Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem que ninguém lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.
Miguel Torga, “Diário IX”
quinta-feira, 24 de novembro de 2022
Pedido de anulação da eleição estimula o golpismo
Não foi à toa que o presidente Jair Bolsonaro (PL) voltou ao Palácio do Planalto, ontem, depois de um chá de sumiço, no qual estaria em depressão e com erisipela – um processo infeccioso da pele, que pode atingir a gordura do tecido celular, causado por uma bactéria que se propaga pelos vasos linfáticos. A doença é comum em diabéticos, obesos e portadores de deficiência da circulação das veias dos membros inferiores, mas também pode ser causada pela baixa imunidade de quem está em depressão.
Na terça-feira, o pedido de anulação das eleições apresentado pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, animou Bolsonaro a liderar uma espécie de terceiro turno das eleições, embora essa seja uma causa impossível no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro acredita piamente na manipulação das urnas eletrônicas desde sua eleição em 2018, pois afirma que a teria ganho já no primeiro turno.
Pelo andar da carruagem, o presidente da Corte eleitoral, Alexandre de Moraes, nem tomaria conhecimento do pleito. Se o fizesse, alimentaria as especulações criadas por um relatório sem consistência técnica, que se alimenta de um falso argumento: a numeração de série não individualizada em 60% das urnas utilizadas no segundo turno, que são as mesmas do primeiro e das eleições anteriores. Na noite de ontem, como Costa Neto se recusou a pedir a anulação do segundo turno, não deu outra: além de negar o pedido, Moraes condenou a legenda a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões. Hoje, veremos se o PL recorrerá da decisão ao Supremo.
A última agenda oficial do presidente no Palácio do Planalto fora no dia 31 de outubro, uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dia após o segundo turno da eleição presidencial. Bolsonaro, até hoje, não reconheceu formalmente a derrota para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No dia 1º de novembro, no seu brevíssimo pronunciamento sobre as eleições, afirmou somente que continuará cumprindo a Constituição Federal e, desde então, mantinha uma postura ambígua em relação ao resultado das urnas. Agora, não, questiona a segurança das urnas e quer anular a eleição.
Bolsonaro também tem o apoio dos militares que o cercam no Palácio do Planalto e, em especial do general Braga Neto, vice de sua chapa, cuja atuação nos bastidores da campanha de Bolsonaro foi muito intensa, porém, discreta, na organização e mobilização de seus apoiadores. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão, eleito senador pelo Rio Grande do Sul, pôs mais lenha na fogueira, ao questionar a legitimidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para garantir que as eleições transcorreram normalmente e não ocorreram fraudes, o que é muito grave.
“Não basta, pura e simplesmente, respostas lacônicas do nosso Tribunal Superior Eleitoral no sentido de contestar eventuais, vamos dizer assim, denúncias ou argumentações sobre o processo (de votação). Nós teremos que evoluir nisso aí”, afirmou o vice ao nosso correspondente em Lisboa, o jornalista Vicente Nunes. “Acredito que o Tribunal Eleitoral foi parcial nesse jogo”, disse Mourão. “Há, no Brasil, uma parcela da nossa sociedade que considera que o processo (eleitoral) tem problemas. E eu, de minha parte, vejo que precisamos ter que dar mais transparência nesse processo”, completou.
Mourão não questiona a legalidade da sua própria eleição ao Senado, realizada com as mesmas urnas. Sua declaração, em evento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, porém, teve muita repercussão, inclusive internacional. Os olhos dos principais governantes do e da opinião pública do Ocidente estão voltados para o Brasil. Para o vice-presidente, as manifestações organizadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que vêm causando transtornos à maioria da população brasileira, não podem ser consideradas como golpistas.
Entretanto, basta ver as palavras de ordem das manifestações para constatar que elas são de natureza golpista, pois pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a prisão do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, e uma intervenção militar para manter Bolsonaro no poder, embora realizá-las de forma ordeira e pacífica seja um direito dos manifestantes.
Do outro lado do balcão, a equipe de transição começa a cair na real das dificuldades que enfrentará no Congresso. Não há o menor risco de aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não precisa do governo para se reeleger e não tem interesse em resolver um problema no atacado que exigirá um esforço ainda maior de negociação de Lula com o novo Congresso, no varejo.
A PEC da Transição ou do Bolsa Família, que seria apresentada ontem, por causa do impasse, talvez só possa ser formalizada na próxima semana. Diante das pressões do Centrão, ganha força a tese de que Lula não precisa da PEC para resolver o problema do Bolsa Família, pois pode administrar com um duodécimo do que foi gasto em 2022, até que o novo Orçamento seja efetivamente aprovado.
