domingo, 2 de agosto de 2015
Desconfianças e paranoias
Houve períodos em que prevaleciam ditados populares como “negócio no fio de bigode” ou “confio em todos até que me provem o contrário”. Bons e antigos tempos, saudosismo à parte. Se quisermos entender um pouco o que anda acontecendo com a falência da confiança mútua, do acreditar, teremos que observar quanto o momento, o meio ambiente, além dos aspectos individuais, colaboram para esse estresse a mais a que somos submetidos, pois vigiar pessoas, checar tudo ao nosso redor, ficar de sentinela o tempo todo é mais que desgastante, é doentio.
Quais as ameaças que enfrentamos realmente no dia a dia? Digo isso por causa de uma pesquisa que saiu recentemente indicando que 90% da população teme ser vítima da violência a cada dia, outras mais de 80% de perder a vida por causa dessa violência urbana e mais de dois terços sentem-se desamparados pelas autoridades. O simples andar de ônibus, parar num sinal à noite, sair da garagem a qualquer hora do dia, ou até estar em casa e sofrer assalto invade o nosso imaginário cotidianamente. Isso não é viver, é sobreviver, como se estivéssemos em plena guerra civil, na Síria ou no Iraque por exemplo.
Entendamos alguns aspectos importantes desse fenômeno. Primeiro devemos resgatar duas palavras desse tiroteio mental: comunidade e comunhão. É certo que em pequenas comunidades, onde as pessoas se conhecem e têm uma comunhão de interesses, a sensação de segurança, apoio, solidariedade é infinitamente maior que em grandes centros urbanos, individualistas e competitivos, onde a indiferença com o sofrimento alheio é praticamente uma lei. Lemos, ouvimos, vemos, entre indiferentes e passivos, uma coletânea de tragédias, que, infelizmente, são selecionadas pelas mídias, já que “desgraça e tragédia dão ibope”. A dor dos outros é normal até que aconteça conosco.
Cidades menores, grupos de fé ou instituições que congregam ações sociais e o bem tendem a gerar uma consciência coletiva e fraternidade que nos acolhem e dão segurança. Mas o que me diz do seu vizinho do quarto andar? Às vezes nem o nome sabemos. Na base de cada um por si e Deus por todos, nos recolhemos a nossas prisões domiciliares ou solitárias de quartos com janela para telas de eletrônicos. Confiança é uma construção diária, baseada na lealdade, na intimidade, no diálogo às vezes difícil, no reconhecimento dos erros, na gostosa sensação de se estar acompanhado nos momentos de difícil travessia.
Perdida a confiança, resgatá-la é um processo doloroso nem sempre possível, tal qual colar a xícara de porcelana chinesa que quebrou ao cair, deixa cicatrizes e marcas. Mas algo pode ser pior que a perda de confiança, mesmo porque, muitas vezes, não há nem motivo para desconfiar, nem fato para tal. A mente humana sob estresse excessivo ou insônias crônicas, mas, principalmente, intoxicada de bebidas alcoólicas e drogas, em especial a maconha, pode desenvolver paranoias, ou sensação de estar sendo perseguido por pessoas, colegas de trabalho e familiares.
Ou, ainda, a paranoia de estar sendo traído no namoro ou casamento. E, para completar, a paranoia de estar sendo passado para trás, roubado ou sabotado. O fenômeno paranoico é patológico, exige tratamento e, constantemente, termina em tragédia. Afinal, é um delírio, uma deformação da realidade, uma fantasia que é vivenciada como real, pois a pessoa cria uma rede de pensamentos distorcidos em que ele é sempre a vítima e começa a associar fatos para chegar à conclusão de que está sendo traída ou perseguida.
Um exemplo de um indivíduo em paranoia é quando ele fica observando placas de carro e enxerga coincidência com telefones de conhecidos para chegar à conclusão de que a mulher o está traindo. Para ele, tudo coincide, e na sua mente obsessiva tudo se encaixa, e esquece de que somos regidos por dez algarismos que sempre nos remetem a algo. O que sabemos é que, em tempos de guerra, escassez, privação e temor da não sobrevivência, criamos um mundo mental de pensamentos acelerados, negativistas.
Em época de crise, enfatizamos aspectos pessimistas. Se tivermos oito boas notícias e duas ruins, nos agarramos ao pior e vivemos reclamando de tudo. Desligar o botão do medo e da insegurança, enfrentar a realidade, e não o imaginário ruinoso, é uma das saídas. A fé, independentemente da forma que se busca, é outro porto seguro. Ser mais solidários, sorrir frente aos desafios, ter palavras de reforço positivo, buscar ambientes sadios e que estejam em busca do melhor é igualmente saudável. E, se a paranoia se instala, procure a ajuda de especialistas, pois o “inferno é uma mente sombria e povoada de pensamentos pessimistas e preocupações irreais”.
Eduardo Aquino
O teatro da guerra
O general Jesus Baquedano, que participou das guerras contra a Confederação Peru-Bolívia e do Pacífico, nas revoluções da década de 1850, adotava diante do inimigo uma única estratégia, que gritava a plenos pulmões: “Atacar”. Impetuoso e considerado por seus compatriotas homem de coragem suicida, dizia que seu método, mesmo à custa de milhares de mortos, economizava tempo.
