018 (15,6%), mas o patamar se manteve elevado, devendo atingir porcentagens alarmantes até o fim de 2019.

Na avaliação do Cimi, o cenário desenhado pelos dados do ano passado já indicava um risco à própria sobrevivência dos povos indígenas. Os assassinatos de indígenas passaram de 110 em 2017 para 135 em 2018, com a maioria dos casos registrados em Roraima (62) e Mato Grosso do Sul (38).

"Os povos indígenas do Brasil enfrentam um substancial aumento da grilagem, do roubo de madeira, do garimpo, das invasões e até mesmo da implantação de loteamentos em seus territórios tradicionais, explicitando que a disputa crescente por estas áreas atinge um nível preocupante", afirma o texto.



Para o representante do Cimi Roberto Liebgott, um dos organizadores do relatório, a principal marca observada nos dados é a perspectiva de desterritorialização dos povos originários pelo Estado brasileiro.

"A ação dos governos vai no sentido de colocar a estrutura do Estado a serviço dos invasores, quando deveria utilizá-la para proteger os indígenas, além de fiscalizar, impedir e responsabilizar os criminosos que usam indevidamente bens da União", critica.

Liebgott aponta que ações como o enfraquecimento de órgãos de fiscalização como a Fundação Nacional do Índio (Funai), que opera com 10% do orçamento, denotam essa intenção, sinalizada no discurso do governo.

O representante do Cimi ressalta que, nos governos Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, houve uma tendência "legalizante", no sentido de legitimar atividades ilegais, como o desmatamento anistiado pelo Código Florestal de 2012. A partir do governo Michel Temer, ele acredita ter havido uma conivência mais explícita com as atividades criminosas.

"O 'dia do fogo' é a sinalização clara de que essa política criminosa está em curso. Apropriam-se de bens públicos, da natureza, e transformam em fato consumado. Devastado o território, retiram-se os índios, e as terras são entregues para a especulação imobiliária agrícola", avalia.

Nos dados de 2018, salta aos olhos a concentração de casos na região amazônica. O ranking de invasões é liderado pelo Pará, seguido por Rondônia, Amazonas e Roraima.

Coordenador do Laboratório de Gestão do Território da Universidade Federal de Rondônia (Laget/Unir), o geógrafo Ricardo Gilson afirma que a tendência se explica por uma corrida pela última fronteira agrícola do planeta.

"É a única região do mundo onde se pode expandir e converter áreas naturais em espaço de agropecuária. Com o crescimento do agronegócio e das exportações de commodities agrícolas, há toda uma pressão política e econômica do agronegócio para utilizar as áreas protegidas, inclusive à revelia da lei e dos ordenamentos territoriais", explica.

De acordo com o geógrafo, a aposta do Brasil na exploração de commodities criou três dinâmicas territoriais fundamentais para a compreensão do avanço sobre a Amazônia, que coloca em risco os povos indígenas.

"Em primeiro lugar, há o mercado de terras griladas, que atende à expectativa do agronegócio, envolve reconcentração fundiária e o comércio de terras para estrangeiros (land grabbing). Observamos também a expansão da pecuária e soja, cuja pressão faz expandir a fronteira agrícola à revelia da lei ambiental e ordenamentos territoriais. Por fim, a mineração, que visa a ocupação de áreas protegidas, principalmente áreas indígenas e quilombolas", detalha.

Em seu discurso na Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro mencionou as extensas reservas minerais em reservas indígenas no estado de Roraima para defender a integração econômica dos indígenas.

"O Brasil agora tem um presidente que se preocupa com aqueles que lá estavam antes da chegada dos portugueses. O índio não quer ser latifundiário pobre em cima de terras ricas. Especialmente das terras mais ricas do mundo. É o caso das reservas yanomami e Raposa Serra do Sol. Nessas reservas, existe grande abundância de ouro, diamante, urânio, nióbio e terras raras, entre outros", afirmou o presidente nesta terça-feira.

Em outro momento de sua fala, ele voltou a dizer que não pretende demarcar novas terras indígenas. Também atacou lideranças indígenas, como o cacique Raoni Metuktire, do povo Kayapó, que concorre ao Nobel da Paz.

