terça-feira, 30 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


O labirinto da propaganda

Nos períodos de grande polarização social e política, as designações, os conceitos, as ideologias são sujeitos a grande turbulência semântica. A confusão criada é intencional, e é um dos instrumentos privilegiados da guerra de propaganda para manipular a opinião pública. Dilucidar o que o labirinto da propaganda pretende esconder nas bombásticas revelações que faz incessantemente não é tarefa fácil. A dificuldade é tanto maior quanto as mentiras são frequentemente misturadas com meias verdades. Vejamos alguns exemplos.

Extremismos. Faz parte da guerra de propaganda transformar o adversário que se quer alvejar em extremista. O extremismo surge frequentemente associado a fundamentalismo, dogmatismo, etc. O extremista é sempre o outro. Assim, o terrorismo é considerado extremismo, mas o terrorismo de Estado é considerado segurança nacional. Ao extremismo contrapõe-se a moderação e o centrismo. Nos países de democracia liberal manipulam-se dois extremismos contrapostos, a extrema-esquerda e a extrema-direita. Entre elas, está a moderação e o centrismo. Existem, sem dúvida, forças convencionalmente designadas de extrema-esquerda e de extrema-direita, as primeiras estando hoje em vias de extinção e as segundas, em vias de ascensão. Mas em termos de influência política nos nossos dias, o maior extremismo é o centrismo, o extremo-centrismo. A (des)ordem económica imposta pelo neoliberalismo global é constituída por uma ortodoxia económica tão dogmática e fundamentalista que impede aos Estados periféricos ou semi-periféricos qualquer margem de autonomia. Qualquer movimento no sentido de uma maior justiça social é radicalmente punido pelos bancos centrais ou pelas agências internacionais. Aliás, aqui reside outra das manipulações da linguagem: os bancos centrais são “independentes” para poderem estar na estrita dependência do neoliberalismo global. A polarização é assim entre três extremismos, e não entre dois, e aqui reside boa parte da confusão nas opções dos cidadãos. Por outras palavras, a moderação desapareceu da cena política mundial no momento em que é entronizada como virtude política pela propaganda do conformismo.

Esquerda e direita
. A polarização entre esquerda e direita é a grande marcadora das divisões ideológicas desde a Revolução Francesa e permanece vigente na Europa e nas zonas de influência político-cultural da Europa, na América latina, na Índia (em parte) e nas ex-colónias de total supremacia branca: EUA, Canada, Nova Zelândia e Austrália. Em África, é muito menos vigente, e está praticamente ausente em muitas regiões da Ásia. Nestas regiões, as polarizações políticas existem, mas são designadas doutra forma. A guerra de propaganda assume neste domínio duas versões: ou não há distinção entre esquerda e direita, ou troca os significados aos significantes e considera de esquerda o que sempre foi considerado de direita, e de direita o que sempre foi considerado de esquerda. Este é o domínio das meias verdades. De facto, as diferenças entre esquerda e direita têm-se vindo a atenuar. É essa uma das razões porque a extrema-direita assume hoje bandeiras que eram tradicionalmente da esquerda sem que ninguém se sobressalte. O caso extremo é o das recentes eleições no Reino Unido. O partido trabalhista ganhou as eleições por esmagadora maioria. No entanto, ao contrário do que seria de esperar, as diferenças entre os dois partidos não são muito grandes sobretudo no plano internacional. Por exemplo, ambos são fervorosos seguidores do neoliberalismo, ambos são adeptos da continuação da guerra da Ucrânia e ambos continuam a fornecer armas a Israel. Este é apenas um caso extremo de algo que está a acontecer noutros países. Nestas condições, os eleitores estão condenados a votar em eleições (enquanto acreditarem nelas) como voto de protesto. Votando de protesto em protesto, de frustração em frustração. Até quanto a aguentará democracia ser apenas um instrumento de protesto. Sempre que há diferença entre a esquerda e a direita no plano das opções políticas é hoje preciso muito mais cuidado analítico que antes. Por exemplo, na Europa, a grande maioria do que se convenciona ser esquerda está a favor da continuação da guerra da Ucrânia, apoia o militarismo, não se mobiliza para a luta pela paz, deixou de falar de capitalismo e aposta num neoliberalismo de rosto humano (algo impossível de imaginar). Onde as diferenças existem e são importantes são as seguintes: imigração, luta ecológica, defesa da população LGBTQI+, direitos reprodutivos das mulheres, concepções de família. São temas importantíssimos e exigiram muitas lutas para serem conseguidos. Mas não são tudo. Não investem na luta anti-capitalista nem na luta anti-colonialista, que foram das lutas fundadoras da esquerda. Sem estas, nenhuma das outras terá êxito sustentável. Basta ver o que está a acontecer com o direito ao aborto nos EUA. Em conclusão, a confusão entre esquerda e direita é em parte culpa das organizações que se reclamam dessas designações.