O militar chileno era adepto da estratégia direta, amparada na ação frontal, um contra o outro, que tem como principal formulador Carl Von Clausewitz, o general prussiano que escreveu Da Guerra (1832), livro apreciado por Hitler.
Ao oferecer continuados conselhos à Dilma, todos na direção de correr o país, mostrar serviço e deixar de responder questões sobre a Operação Lava Jato, o ex-presidente Lula sugere à pupila que pense com a cabeça e arremeta com o coração, evitando a síndrome do touro que faz exatamente o contrário. Ou seja, que escolha a estratégia indireta, a do toureiro, que dá voltas ao redor do animal até fazê-lo cansar.
Ele mesmo vai seguir este caminho. Dessa forma, evitará o confronto direto, estilo Baquedano, fará rodeios pelo país, amortecendo o tiroteio que procura abatê-la. Com o tempo, poderia recuperar seu vetor de força, mesmo sob as larvas do vulcão econômico e da borrasca política.
O Brasil vive tempos de acirrados conflitos.
O aparato que se formou no entorno da Operação Lava Jato é uma complexa engenharia de guerra, nos termos da definição clássica de Clausewitz: “a guerra não é só um ato político, como um autêntico instrumento político, uma continuação do comércio político, um modo de levar o mesmo a cabo, mas por outros meios”.
A teoria de guerra conserva semelhança com a teoria política. Ambas trabalham com eixos comuns, como estratégia e tática; fricção entre atores; interdependência (a eficácia de um jogador depende das jogadas do outro); força como conceito não apenas mecânico, na medida em que abriga valores morais como autoridade, paixão, motivação e coragem, dos quais o exemplo é Gandhi.
Dito isto, vejamos como é nossa guerra política.
Os principais exércitos na paisagem dos conflitos são: os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; o Ministério Público; os grupos de negócios privados; e os intermediários. Para ganhar a guerra, cada qual possui um arsenal composto por acusações/defesas, hipóteses/teses, argumentos/contra-argumentos, delações, versões, percepções.
Predomina, porém, o sentimento de que os atores que encarnam a luta do Bem contra o Mal levarão a melhor. O Mal, neste caso, é interpretado pelos indiciados na Operação Lava Jato. O juiz Sérgio Moro, os jovens procuradores do MP e os delegados da PF, sob a guarida das altas Cortes, saem-se bem como mocinhos e xerifes dos velhos faroestes.
Na guerra política, como no conflito militar, vale o princípio maquiavélico: “os meios justificam os fins.” Nesse caso, a propina foi o meio para se alcançar um fim. É o que dizem, agora, os delatores, cuja estratégia é a de confessar o crime para ter reduzida a pena, o que não o torna necessariamente um “herege arrependido”, eis que continua a usar armamento pesado para atacar ex-aliados e combatentes de exércitos até então coligados.
Ocorre uma inversão de papéis. Ao mudar de lado, o delator promove tiroteio entre advogados. Para alguns, importa garantir a liberdade provisória, mesmo sob o aperto de uma tornozeleira eletrônica.
Nas praças de guerra de Curitiba e Brasília, a palavra continua a ser a principal arma. É usada para desvendar a guerra iniciada há anos, quando um grupo de combatentes começou a cercar a fortaleza da Petrobras, utilizando armas leves que, ao longo do tempo, ganharam maior calibre.
Os recursos – doações, propinas – enchiam cofres de uma poderosa rede de mando. Conquistas foram alcançadas, suprindo, na vanguarda, campanhas políticas e, na retaguarda, cabos eleitorais e exércitos intermediários.
As batalhas, ao se aproximarem dos Senhores da Guerra, chegaram a uma intensidade nunca d’antes vista. Na paisagem devastada, alguns chefes de exércitos usam estratégias diferentes.
Aécio Neves, tucano, adota a estratégia direta, no melhor estilo de Clausewitz, orientando o ataque frontal à inimiga, para chegar a um final rápido e definitivo, tirando-a do comando do país.
Outro comandante tucano, Geraldo Alckmin, prefere a vida indireta, a de comer pelas bordas, deixando a adversária se consumir pela escassez dos próximos tempos.
Ao sugerir que sua pupila Dilma corra de encontro ao povo e, pouco a pouco, expanda força para enfrentar a batalha de 2018, Lula defende a estratégia de insuflar a retaguarda das margens, alternativa que tem para salvaguardar o projeto político do PT. Não será fácil.
A unidade dos exércitos aliados se esfarela. A guerra pode tomar novos rumos em função da fricção que ocorre nas divisões aliadas.
Um Senhor da Guerra, Eduardo Cunha, rompe publicamente com a comandante-em-chefe das tropas governistas, prevendo-se mais conflitos na frente dos combatentes encastelados no Congresso.