"A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia", disse Bolsonaro na ONU.

O procurador do Ministério Público Federal (MPF) Julio Araujo, que integra o grupo de trabalho sobre demarcação de terras indígenas no MPF, afirma que o tom dos discursos do presidente da República tem efeitos diretos no agravamento da vulnerabilidade dos povos indígenas.

"Fazendeiros, garimpeiros e madeireiros vêm se sentindo autorizados a violar direitos indígenas e a inferiorizá-los. O impacto só cresce a cada dia. Há um programa inconstitucional para os povos indígenas, que tem por objetivo justamente a sua não efetivação", critica.

Segundo o procurador federal, o Estado brasileiro viola a Constituição ao assumir um discurso integracionista e ao defender políticas desse tipo, recusando o diálogo com os diversos grupos indígenas. Essa postura seria materializada nas afirmações de que não promoverá demarcações de terras e na devolução dos processos que estavam no Ministério da Justiça e na Presidência da República sobre o tema.

"O agente público tem responsabilidades em seus discursos, tendo em vista os impactos que isso gera para os destinatários da política. Desde janeiro, o governo procura administrar para apenas uma parte da sociedade brasileira, veiculando claramente os seus propósitos. Esquece-se, porém, dos riscos concretos que isso gera, notadamente no aumento da usurpação de territórios e no aumento da violência", assinala.
Deutsche Welle

Pensamento do Dia


Bolsonaro na ONU

Na semana passada, decerto aconselhado pela ala ajuizada de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que faria um discurso “conciliador” na abertura da Assembleia-Geral da ONU. De fato, tratava-se de uma ótima oportunidade para tentar desfazer os equívocos que ele e seus ministros mais radicais cometeram ao hostilizar diversos países e governos que vêm se mostrando preocupados com os incêndios e a devastação na Amazônia. Poderia, se tivesse dotes de estadista, recolocar o Brasil na comunidade de nações que nutrem genuíno interesse pelo futuro da humanidade, o qual depende diretamente da preservação do meio ambiente.

O que se ouviu, no entanto, foi um ataque feroz contra um inimigo imaginário e a favor da intolerância – que desde sempre alimenta os discursos de Bolsonaro, agora amplificados pela sua condição de presidente da República.


Logo no início do pronunciamento, Bolsonaro tratou de nomear seu grande desafeto, dizendo que o Brasil “ressurge depois de estar à beira do socialismo”. E continuou, para perplexidade geral: “Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”.

Repetia dessa forma seu constrangedor discurso de posse, quando disse que sua chegada ao poder estava “libertando” o País do “socialismo” – ignorando o fato óbvio de que seu antecessor, o presidente Michel Temer, nada tinha de socialista, nem tampouco, a rigor, os governos anteriores. Tratava-se, tanto por ocasião da posse como agora na ONU, da reafirmação de um dos muitos slogans da campanha eleitoral de Bolsonaro, tão estridentes quanto desprovidos de significado real.

O Brasil, de fato, estava sob ataque, mas não dos “socialistas”, e sim de quadrilhas de corruptos que desmoralizaram a política e assaltaram as burras da República. Corrupção não depende de socialismo ou de antissocialismo, como o próprio presidente da República deve saber. Ademais, é bom lembrar que a grande corrupção da era lulopetista havia sido quase totalmente desbaratada bem antes de Bolsonaro chegar à Presidência, graças aos esforços da Operação Lava Jato. Ou seja, Bolsonaro tenta se incluir – e em posição de liderança – num processo do qual ele não participou em nenhum momento.

Tais questões não deveriam ter sido levadas à tribuna da ONU, ainda mais envolvidas num discurso mistificador e demagógico. Não havia ambiente para isso. Em alguma medida, lembra o vexame protagonizado em 2014 pela então presidente Dilma Rousseff, quando transformou a ONU em palanque de sua campanha à reeleição – e, numa entrevista coletiva em Nova York, defendeu o “diálogo” com o Estado Islâmico, que na época havia decapitado reféns, para horror do mundo civilizado.