Na terça-feira, o pedido de anulação das eleições apresentado pelo presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, animou Bolsonaro a liderar uma espécie de terceiro turno das eleições, embora essa seja uma causa impossível no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Bolsonaro acredita piamente na manipulação das urnas eletrônicas desde sua eleição em 2018, pois afirma que a teria ganho já no primeiro turno.
Pelo andar da carruagem, o presidente da Corte eleitoral, Alexandre de Moraes, nem tomaria conhecimento do pleito. Se o fizesse, alimentaria as especulações criadas por um relatório sem consistência técnica, que se alimenta de um falso argumento: a numeração de série não individualizada em 60% das urnas utilizadas no segundo turno, que são as mesmas do primeiro e das eleições anteriores. Na noite de ontem, como Costa Neto se recusou a pedir a anulação do segundo turno, não deu outra: além de negar o pedido, Moraes condenou a legenda a pagar uma multa de R$ 22,9 milhões. Hoje, veremos se o PL recorrerá da decisão ao Supremo.
A última agenda oficial do presidente no Palácio do Planalto fora no dia 31 de outubro, uma reunião com o ministro da Economia, Paulo Guedes, um dia após o segundo turno da eleição presidencial. Bolsonaro, até hoje, não reconheceu formalmente a derrota para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT). No dia 1º de novembro, no seu brevíssimo pronunciamento sobre as eleições, afirmou somente que continuará cumprindo a Constituição Federal e, desde então, mantinha uma postura ambígua em relação ao resultado das urnas. Agora, não, questiona a segurança das urnas e quer anular a eleição.
O fato é que o pedido do PL foi mais um degrau da escala golpista que está em curso no país, com protestos à porta dos quartéis e bloqueios sistemáticos de estradas por caminhoneiros, sem falar em ações mais violentas, como as que ocorreram em Santa Catarina, com a queima de veículos. Bolsonaro conta com apoio de militantes inconformados com a derrota, que acreditam em qualquer coisa para mantê-lo no poder e permaneceram nas ruas após 30 de outubro.
Bolsonaro também tem o apoio dos militares que o cercam no Palácio do Planalto e, em especial do general Braga Neto, vice de sua chapa, cuja atuação nos bastidores da campanha de Bolsonaro foi muito intensa, porém, discreta, na organização e mobilização de seus apoiadores. Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão, eleito senador pelo Rio Grande do Sul, pôs mais lenha na fogueira, ao questionar a legitimidade do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para garantir que as eleições transcorreram normalmente e não ocorreram fraudes, o que é muito grave.
“Não basta, pura e simplesmente, respostas lacônicas do nosso Tribunal Superior Eleitoral no sentido de contestar eventuais, vamos dizer assim, denúncias ou argumentações sobre o processo (de votação). Nós teremos que evoluir nisso aí”, afirmou o vice ao nosso correspondente em Lisboa, o jornalista Vicente Nunes. “Acredito que o Tribunal Eleitoral foi parcial nesse jogo”, disse Mourão. “Há, no Brasil, uma parcela da nossa sociedade que considera que o processo (eleitoral) tem problemas. E eu, de minha parte, vejo que precisamos ter que dar mais transparência nesse processo”, completou.
Mourão não questiona a legalidade da sua própria eleição ao Senado, realizada com as mesmas urnas. Sua declaração, em evento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, porém, teve muita repercussão, inclusive internacional. Os olhos dos principais governantes do e da opinião pública do Ocidente estão voltados para o Brasil. Para o vice-presidente, as manifestações organizadas por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, que vêm causando transtornos à maioria da população brasileira, não podem ser consideradas como golpistas.
Entretanto, basta ver as palavras de ordem das manifestações para constatar que elas são de natureza golpista, pois pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a prisão do presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, e uma intervenção militar para manter Bolsonaro no poder, embora realizá-las de forma ordeira e pacífica seja um direito dos manifestantes.
Do outro lado do balcão, a equipe de transição começa a cair na real das dificuldades que enfrentará no Congresso. Não há o menor risco de aprovar a exclusão do Bolsa Família do teto de gastos por quatro anos. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), não precisa do governo para se reeleger e não tem interesse em resolver um problema no atacado que exigirá um esforço ainda maior de negociação de Lula com o novo Congresso, no varejo.