Ao escolher a estratégia do confronto, Cunha passa a liderar a vanguarda oposicionista. Arrisca-se muito. Nas guerras, costuma ganhar o exército mais bem guarnecido e treinado. Só comandantes com visão apurada do potencial dos adversários escolhem o confronto. Mesmo assim, isso não é suficiente para a vitória. Basta ver os exemplos de Napoleão e Hitler, dois cultores do embate direto. O imponderável – o inverno das circunstâncias – deve ser considerado.
A análise de balística no teatro da guerra demonstra que o poderio arrasador ainda está por vir. A cargo de mais exércitos de retaguarda, aqueles que detêm o poder de atirar com a letra da lei. Contra estes, não há salvação.
Gaudêncio Torquato
O militar chileno era adepto da estratégia direta, amparada na ação frontal, um contra o outro, que tem como principal formulador Carl Von Clausewitz, o general prussiano que escreveu Da Guerra (1832), livro apreciado por Hitler.
Ao oferecer continuados conselhos à Dilma, todos na direção de correr o país, mostrar serviço e deixar de responder questões sobre a Operação Lava Jato, o ex-presidente Lula sugere à pupila que pense com a cabeça e arremeta com o coração, evitando a síndrome do touro que faz exatamente o contrário. Ou seja, que escolha a estratégia indireta, a do toureiro, que dá voltas ao redor do animal até fazê-lo cansar.
Ele mesmo vai seguir este caminho. Dessa forma, evitará o confronto direto, estilo Baquedano, fará rodeios pelo país, amortecendo o tiroteio que procura abatê-la. Com o tempo, poderia recuperar seu vetor de força, mesmo sob as larvas do vulcão econômico e da borrasca política.
O Brasil vive tempos de acirrados conflitos.
O aparato que se formou no entorno da Operação Lava Jato é uma complexa engenharia de guerra, nos termos da definição clássica de Clausewitz: “a guerra não é só um ato político, como um autêntico instrumento político, uma continuação do comércio político, um modo de levar o mesmo a cabo, mas por outros meios”.
A teoria de guerra conserva semelhança com a teoria política. Ambas trabalham com eixos comuns, como estratégia e tática; fricção entre atores; interdependência (a eficácia de um jogador depende das jogadas do outro); força como conceito não apenas mecânico, na medida em que abriga valores morais como autoridade, paixão, motivação e coragem, dos quais o exemplo é Gandhi.
Dito isto, vejamos como é nossa guerra política.
Os principais exércitos na paisagem dos conflitos são: os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário; o Ministério Público; os grupos de negócios privados; e os intermediários. Para ganhar a guerra, cada qual possui um arsenal composto por acusações/defesas, hipóteses/teses, argumentos/contra-argumentos, delações, versões, percepções.
Predomina, porém, o sentimento de que os atores que encarnam a luta do Bem contra o Mal levarão a melhor. O Mal, neste caso, é interpretado pelos indiciados na Operação Lava Jato. O juiz Sérgio Moro, os jovens procuradores do MP e os delegados da PF, sob a guarida das altas Cortes, saem-se bem como mocinhos e xerifes dos velhos faroestes.
Na guerra política, como no conflito militar, vale o princípio maquiavélico: “os meios justificam os fins.” Nesse caso, a propina foi o meio para se alcançar um fim. É o que dizem, agora, os delatores, cuja estratégia é a de confessar o crime para ter reduzida a pena, o que não o torna necessariamente um “herege arrependido”, eis que continua a usar armamento pesado para atacar ex-aliados e combatentes de exércitos até então coligados.
Ocorre uma inversão de papéis. Ao mudar de lado, o delator promove tiroteio entre advogados. Para alguns, importa garantir a liberdade provisória, mesmo sob o aperto de uma tornozeleira eletrônica.
Nas praças de guerra de Curitiba e Brasília, a palavra continua a ser a principal arma. É usada para desvendar a guerra iniciada há anos, quando um grupo de combatentes começou a cercar a fortaleza da Petrobras, utilizando armas leves que, ao longo do tempo, ganharam maior calibre.
Os recursos – doações, propinas – enchiam cofres de uma poderosa rede de mando. Conquistas foram alcançadas, suprindo, na vanguarda, campanhas políticas e, na retaguarda, cabos eleitorais e exércitos intermediários.
As batalhas, ao se aproximarem dos Senhores da Guerra, chegaram a uma intensidade nunca d’antes vista. Na paisagem devastada, alguns chefes de exércitos usam estratégias diferentes.
Aécio Neves, tucano, adota a estratégia direta, no melhor estilo de Clausewitz, orientando o ataque frontal à inimiga, para chegar a um final rápido e definitivo, tirando-a do comando do país.
Outro comandante tucano, Geraldo Alckmin, prefere a vida indireta, a de comer pelas bordas, deixando a adversária se consumir pela escassez dos próximos tempos.
Ao sugerir que sua pupila Dilma corra de encontro ao povo e, pouco a pouco, expanda força para enfrentar a batalha de 2018, Lula defende a estratégia de insuflar a retaguarda das margens, alternativa que tem para salvaguardar o projeto político do PT. Não será fácil.
A unidade dos exércitos aliados se esfarela. A guerra pode tomar novos rumos em função da fricção que ocorre nas divisões aliadas.