Mas nenhum delegado presente ao discurso de Bolsonaro deve ter se decepcionado, já que certamente eles ouviram o que já esperavam ouvir, isto é, ataques à imprensa internacional, acusações de “colonialismo” e insinuações de que estrangeiros defendem os índios e o meio ambiente como pretexto para cobiçar as riquezas da Amazônia. Ora, cobiça sempre houve e sempre haverá, mas a soberania da Amazônia não está sob ameaça real desde o século 19.

Se Bolsonaro estivesse realmente preocupado em afastar qualquer risco à soberania brasileira sobre a Amazônia, teria adotado um tom conciliador, em busca de harmonia com a comunidade internacional.

Desde o Barão do Rio Branco, o Brasil, ciente de seus limites militares e econômicos, optou pelo diálogo multilateral – e, ao não se alinhar fanaticamente a uma única potência, como faz Bolsonaro em relação aos Estados Unidos de Donald Trump, ganhou o respeito de toda a comunidade internacional.

Bolsonaro, assim, erra em dobro: ao investir numa retórica antagonista, ameaça apartar o Brasil da sociedade das nações; e ao tratar de maneira leviana das questões ambientais, com as quais todos os que têm responsabilidade deveriam se preocupar, coloca em risco o futuro do País que governa. Tudo isso em nome de um ideário retrógrado e fantasioso.

'Muy amigo'

O problema de Bolsonaro é o Google. Qualquer um dos 7,7 bilhões de habitantes da terra que fizer uma busca na internet sobre o que já disse o presidente da República do Brasil, nos últimos 30 anos, sobre ecologia, verá que Bolsonaro é tão fã da proteção do meio ambiente quanto um peru é fã da ceia de Natal
Ancelmo Góis

O nome em vão

Nunca esteve tão em moda a frase do escritor e pensador inglês Samuel Johnson, que, escrita no século XVIII, sobreviveu ao tempo, ganhando um significado mais amplo, terrivelmente atual: “O patriotismo é o ultimo refúgio dos canalhas”.

Referia-se ao partido Patriotas de então, que, para Johnson, estava sendo dominado por políticos oportunistas. O patriotismo tornou-se, ao longo da História, instrumento político de autocratas e populistas, de esquerda e de direita, fazendo jus à ampliação do sentido da frase do pensador inglês. 

Os discursos dos presidentes Donald Trump, dos Estados Unidos, e Jair Bolsonaro, do Brasil, utilizaram-se do termo para defender a tese mais cara aos dois e a vários líderes autoritários espalhados pelo mundo. São os “soberanistas”, que, em nome do patriotismo, vêem em políticas globais coordenadas por órgãos multilaterais como a ONU tentativas de limitar a soberania das Nações. 


As críticas internacionais à política ambientalista de Bolsonaro foram aproveitadas para exacerbar o sentimento patriótico dos brasileiros, ameaçados que estaríamos por países europeus de olho na internacionalização da Amazônia.

O presidente francês Emmanuel Macron caiu na besteira de fazer um gesto demagógico aos eleitores ecológicos, abordando essa ideia como uma possibilidade de resolver as questões ambientais naquela região, e provocou a ira de Bolsonaro e da ala militar nacionalista.

Mereceu as críticas, mas não as ofensas, inclusive pessoais. Fosse um político habilidoso, e não o que vive de confrontos, e quisesse realmente enfrentar a questão ambiental com visão contemporânea, Bolsonaro poderia ter dado uma resposta ao colega francês que o obrigaria a desculpar-se, fazendo desse episódio uma oportunidade de se impor no cenário internacional.

Ao contrário, preferiu apelar para o patriotismo e aliar-se a minoritários líderes de direita e extrema-direita, na vã esperança de que a tese de Steve Bannon e Olavo de Carvalho esteja certa, e que os “soberanistas” prevalecerão no final das contas.

Vários deles estão ficando pelo caminho, e se Donald Trump for derrotado no ano que vem, o projeto vai por água abaixo. Inclusive o de Bolsonaro.

Para nenhuma surpresa, o presidente Donald Trump voltou a defender o isolacionismo, justamente no palco de uma organização que trabalha para dar um sentido de unidade a um mundo cada vez mais interligado. “O futuro não pertence aos globalistas, e sim aos patriotas”, afirmou.