Libertação e dependência. Este binarismo teve uma evolução semântica desde meados do século XIX. Aplicou-se inicialmente no período do colonialismo histórico e na resistência contra ele. O oposto de libertação começou por ser colonialismo, mas à medida que as colónias se foram tornando politicamente independentes a aspiração da independência reduziu-se aos termos da dependência a que a ex-colónias foram sujeitas. Estes termos (contratos desiguais, monopólios de empresas do país colonizador, dependência financeira, continuação da exploração dos recursos naturais) constituíram o que se chamou neocolonialismo (Kwame Nkrumah, 1965) ou colonialismo sem adjetivos, para o distinguir do colonialismo histórico (ocupação territorial por uma potência estrangeira). Hoje, o binarismo libertação /dependência assume vários significados, mas todos disfarçam a ausência de libertação e a substituição de uma dependência por outra. Assim, a guerra da propaganda diz-nos que a Europa se libertou da dependência da Rússia no que respeita ao fornecimento do gás natural e do petróleo para esconder o facto de que a Europa se tornou dependente dos EUA, pagando por aqueles produtos um preço quatro ou cinco vezes mais alto do que o que pagava à Rússia, o que está na origem do actual declínio económico da Europa. A organização dos BRICS+ tende a ser uma tentativa de fuga a esta alternância, mas nada garante que a dependência da China não esteja no horizonte

A paz e a guerra. É hoje consensual entre os historiadores norte-americanos que o país esteve quase sempre em guerra desde a sua fundação. Isto não impede a propaganda de converter os EUA no grande arauto da paz, garante da paz mundial, cujas intervenções bélicas no mundo foram sempre para garantir a paz. A mentira é evidente, mas ela só é desacreditada se a guerra de propaganda tiver êxito em identificar quem são os inimigos da paz que ameaçam o mundo com a guerra total. Esses países são, antes de mais, a Rússia, que, segundo a guerra de propaganda, invadiu a Ucrânia como primeiro passo para invadir e conquistar toda a Europa. O facto de a Rússia nunca ter invadido a Europa e ter sido invadida duas vezes, uma por Napoleão e outra por Hitler, não interessa a esta narrativa. Mas o país mais ameaçador é de longe a China, como ficou consagrado na última cimeira da NATO – uma ameaça global à paz. O facto de todos os produtos que os convidados estavam a utilizar durante a cimeira, de canetas e lenços de papel até microfones, instalações sonoras, pratos e talheres terem sido fabricados na China não teve qualquer relevância. Tão pouco tem relevância que nenhum país do Sul global acredite nesta narrativa e pense que a Rússia ou a China estão sedentos de guerra. Sabem bem que o contrário é verdade. Sedento de guerra está o deep state dos EUA e o complexo-militar industrial que hoje o sustenta. Esta manipulação é tão radical que aqueles que no Norte global defendem a paz são suspeitos, considerados “terroristas da paz”, passe a contradição nos termos.

Desta inversão propagandística emergem outras para lhe dar credibilidade. Assim, a NATO é considerada uma aliança defensiva, quando todos sabemos que só o foi durante a Guerra Fria e que, a partir da queda do Muro de Berlim, se transformou numa aliança ofensiva com um sinistro historial, da Jugoslávia à Líbia e à Síria, e que agora, desmentindo o seu próprio nome (aliança do Atlântico Norte), se está expandindo para a África, a Austrália e o Mar da China.

A outra inversão paralela é a substituição do conceito de desenvolvimento pelo conceito de segurança nacional. As missões norte-americanas em África visam predominantemente a segurança nacional (curiosamente, se é nacional, por que razão são estrangeiros a exigirem que os países “ajudados” garantam a sua segurança?). Por sua vez, a palavra “ajuda ao desenvolvimento” quase desapareceu do vocabulário internacional. A própria questão das migrações é tratada como uma questão de segurança (certamente para os países para onde se tenta imigrar, não para os países donde se emigra)