Um Senhor da Guerra, Eduardo Cunha, rompe publicamente com a comandante-em-chefe das tropas governistas, prevendo-se mais conflitos na frente dos combatentes encastelados no Congresso.
Ao escolher a estratégia do confronto, Cunha passa a liderar a vanguarda oposicionista. Arrisca-se muito. Nas guerras, costuma ganhar o exército mais bem guarnecido e treinado. Só comandantes com visão apurada do potencial dos adversários escolhem o confronto. Mesmo assim, isso não é suficiente para a vitória. Basta ver os exemplos de Napoleão e Hitler, dois cultores do embate direto. O imponderável – o inverno das circunstâncias – deve ser considerado.
A análise de balística no teatro da guerra demonstra que o poderio arrasador ainda está por vir. A cargo de mais exércitos de retaguarda, aqueles que detêm o poder de atirar com a letra da lei. Contra estes, não há salvação.
Gaudêncio Torquato
Por que o sangue do leão Cecil mancha a todos nós
O mundo, sobretudo as crianças, está chorando a morte do leão Cecil e, para consolar os pequenos, os pais os fazem dormir abraçados a um leão de brinquedo.
É possível que essa história que tomou as redes sociais tenha doído em cada um de nós por motivos diferentes. Sem dúvida, nela se misturam vários elementos que tornam mais repugnante e simbólica essa tragédia animal, como o truque para tirar a fera do parque, sua morte cruel ao deixá-lo dois dias agonizando, sua posterior decapitação e os 50.000 dólares (165.000 reais) que teriam sido pagos para corromper guias do parque.
Sim, já sei. Alguém já escreveu: por que tanto barulho pelo sacrifício, ainda que doloroso, de um leão, quando a cada dia são assassinados milhares de humanos inocentes? O que a morte cruel de um animal acrescenta à barbárie que nos brinda a cada dia nossa suposta humanidade? Por que as pessoas não choram, protestam e se revoltam mais com as injustiças sociais que espalham vítimas por nosso planeta?
E, no entanto, a crueldade perpetrada contra o leão está aí. O mundo se levantou contra o caçador norte-americano. Talvez por vê-lo como um espelho que nos mostra o mais baixo de nossos instintos de violência e desprezo pela vida. E quando falamos de vida, os soberbos humanos não podemos nem devemos esquecer que a vida animal está estreitamente ligada à nossa. Formamos, pessoas e animais, uma única família indissolúvel.
Talvez essa indignação generalizada contra o caçador do leão reflita uma conscientização coletiva e positiva de que, neste nosso mundo, ou nos salvamos e respeitamos juntos ou juntos nos perderemos.
Os soberbos humanos não devemos esquecer que a vida animal está estreitamente ligada à nossa. Formamos, pessoas e animais, uma única família indissolúvel
Se o sacrifício inútil e bárbaro de Cecil doeu em cada pessoa por um motivo diferente, há algo que ficou silenciado ou inadvertido. Palmer, o dentista caçador, se diz arrependido. Não de sua crueldade com o animal, mas sim porque, com diz, “não fazia ideia de que o leão fosse tão famoso e conhecido”.
Isso não lembra o que pensamos do tratamento que recebem em nossa sociedade humana os famosos e importantes, ao contrário dos anônimos e sem glória? Não costumam ser tratados de forma diferenciada, inclusive nos tribunais de justiça, os famosos e importantes, os que ostentam poder e riqueza, e os párias dos três p: pobres, putas e “pretos”?
A surpresa do caçador que matou o leão porque não sabia de sua fama não nos lembra o que se faz com as pessoas de nossas comunidades carentes? Ali as vítimas da violência institucional são sacrificadas sem excessiva preocupação, já que não são famosas, nem têm nome e poder.
A África, terra do leão Cecil, é outro emblema dessa injustiça e indignidade internacional perpetrada contra os que não são famosos. É um continente abandonado a sua sorte. A morte de seus filhos não nos tira o sono.
Causaria o mesmo clamor mundial, o mesmo eco nos meios de comunicação, o naufrágio de um navio com milhares de emigrantes africanos anônimos que se os náufragos fossem grandes industriais, políticos ou artistas de fama dos Estados Unidos?
A surpresa do caçador pelo clamor de protesto contra quem matou o animal deveria nos fazer refletir. E os 50.000 dólares pagos para martirizar o leão são um escárnio para todos aqueles que, no mundo, passam fome ou morrem por falta de dinheiro para o tratamento médico.
Quando o Rei da Espanha, Juan Carlos I, pagou 75.000 euros (quase 280.000 reais) para matar por esporte um elefante também na África, uma mulher que não conheço, Esther Marin, escreveu em meu blog algo de que nunca me esqueço: “Com o que o rei pagou para se dar o gosto de matar um elefante inocente eu teria salvado minha filha de cinco anos. Perdi-a porque não tinha recursos para conseguir remédios muito caros que só podiam ser comprados nos Estados Unidos”.
Aquela menina e aquela mãe faziam parte desses milhões de humanos que podem morrer, sem que nos escandalizemos, porque afinal de contas não eram famosos.
Obrigado, leão Cecil, por estar despertando com seu sacrifício inútil e cruel nossa consciência burguesa e adormecida!