“Globalismo” é como os isolacionistas chamam a globalização, que consideram um movimento esquerdista que tem que ser combatido. O próprio Bolsonaro em seu discurso cravou palavras duras contra valores que considera pervertidos por uma ação coordenada ideológica de esquerda: “a célula mater de qualquer sociedade saudável, a família”; “a inocência de nossas crianças, pervertendo até a identidade mais básica e elementar, a biológica” e até mesmo “a alma humana, para expulsar dela Deus”. 

Sendo Bolsonaro, alinhou-se a regimes retrógrados e líderes autoritários. Criticando a mídia internacional, como faz com a brasileira, aliou-se a autocratas como ele, que não conseguem conviver com críticas. O publisher do The New YorK Times, A. G. Sulzberger, em artigo publicado dias atrás, trata dessa postura de dirigentes autocratas tentando desacreditar a imprensa independente, a começar pelo presidente dos Estados Unidos, que inventou para isso as “fake news”, expressão que tem servido a autocratas em redor do mundo para rebater críticas. 

Entre os extremistas, Sulzberger cita o primeiro-ministro Viktor Orbán, da Hungria, os presidentes Recep Erdogan, na Turquia, Nicolas Maduro, da Venezuela, Rodrigo Duterte, das Filipinas, e Jair Bolsonaro.

Num momento em que Portugal virou um porto seguro para os brasileiros que querem e podem sair do país em busca de um futuro melhor, é sempre bom lembrar que o ditador Salazar, nos anos setenta, pressionado por Portugal ainda ter colônias, cunhou um lema: “Orgulhosamente sós”.

Desse modo, Chico Buarque vai acabar acertando, quando previu em Fado Tropical “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal/ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. Só que do tempo de Salazar.

É preciso acabar com a hipocrisia de chamá-las de 'balas perdidas'. São balas assassinas

Decidi não mais escrever nas minhas colunas “balas perdidas”, porque são apenas balas assassinas as que todos os dias em todo o Brasil, e principalmente nas favelas do Rio, acabam com a vida como a da inocente de 8 anos, Ágatha Vitória Félix. Testemunhas e vizinhos do Complexo do Alemão, onde a menina morava com sua família, dizem que não houve tiroteio entre a polícia e os traficantes de drogas. Na verdade, eles afirmam que o policial atirou na garota, que estava ao lado de sua mãe em uma van, ao tentar atirar em um motociclista.

Uma morte que despertou de maneira especial a consciência e até a linguagem dos excluídos daqueles bairros deixados à própria sorte. Pela primeira vez, uma daquelas pessoas anônimas que compareceram ao enterro da pequena Ágatha gritou dizendo: “Não foi uma bala perdida. Foi uma bala encontrada”. Na verdade, foi uma bala assassina como todas as que ceifam vidas inocentes.

Das cinco crianças que morreram este ano somente no Rio antes de começarem a viver, vítimas dessa violência que parece não ter fim, a da menina Ágatha teve uma repercussão especial e criou um debate novo até agora nas pessoas das favelas cansadas de tanta morte inútil. E obrigou as autoridades a não se contentarem com os rituais hipócritas e gastos de “lamentamos” e “abriremos uma investigação”. Desta vez, os órfãos de Ágatha, que somos todos nós, enfrentaram o poder que reagiu duro e surpreso.

O governador e ex-juiz do estado do Rio, Wilson Witzel, conhecido por sua política de que o melhor delinquente é aquele que a polícia entrega morto e que fez seu gesto macabramente famoso de que o é melhor “dar um tiro na cabecinha”, demorou a reagir para comentar a tragédia da nova mártir das favelas. Chegou-se a falar sobre seu “silêncio aterrador”. No final, a opinião pública o obrigou a sair do mutismo e até confessou que também tem uma filha de nove anos e sabe a dor que seria perdê-la.