Sionismo e anti-semitismo. Uma das áreas centrais da guerra de propaganda ocidental fazer equivaler a crítica do sionismo ao anti-semitismo. Como o antissemitismo é hoje considerado crime em alguns países, criticar o sionismo equivale a cometar um crime. Não interessa à guerra de propaganda que os dois termos signifiquem coisas muito diferentes, que muitos judeus sejam anti-sionistas. O importante é defender Israel faça o que fizer, seja ou não um Estado pária, esteja ou não a cometer o mais selvagem e bárbaro genocídio depois do que foi cometido conta os judeus sob o comando de Hitler. E aqui surgem outras manipulações da propaganda. Para esta, é impossível comparar o Holocausto com o genocídio de Gaza, porque Holocausto há só um e não pode haver mais nenhum. Na mentira que a guerra de propaganda quer inculcar escondem-se duas realidades, uma velha outra tragicamente nova. A primeira é que Israel está ao serviço do imperialismo norte-americano no Medio Oriente, ou melhor, na Ásia ocidental. É uma peça fundamental para uma eventual guerra com a única potência que lhes pode fazer frente na região, o Irão. Aliás, o papel que os neoconservadores norte-americanos quiseram reservar para a Ucrânia foi o de ser o Israel da Europa, um país capaz de acabar com a pretensão de relativa autonomia que a Europa pretendeu ter depois de 1945. A segunda é que o Holocausto deixou de ter o monopólio dos piores crimes dos últimos cem anos cometidos pelos Europeus. Daqui em diante haverá dois holocaustos, mesmo que a um deles chamemos genocídio. Ambos resultam do mesmo crime europeu, ainda que no segundo a Europa tenha sido entusiasticamente secundada pelos EUA.

A vitória dos néscios

Não nos deve surpreender que, a maior parte das vezes, os imbecis triunfem mais no mundo do que os grandes talentos. Enquanto estes têm por vezes de lutar contra si próprios e, como se isso não bastasse, contra todos os medíocres que detestam toda e qualquer forma de superioridade, o imbecil, onde quer que vá, encontra-se entre os seus pares, entre companheiros e irmãos e é, por espírito de corpo instintivo, ajudado e protegido. O estúpido só profere pensamentos vulgares de forma comum, pelo que é imediatamente entendido e aprovado por todos, ao passo que o gênio tem o vício terrível de se contrapor às opiniões dominantes e querer subverter, juntamente com o pensamento, a vida da maioria dos outros.

Isto explica por que as obras escritas e realizadas pelos imbecis são tão abundante e solicitamente louvadas - os juízes são, quase na totalidade, do mesmo nível e dos mesmos gostos, pelo que aprovam com entusiasmo as ideias e paixões medíocres, expressas por alguém um pouco menos medíocre do que eles.

Este favor quase universal que acolhe os frutos da imbecilidade instruída e temerária aumenta a sua já copiosa felicidade. A obra do grande, ao invés, só pode ser entendida e admirada pelos seus pares, que são, em todas as gerações, muito poucos, e apenas com o tempo esses poucos conseguem impô-la à apreciação idiota e ovina da maioria. A maior vitória dos néscios consiste em obrigar, com certa frequência, os sábios a atuar e falar deles, quer para levar uma vida mais calma, quer para a salvar nos dias da epidemia aguda da loucura universal.

Giovanni Papini, "Relatório sobre os homens"

Brasil é impotente perante a fraude de Maduro, mas pode aprender a lição

A esperança é mesmo um veneno. Poucas horas depois de Nicolás Maduro se declarar vencedor de uma eleição roubada do início ao fim, sem nem se dar ao trabalho de publicar as atas eleitorais, já me pego torcendo para que os protestos contra seu regime que pipocam por todo o país cresçam e finalmente o destronem.

Levantes populares massivos podem forçar a renúncia do ditador? Podem. Mas, como ele tem o apoio das Forças Armadas, conta com milícias armadas paramilitares e já mostrou no passado que não tem o menor problema em matar centenas de manifestantes, não parece um desfecho provável. É apenas a esperança completamente irracional que insiste em manter viva sua pequena chama.


O Brasil bem que tentou ajudar na transição para a democracia. Fomos testemunha do Acordo de Barbados, em que Maduro e opositores se comprometeram a ter eleições presidenciais limpas, transparentes e justas em 2024. Esse acordo foi rasgado e jogado no lixo pelo ditador. De nossa parte, a participação cobra um preço: o governo brasileiro tem o dever de se pronunciar.

A urna venezuelana, assim como a nossa, imprime boletins de urna. Esses estão sendo sonegados pelo governo. Quanto mais tempo passa, maior a chance de surgirem boletins falsificados. Além dos boletins, as urnas venezuelanas também imprimem votos. Sua recontagem pública deve ser exigida pela oposição. Cabe ao Brasil se juntar a esse coro.

Nossa diplomacia pode e deve ser cautelosa e cobrar as atas eleitorais e demais provas antes de emitir seu veredito. Mas quando elas finalmente chegarem —ou, o que é mais provável, quando ficar claro que elas não chegarão—, será preciso fazer uma escolha: respaldar a farsa que vimos se desenrolar na Venezuela ou apontá-la com clareza.

O que não significa que o Acordo de Barbados tenha sido um erro. Era um possível caminho para a redemocratização. No passado, tentamos a estratégia oposta: o endurecimento e corte nas relações. O governo Bolsonaro chegou a reconhecer Juan Guaidó como presidente legítimo. Lá atrás, não havia como saber se daria certo. Foi um fracasso. Assim como foi um fracasso a tentativa de influenciar o regime por meio da diplomacia amigável.