Juan Arias
É possível que essa história que tomou as redes sociais tenha doído em cada um de nós por motivos diferentes. Sem dúvida, nela se misturam vários elementos que tornam mais repugnante e simbólica essa tragédia animal, como o truque para tirar a fera do parque, sua morte cruel ao deixá-lo dois dias agonizando, sua posterior decapitação e os 50.000 dólares (165.000 reais) que teriam sido pagos para corromper guias do parque.
Sim, já sei. Alguém já escreveu: por que tanto barulho pelo sacrifício, ainda que doloroso, de um leão, quando a cada dia são assassinados milhares de humanos inocentes? O que a morte cruel de um animal acrescenta à barbárie que nos brinda a cada dia nossa suposta humanidade? Por que as pessoas não choram, protestam e se revoltam mais com as injustiças sociais que espalham vítimas por nosso planeta?
E, no entanto, a crueldade perpetrada contra o leão está aí. O mundo se levantou contra o caçador norte-americano. Talvez por vê-lo como um espelho que nos mostra o mais baixo de nossos instintos de violência e desprezo pela vida. E quando falamos de vida, os soberbos humanos não podemos nem devemos esquecer que a vida animal está estreitamente ligada à nossa. Formamos, pessoas e animais, uma única família indissolúvel.
Talvez essa indignação generalizada contra o caçador do leão reflita uma conscientização coletiva e positiva de que, neste nosso mundo, ou nos salvamos e respeitamos juntos ou juntos nos perderemos.
Os soberbos humanos não devemos esquecer que a vida animal está estreitamente ligada à nossa. Formamos, pessoas e animais, uma única família indissolúvel
Se o sacrifício inútil e bárbaro de Cecil doeu em cada pessoa por um motivo diferente, há algo que ficou silenciado ou inadvertido. Palmer, o dentista caçador, se diz arrependido. Não de sua crueldade com o animal, mas sim porque, com diz, “não fazia ideia de que o leão fosse tão famoso e conhecido”.
Isso não lembra o que pensamos do tratamento que recebem em nossa sociedade humana os famosos e importantes, ao contrário dos anônimos e sem glória? Não costumam ser tratados de forma diferenciada, inclusive nos tribunais de justiça, os famosos e importantes, os que ostentam poder e riqueza, e os párias dos três p: pobres, putas e “pretos”?
A surpresa do caçador que matou o leão porque não sabia de sua fama não nos lembra o que se faz com as pessoas de nossas comunidades carentes? Ali as vítimas da violência institucional são sacrificadas sem excessiva preocupação, já que não são famosas, nem têm nome e poder.
A África, terra do leão Cecil, é outro emblema dessa injustiça e indignidade internacional perpetrada contra os que não são famosos. É um continente abandonado a sua sorte. A morte de seus filhos não nos tira o sono.
Causaria o mesmo clamor mundial, o mesmo eco nos meios de comunicação, o naufrágio de um navio com milhares de emigrantes africanos anônimos que se os náufragos fossem grandes industriais, políticos ou artistas de fama dos Estados Unidos?
A surpresa do caçador pelo clamor de protesto contra quem matou o animal deveria nos fazer refletir. E os 50.000 dólares pagos para martirizar o leão são um escárnio para todos aqueles que, no mundo, passam fome ou morrem por falta de dinheiro para o tratamento médico.
Quando o Rei da Espanha, Juan Carlos I, pagou 75.000 euros (quase 280.000 reais) para matar por esporte um elefante também na África, uma mulher que não conheço, Esther Marin, escreveu em meu blog algo de que nunca me esqueço: “Com o que o rei pagou para se dar o gosto de matar um elefante inocente eu teria salvado minha filha de cinco anos. Perdi-a porque não tinha recursos para conseguir remédios muito caros que só podiam ser comprados nos Estados Unidos”.
Aquela menina e aquela mãe faziam parte desses milhões de humanos que podem morrer, sem que nos escandalizemos, porque afinal de contas não eram famosos.
Obrigado, leão Cecil, por estar despertando com seu sacrifício inútil e cruel nossa consciência burguesa e adormecida!
Juan Arias
Lobo ou cordeiro?
Passei três semanas de julho na Europa, entre o trabalho (pouco) e o descanso (a que reluto a me entregar). Ainda agora escrevo da Sardenha. Caminhando pelos pequenos portos da ilha, assim como pelos da Córsega, sentindo a placidez que ainda hoje envolve a vida dessa gente, não pude evitar a nostalgia pelo nunca vivido por nós metropolitanos.
Nostalgia e inveja, mesmo sabendo, pela leitura apaixonante de Fernand Braudel, cujo livro sobre o Mediterrâneo carrego comigo, que a placidez atual mal esconde as agitações do passado, quando sarracenos, fenícios, normandos, gregos, romanos e toda gama de diferentes povos lutavam pela conquista do Mare Nostrum.
As marcas de tudo isso estão esculpidas nos fortes, torres e casamatas que se espalham pela região, quando não pelas correntes que fechavam literalmente a entrada do porto de Bonifácio, uma fortificação erguida pelo Papa Bonifácio II, incumbido da defesa da Córsega, no final do século IX.