No entanto, não deixou de lado sua postura de dureza em matéria da violência que mata especialmente negros e pobres e denunciou que “é indecente usar o caixão de uma inocente para fazer um ato político”. Aqueles que foram ao enterro de Ágatha não foram, no entanto, a um comício, foram doloridos e indignados, com o rosto em lágrimas. Era pura dor e raiva contra sua impotência diante da negligência do Estado nesses bairros, cenário da violência rotineira. E responderam ao governador que a indecência era deixar morrer tantos inocentes pela incúria de um estado que está permitindo e até incitando a polícia a fazer um verdadeiro extermínio com a desculpa de defendê-los contra o narcotráfico.

Talvez essa reação inédita à morte da menina alegre e cheia de vida das favelas se deva ao fato de que está nascendo, dentro e fora das favelas, uma nova resistência à situação criada pelo Governo de extrema-direita do presidente Bolsonaro, cujo lema e maior preocupação é matar sob a desculpa de proteger a vida.

É como se diante do cadáver de Ágatha, essas pessoas, acostumadas ao esquecimento daqueles que deveriam protegê-las, tivessem de repente se juntado ao grito de milhões de brasileiros que não aceitam mais um Governo e uma política baseada na segregação e até na perseguição de uma ditadura dissimulada.

Alguém quis sublinhar, nesse novo movimento de resgate dos valores da vida contra a obsessão da morte, que profeticamente a pequena Ágatha se chamava também Vitória e Félix, dois nomes que evocam o desejo de felicidade com o qual cada recém-nascido chega à vida e ao desejo de sair vitorioso da luta que o espera contra os poderes que tentarão fazer sua vida infeliz e castrar seus desejos de triunfar.

É o que o avô materno de Ágatha, Ailton Félix, quis destacar diante dos que gritavam, muitos deles jovens: “Basta do sangue do povo negro derramado na favela. Nos deixem viver em paz, sem essa falácia da guerra contra as drogas”. Lembrou que tinham matado uma menina “inteligente, estudiosa, obediente, de futuro”. Como a maioria dessas crianças a quem o Estado dá carta branca às forças policiais para matar.

E talvez o mais dramático seja que o Congresso está prestes a aprovar o projeto do ministro da Justiça, o ex-juiz Sérgio Moro, sobre a luta contra o crime. Assim como a hipocrisia da “bala perdida”, também neste documento se introduz o eufemismo hipócrita e vergonhoso do chamado “excludente de ilicitude”, que traduzido para o que entendem os pobres e negros das favelas significa que um policial, de agora em diante, não poderá ser punido por ter matado um inocente, pois ao atirar poderia estar em estado de estresse, medo ou emoção especial.

O mais grave dessa decisão é que ela introduz, sem debate da sociedade, a pior das penas de morte, a que não merece um processo nem um advogado de defesa. É simplesmente extermínio. É guerra. E é todo esse clima de morte fácil o que talvez estejam começando a entender até os menos cultos e, principalmente, suas maiores vítimas, os negros e os pobres das favelas, as quais também deveríamos começar a chamar mais do que favelas, de campos de extermínio e segregação social e racial.

Oxalá a bala assassina que arrancou a vida da pequena Ágatha Vitória Félix, que sonhava através dos estudos ser feliz e sair vitoriosa na vida, como seus nomes profetizavam, sirva para despertar a sociedade. Que toda ela tome consciência de que o Brasil deve gritar junto um NÃO cada vez maior a um poder que pretende ter direito sobre a vida e a morte da grande massa de anônimos e excluídos dos campos de concentração das periferias, onde o poder político e o econômico relegam esses milhões cuja única liberdade até hoje é a de chorar seus mortos.

A mulher de dois mundos

Decerto que no dia 30 de Novembro de 1872, quando se realizou o primeiro jogo da história entre selecções nacionais (Escócia-Inglaterra), em plena época vitoriana, não passava pela cabeça de ninguém que, passado pouco mais de um século, o mundo inteiro veria uma das mais importantes partidas globais a ser apitada por uma equipa feminina de arbitragem.