Neste momento, mesmo os governos de esquerda não ditatoriais da América cobram transparência da Venezuela: Brasil, México, Chile; todos na mesma toada. Realisticamente, não deve importar muito. Maduro já se prontificou e expulsou os diplomatas de sete países que teceram críticas ao pleito.

A moral da história é que temos muito pouca influência sobre a política de nosso vizinho. Não resta muito a fazer. Sanções já se revelaram um erro. As sanções econômicas impostas pelos EUA aprofundaram a crise social e em nada enfraqueceram o regime. Pelo contrário, seu controle sobre a sociedade se fortaleceu. A sanção cai como uma luva no discurso populista, segundo o qual todos que se opõem ao governo são traidores da nação; e passam a ser lacaios dos inimigos externos.

É do nosso interesse manter comunicação aberta com o regime Maduro tendo em vista diversos objetivos: compra de energia, recebimento de dívidas antigas, questões da fronteira etc. Fora disso, qualquer ambição de ajudar na mudança de um regime que já prendeu centenas, matou milhares e presidiu sobre uma brutal catástrofe humanitária só nos desmoraliza. No momento, podemos apenas torcer pelos manifestantes —sabendo perfeitamente que Maduro não estava brincando quando falou em "banho de sangue". Mantenho viva a tola esperança de que a democracia ainda pode triunfar, bem como a convicção de que todos os que apoiam esse regime ou buscam emular seus atos deveriam ser banidos da vida pública brasileira.

A poeira que cobre o PT ameaça cobrir Lula se ele não abrir os olhos

O PT envelheceu – até aí, nenhuma novidade, é fato. Os partidos envelhecem e são poucos os que se renovam. E muitos dos novos partidos nascem velhos. Estamos repleto deles, alguns já mortos, apenas à espera de baixar à sepultura.

Resta saber se o fundador do PT, Luiz Inácio, que no passado detestava usar macacão de operário e não escondia seu amor pelas gravatas de marca; resta saber se ele envelheceu tanto ou mais do que o PT. Não parece, mas, em todo caso…

Apressado come cru. A Executiva Nacional do PT disse que o processo eleitoral na Venezuela foi uma jornada “pacífica, democrática e soberana”. E que o importante é que Nicolás Maduro, reeleito, “continue o diálogo com a oposição”.

Como foi uma jornada “pacífica e democrática?” Na Venezuela, a justiça é livre ou é controlada do alto por Maduro e os militares? A imprensa é livre? Qualquer cidadão pode manifestar-se livremente sem o risco de ser preso?

País algum é um paraíso. No mais rico do planeta, os Estados Unidos, quase 40 milhões de pessoas, ou 10% dos americanos, vivem em um estado de pobreza excessiva; é um percentual maior da população que o do Canadá e Coreia do Sul.


Mas a Venezuela, desde que Maduro assumiu o poder há 11 anos, já perdeu um quarto dos seus habitantes, pessoas que fugiram da falta de trabalho, de remédios e de condições de levar uma vida decente. Sem falar da falta de liberdade

A maior ameaça à reeleição de Maduro era a candidatura de Maria Corina Machado, professora, deputada da Assembleia Nacional da Venezuela entre 2011 e 2014, quando teve seu mandato cassado depois de liderar protestos contra o regime.

Em junho de 20223, ao sair na frente nas primárias da oposição para a eleição presidencial, Maria Corina foi proibida por 15 anos de ocupar cargos públicos pela Controladoria-Geral da Venezuela. Edmundo González a substituiu.

Menos de 24 horas após o Conselho Nacional Eleitoral anunciar a vitória de Maduro, Maria Corina afirmou que a oposição tem como provar que González foi o vencedor da eleição; é, portanto, o novo presidente da Venezuela.

Segundo ela, a oposição conseguiu reunir mais de 70% das atas de votação de cada zona eleitoral do país: “Acho relevante dizer que essas atas registram 2.759.256 milhões de votos para Maduro, e para Edmundo González, 6.275.130”.

Os dados da oposição mostram números diferentes do órgão eleitoral dirigido por um aliado de Maduro, que proclamou a vitória do ditador por 5.150.092 votos contra 4.445.978 de González, uma vez apuradas 80% das urnas.

Os críticos de Lula começaram a dizer que ele se meteu numa tremenda saia justa ao despachar para a Venezuela seu assessor especial, o ex-ministro Celso Amorim, com a missão de verificar se a eleição de domingo foi limpa ou suja.

Não, Lula fez certo. Meter-se-á, porém, numa tremenda saia justa se avalizar o resultado da eleição sem provas definitivas, e que convençam o mundo, de que não houve fraude. Então, sim, Lula terá envelhecido tanto ou mais rápido do que o PT.