Naqueles tempos não havia o furor pela informação em tempo real. É verdade que a notícia de um ataque pirata a uma localidade entre Gênova e Split chegava a Nápoles em três horas, graças aos fogos que, nessas ocasiões, encarregados acendiam nas torres ao longo da costa de Portofino. Mas nenhuma informação, por certo, cruzaria rapidamente o Mediterrâneo de Chipre a Gibraltar, muito menos dali à costa brasileira do outro lado do Oceano Atlântico.
Hoje, não passa dia ou noite sem que o celular ou o e-mail perturbe a paz do pretendente ao sossego. Não há notícia, boa ou má, relevante ou não, que as tecnologias atuais e a ansiedade por comunicar “novidades” não façam chegar de imediato a quem deseje ou não dela saber.
Assim, tive minha tranquilidade entrecortada, não pela agitação dos mares, mas pelo lento e contínuo noticiário sobre o desmoronar de muito do que se construiu a partir da Constituição de 1988 no Brasil. A desagregação vem de longe, mas parece ter ricocheteado com mais força no mês de julho. Tornou-se claro para a opinião pública que a crise atual nada tem a ver com a “lá de fora”, e que ultrapassa o ridículo insistir em que a culpa é do FHC.
Tornou-se óbvio que há um acúmulo de crises: de crescimento, de desemprego, de funcionamento institucional, moral, de condução política. Tardiamente, círculos petistas se lembraram de que talvez fosse oportuno conversar com os tucanos… Parece a história do abraço do afogado. Calma, minha gente, há tempo para tudo. Há hora de conversar, hora de agir e hora de rezar.
Na ocasião da viagem que a presidente Dilma e os ex-presidentes fizemos juntos à África do Sul, em dezembro de 2013, para assistir ao funeral de Mandela, disse a todos que a descrença da sociedade no sistema político havia atingido limites perigosos.
Ainda não era possível antecipar o tamanho da crise em gestação, mas não restava dúvida de que o país enfrentaria dificuldades econômicas e que essas seriam ainda maiores se as suas lideranças políticas não dessem resposta ao problema da legitimidade do sistema político.
Disse também que todos nós ali presentes, independentemente do grau maior ou menor de responsabilidade de cada um, deveríamos nos entender e propor ao país um conjunto de reformas para fortalecer as instituições políticas. A sugestão caiu no esquecimento.
Naquela ocasião, como em outras, a resposta do dirigente máximo do PT foi, ora de descaso, ora de reiteração do confronto, pela repetição do refrão autorreferente de que antes dele tudo era pior. Para embasar tal despautério, o mesmo senhor, no afã de iludir, usou e abusou de comparações indevidas.
Mais uma vez agora, sem dizer palavra sobre a crise moral, voltará à cantilena de que a inflação e o desemprego de hoje são menores do que em 2002, omitindo que, naquele ano, a economia sofreu com o medo do que poderia vir a ser o seu governo, um sentimento generalizado que, em benefício do país, meu governo tratou de atenuar com uma transição administrativa que permitiu ao PT assumir o poder em melhores condições para governar. Sobre a crise de hoje, nenhuma palavra...
Perguntado por uma repórter sobre se o ex-presidente Lula me havia enviado emissários para abrir um diálogo, respondi que ele não precisa de intermediários para isso, pois tem meus telefones. E condicionei o eventual encontro: desde que seja para uma discussão de agenda de interesse nacional e pública. Por que isso?
Porque não terá legitimidade qualquer conversa que cheire a conchavo ou, pior, que permita a suspeita de que se deseja evitar a continuidade nas investigações em marcha, ou que seja percebida como uma manobra para desviar a atenção do país do foco principal, a apuração de responsabilidades.
Será que chegou o tempo de rezar pela sorte de alguns setores da vida empresarial e política? Talvez. Mas a hora para agir já não é mais, de imediato, do Congresso e dos partidos, mas, sim, da Justiça. Essa constatação não implica dizer um “não” intransigente ao diálogo.
Decidam a Justiça, o TCU e o Congresso o que decidirem, continuaremos a ter uma Constituição democrática a nos reger e a premência em reinventar nosso futuro. Tomara que as aflições pelas quais passam o PT e seus aliados lhes sirvam de lição e os afastem da arrogância e do contínuo desprezo pelos adversários, até agora tratados como inimigos.
É hora de reconhecerem de público que a política democrática é incompatível com a divisão do país entre “nós” e “eles”. Para dialogar, não adianta se vestir em pele de cordeiro. Fica a impressão de que o lobo quer apenas salvar a própria pele.
Mais ainda, passou da hora de o lulopetismo reconhecer que controlar a inflação e respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal nada têm a ver com neoliberalismo, senão que são condição para que as políticas sociais, tanto as universais como as específicas, possam ter efeitos duráveis.
Em suma, cabe aos donos do poder o mea-culpa de haver suposto sempre serem a única voz legítima a defender o interesse do povo.