E se dissessem que essas mulheres concitariam elogios generalizados pelo seu desempenho e o máximo respeito por parte dos jogadores e treinadores intervenientes, isso seria considerado loucura. De facto, a árbitra Stephanie Frappart, auxiliada por Manuela Nicolosi e Michelle O'Neill, fez história ao tornar-se a primeira mulher a apitar uma prova masculina da UEFA, a final da Supertaça Europeia, recentemente disputada em Istambul. Se ainda acrescentassem que o jogo se realizaria em país muçulmano, a incredulidade seria então insuportável.
Bartosz Hadyniak
Este é o mesmo mundo onde muitas mulheres ainda não podem estudar, votar ou participar na vida das suas comunidades em igualdade de condições com os homens. Onde não podem contactar com um homem a menos que estejam acompanhadas por um elemento masculino da família, onde não podem assistir a um jogo de futebol ou onde são mutiladas na genitália em crianças.

Em El Salvador há dezenas de mulheres a cumprir longas penas de prisão (até 40 anos) resultantes de condenações à luz da lei do aborto, depois de terem experienciado abortos espontâneos e problemas na gravidez.

Recentemente foi notícia que uma ex-ministra da Justiça de Israel, que está à frente de um partido fundamentalista religioso, propõe que as mulheres sejam proibidas de se sentar nos bancos da frente dos autocarros, satisfazendo assim uma reivindicação dos partidos judeus ortodoxos. A líder extremista de direita, Ayelet Shaked, vai mesmo mais longe e defende a aplicação na Palestina de uma versão local do apartheid sul-africano, justificando que essa política de “desenvolvimento separado”, apesar de segregar populações, não constitui uma prática de exclusão. Chega a considerar arrogante a recusa de tal medida pelos judeus seculares, mas já acha natural e apropriado que a comunidade ultra-ortodoxa tente impor um estilo de vida medieval a toda a sociedade israelita. Para os fundamentalistas religiosos, “não há nenhum problema em enviar as mulheres para a parte de trás dos autocarros, em [obrigá-las a] ver um espectáculo através de uma cortina, em [fazê-las] desaparecer da sala de aulas, em impor-lhes o silêncio quando um homem está a falar”. A jornalista Zehava Galon em artigo de opinião publicado no Haaretz, lembra que “em tempos lutámos pelo direito de uma mulher ser piloto de combate, e agora lutamos para que os soldados não voltem as costas a uma oficial do sexo feminino quando ela lhes dirige a palavra”.

Infelizmente todas as religiões abraâmicas se revelam influenciadas pelo sistema patriarcal e por isso têm relegado a mulher para uma posição de menoridade ao longo da história. A hermenêutica dos textos sagrados tem sido constantemente enviesada por práticas religiosas formatadas para o masculino, que receiam olhar ainda hoje para ambos os sexos como iguais em dignidade e direitos.

A modernidade, através do primado da pessoa humana, do secularismo e do racionalismo veio colocar em causa muita desta mentalidade. Mas os movimentos sociais não fizeram menos, através da pílula anticoncepcional, ou das duas guerras mundiais do século XX. Nesses momentos as mulheres foram forçadas a sair de casa para trabalhar como operárias nas fábricas de armamento, munições, fardamento e rações de combate, substituindo-se assim aos homens, mobilizados para os teatros de guerra e já não quiseram voltar ao papel de fadas do lar.

A inteligência e o valor intrínseco das mulheres levou muitas delas a assinar obras de arte e literatura com nomes masculinos, fictícios, a fim de não serem lançadas para o caixote do lixo da história das artes e da cultura. E em meados do século IX em Roma até terá pontificado uma mulher, a papisa Joana, disfarçada de homem (Papa João).

Apesar de alguns escritos claramente misóginos atribuídos ao apóstolo Paulo, e hoje considerados pseudo-paulinos por alguns, a verdade é que o cristianismo é bastante claro em considerar homens e mulheres como iguais em dignidade intrínseca e perante Deus. Em carta-circular enviada às igrejas da Galácia, Paulo escreve claramente: “Porque todos sois filhos de Deus pela fé em Cristo Jesus. Porque todos quantos fostes batizados em Cristo já vos revestistes de Cristo. Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fémea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:26-28).

E se formos analisar o exemplo do próprio Cristo, entendemos que não há qualquer margem exegética legítima para colocar a mulher abaixo do homem, tanto aos olhos de Deus como na Igreja.