Fernando Henrique Cardoso
Nostalgia e inveja, mesmo sabendo, pela leitura apaixonante de Fernand Braudel, cujo livro sobre o Mediterrâneo carrego comigo, que a placidez atual mal esconde as agitações do passado, quando sarracenos, fenícios, normandos, gregos, romanos e toda gama de diferentes povos lutavam pela conquista do Mare Nostrum.
As marcas de tudo isso estão esculpidas nos fortes, torres e casamatas que se espalham pela região, quando não pelas correntes que fechavam literalmente a entrada do porto de Bonifácio, uma fortificação erguida pelo Papa Bonifácio II, incumbido da defesa da Córsega, no final do século IX.
Naqueles tempos não havia o furor pela informação em tempo real. É verdade que a notícia de um ataque pirata a uma localidade entre Gênova e Split chegava a Nápoles em três horas, graças aos fogos que, nessas ocasiões, encarregados acendiam nas torres ao longo da costa de Portofino. Mas nenhuma informação, por certo, cruzaria rapidamente o Mediterrâneo de Chipre a Gibraltar, muito menos dali à costa brasileira do outro lado do Oceano Atlântico.
Hoje, não passa dia ou noite sem que o celular ou o e-mail perturbe a paz do pretendente ao sossego. Não há notícia, boa ou má, relevante ou não, que as tecnologias atuais e a ansiedade por comunicar “novidades” não façam chegar de imediato a quem deseje ou não dela saber.
Assim, tive minha tranquilidade entrecortada, não pela agitação dos mares, mas pelo lento e contínuo noticiário sobre o desmoronar de muito do que se construiu a partir da Constituição de 1988 no Brasil. A desagregação vem de longe, mas parece ter ricocheteado com mais força no mês de julho. Tornou-se claro para a opinião pública que a crise atual nada tem a ver com a “lá de fora”, e que ultrapassa o ridículo insistir em que a culpa é do FHC.
Tornou-se óbvio que há um acúmulo de crises: de crescimento, de desemprego, de funcionamento institucional, moral, de condução política. Tardiamente, círculos petistas se lembraram de que talvez fosse oportuno conversar com os tucanos… Parece a história do abraço do afogado. Calma, minha gente, há tempo para tudo. Há hora de conversar, hora de agir e hora de rezar.
Na ocasião da viagem que a presidente Dilma e os ex-presidentes fizemos juntos à África do Sul, em dezembro de 2013, para assistir ao funeral de Mandela, disse a todos que a descrença da sociedade no sistema político havia atingido limites perigosos.
Ainda não era possível antecipar o tamanho da crise em gestação, mas não restava dúvida de que o país enfrentaria dificuldades econômicas e que essas seriam ainda maiores se as suas lideranças políticas não dessem resposta ao problema da legitimidade do sistema político.
Disse também que todos nós ali presentes, independentemente do grau maior ou menor de responsabilidade de cada um, deveríamos nos entender e propor ao país um conjunto de reformas para fortalecer as instituições políticas. A sugestão caiu no esquecimento.
Naquela ocasião, como em outras, a resposta do dirigente máximo do PT foi, ora de descaso, ora de reiteração do confronto, pela repetição do refrão autorreferente de que antes dele tudo era pior. Para embasar tal despautério, o mesmo senhor, no afã de iludir, usou e abusou de comparações indevidas.
Mais uma vez agora, sem dizer palavra sobre a crise moral, voltará à cantilena de que a inflação e o desemprego de hoje são menores do que em 2002, omitindo que, naquele ano, a economia sofreu com o medo do que poderia vir a ser o seu governo, um sentimento generalizado que, em benefício do país, meu governo tratou de atenuar com uma transição administrativa que permitiu ao PT assumir o poder em melhores condições para governar. Sobre a crise de hoje, nenhuma palavra...
Perguntado por uma repórter sobre se o ex-presidente Lula me havia enviado emissários para abrir um diálogo, respondi que ele não precisa de intermediários para isso, pois tem meus telefones. E condicionei o eventual encontro: desde que seja para uma discussão de agenda de interesse nacional e pública. Por que isso?
Porque não terá legitimidade qualquer conversa que cheire a conchavo ou, pior, que permita a suspeita de que se deseja evitar a continuidade nas investigações em marcha, ou que seja percebida como uma manobra para desviar a atenção do país do foco principal, a apuração de responsabilidades.
Será que chegou o tempo de rezar pela sorte de alguns setores da vida empresarial e política? Talvez. Mas a hora para agir já não é mais, de imediato, do Congresso e dos partidos, mas, sim, da Justiça. Essa constatação não implica dizer um “não” intransigente ao diálogo.
Decidam a Justiça, o TCU e o Congresso o que decidirem, continuaremos a ter uma Constituição democrática a nos reger e a premência em reinventar nosso futuro. Tomara que as aflições pelas quais passam o PT e seus aliados lhes sirvam de lição e os afastem da arrogância e do contínuo desprezo pelos adversários, até agora tratados como inimigos.
É hora de reconhecerem de público que a política democrática é incompatível com a divisão do país entre “nós” e “eles”. Para dialogar, não adianta se vestir em pele de cordeiro. Fica a impressão de que o lobo quer apenas salvar a própria pele.
Mais ainda, passou da hora de o lulopetismo reconhecer que controlar a inflação e respeitar a Lei de Responsabilidade Fiscal nada têm a ver com neoliberalismo, senão que são condição para que as políticas sociais, tanto as universais como as específicas, possam ter efeitos duráveis.
Em suma, cabe aos donos do poder o mea-culpa de haver suposto sempre serem a única voz legítima a defender o interesse do povo.
Fernando Henrique Cardoso
Nosso 'Cecil' morreu nos trilhos
Morreu na contramão/atrapalhando o tráfegoChico Buarque
A morte do "rei" Cecil no Zimbéabue bombou nas redes brasileiras. Foram três ou quatro dias no noticiário e mesmo revistas de canal fechado chegaram a debater por dois dias seguidos o assassinato do leão com os mais extravagantes comentários, alguns de puro chavão. Cecil, morto, deu ibope e sua morte chocou o país como se aqui nada acontecesse de violento contra animais ou sequer humanos.
Somos mesmo o reino da hipocrisia. Fizemos do fato um escarcéu como se fosse o mais absurdo do mundo. Daí esquecemos (ou preferimos esquecer?) das barbaridades aqui na terrinha. A morte dos nossos animais pela caça e aprisionamento para exportação nunca ocuparam tanto espaço. Nem se revoltam tantos pela devastação das florestas matando milhares de animais de fome. Também não merecem esse absurdo de lágrimas o assassinato nas ruas e nos hospitais diariamente.
Na mesma época do caso do leão africano, o ambulante Adílio Cabral dos Santos, mulato, pobre e ex-presidiário, foi atropelado na via férrea e a SuperVia autorizou que o trem seguinte passasse por cima do corpo. Em, qualquer país de mínima humanidade seria escândalo, condenações governamentais, presidente mostrando indignação. No Brasil, acostumado a sobreviver sob a violência, virou algo rotineiro. A mídia não deu o destaque devido nem os tais colunistas, a nata da inteligência, se dignaram a gastar uma linha com o famigerado incidente.
O pobre, o negro, o presidiário, o idoso, o menor, o desassistido são meros números para colorir as promessas políticas, nem fazem os "imortais" que não se enquadram entre eles chorem lágrimas de crocodilo; as redes sociais e a mídia tratam como noticiário corriqueiro.
Um país que assim cuida de sua gente vai querer ainda ter um governo respeitável se não respeita nem sequer um cadáver? Nosso "Cecil" não mereceu nada mais do que um enterro em cova rasa com sacrifício da família e R$ 2 mil da SuperVia como indenização (de quê? do crime?). Nem mais um pio da "democrática" nação e da velha burguesia, hoje de cara eletrônica.
Versos áureos
Entre os ensinamentos morais que não deveriam faltar na mesa de um homem de poder ou de quem tem apreço a si e à humanidade, estão os “Versos Áureos”, de Pitágoras. Confesso que muitas vezes me esqueço de consultá-los e, assim, afundo mais dentro dos meus erros. É sempre bom lembrá-los antes de uma decisão.
“Aos deuses, segundo as leis, presta justas homenagens; respeita a palavra dada, os heróis e os sábios; honra teus pais, teus reis, teus benfeitores; escolhe para teus amigos os melhores dos homens; sê obsequioso, sê fácil nos negócios; não odeies teu amigo por faltas leves; serve com o teu poder à causa do bom direito; quem faz tudo o que pode faz tudo o que deve.
Sabe reprimir, como um mestre severo, o apetite e o sono, Vênus e a cólera.
Não peques contra a honra nem de longe, nem de perto. E só sê juiz severo de ti mesmo; sê justo em ações, e não em palavras; não ofereças pretextos frívolos ao mal.
A sorte não enriquece, ela pode empobrecer-nos. Fracos ou poderosos, devemos todos morrer.
Não sejas refratário a tua dor, aceita-a; aceita o remédio útil e salutar e sabe que os homens virtuosos são os menos infelizes dos mortais aflitos; que teu coração se resigne aos injustos colóquios (à calúnia).
Deixa falar o mundo e segue sempre teu caminho, mas não faças nada levado pelo exemplo que seja sem retidão e sem utilidade.
Faze caminhar à frente o conselho que te aclara para que a obscuridade não venha atrás.
A tolice é sempre a maior das desgraças; não faças nada sem saber, sê cioso para aprender. Dá ao estudo um tempo que a felicidade deverá retribuir.
Não sejas negligente em cuidar da tua saúde e toma o necessário com sobriedade; tudo o que não pode prejudicar é permitido na vida.
Sê elegante e puro sem excitar a inveja; foge à negligência e ao fausto insolente; o luxo mais simples é o mais excelente.
Não procedas sem pensar no que vais fazer e reflete, à noite, sobre toda a tua jornada. ‘O que fiz’, ‘o que ouvi’, ‘O que devo lastimar’.
Por essa via de justiça divina, assim tu poderás escalar a excelência”.
Dispensam comentários.
Vittorio Medioli
O circo e o Congresso
Millôr Fernandes (1992)
Assinar:
Postagens (Atom)