A PEC da Transição ou do Bolsa Família, que seria apresentada ontem, por causa do impasse, talvez só possa ser formalizada na próxima semana. Diante das pressões do Centrão, ganha força a tese de que Lula não precisa da PEC para resolver o problema do Bolsa Família, pois pode administrar com um duodécimo do que foi gasto em 2022, até que o novo Orçamento seja efetivamente aprovado.
Os Onodas nacionais
É como se fossem dois países. Em um, a vida parece seguir normalmente. O presidente eleito viaja pelo mundo e, por onde passa, é recebido com simpatia, enquanto aqui se prepara a transição de governo. No outro país, há crispação e raiva — muita raiva.
Partidários do perdedor fecham estradas, promovem motociatas, atacam pessoas, divulgam desatinos nas redes e se aglomeram diante dos quartéis clamando por intervenção militar. Fazem lembrar Hiroo Onoda, o patético tenente japonês que durante 30 anos ficou escondido na selva das Filipinas, sem saber que a Segunda Guerra Mundial já era história. O comportamento dos nossos Onodas decorre de dois fenômenos casados. O primeiro tem a ver com o modo como se informam; o segundo, com os laços que os unem a seu líder.
Em recente seminário, o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, argumentou, arrimado em dados de pesquisa, que os brasileiros vivem em ambientes estanques de informação: ecossistemas constituídos por diferentes órgãos da imprensa escrita, emissoras de rádio e TV e redes sociais que veiculam valores e imagens antagônicas dos problemas brasileiros.
Com os também cientistas políticos Frederico Batista Pereira e Nara Pavão, Nunes observou em artigo publicado há pouco que a capacidade de identificar notícias falsas variava dramaticamente conforme os meios de comunicação que as pessoas por eles entrevistadas seguiam. Telespectadores da TV Record, assinantes do Terça Livre — o blog do notório bolsonarista Allan dos Santos — e do site Brasil Paralelo penavam muito mais do que a média do público para distinguir verdade e mentira, quando expostos a uma e a outra.
Desde sempre, como até as vidraças dos palácios federais estão fartas de saber, Bolsonaro apostou na polarização política assentada em temas propícios à mobilização das emoções. De forma inédita na vida nacional, alojou no centro da disputa política valores familiares, educação dos filhos, liberdade para assumir riscos letais — como na recusa à vacinação — e, muito especialmente, a fé.
A adesão política nunca resulta de frio cálculo: envolve paixões às pencas. Mas o apelo direto e sistemático a sentimentos e valores que infundem sentido à vida privada de cada qual — e supostamente estão ameaçados por inimigos reais ou imaginários —, reforça a tendência humana a rejeitar informações que contrariam crenças arraigadas: eis o ingrediente primeiro da polarização afetiva. Por hostil ao convívio democrático, neutralizá-la é o desafio dos vitoriosos. Talvez mais difícil do que convencer Onoda de que a sua guerra acabara.
Partidários do perdedor fecham estradas, promovem motociatas, atacam pessoas, divulgam desatinos nas redes e se aglomeram diante dos quartéis clamando por intervenção militar. Fazem lembrar Hiroo Onoda, o patético tenente japonês que durante 30 anos ficou escondido na selva das Filipinas, sem saber que a Segunda Guerra Mundial já era história. O comportamento dos nossos Onodas decorre de dois fenômenos casados. O primeiro tem a ver com o modo como se informam; o segundo, com os laços que os unem a seu líder.
Em recente seminário, o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, argumentou, arrimado em dados de pesquisa, que os brasileiros vivem em ambientes estanques de informação: ecossistemas constituídos por diferentes órgãos da imprensa escrita, emissoras de rádio e TV e redes sociais que veiculam valores e imagens antagônicas dos problemas brasileiros.
Com os também cientistas políticos Frederico Batista Pereira e Nara Pavão, Nunes observou em artigo publicado há pouco que a capacidade de identificar notícias falsas variava dramaticamente conforme os meios de comunicação que as pessoas por eles entrevistadas seguiam. Telespectadores da TV Record, assinantes do Terça Livre — o blog do notório bolsonarista Allan dos Santos — e do site Brasil Paralelo penavam muito mais do que a média do público para distinguir verdade e mentira, quando expostos a uma e a outra.
Desde sempre, como até as vidraças dos palácios federais estão fartas de saber, Bolsonaro apostou na polarização política assentada em temas propícios à mobilização das emoções. De forma inédita na vida nacional, alojou no centro da disputa política valores familiares, educação dos filhos, liberdade para assumir riscos letais — como na recusa à vacinação — e, muito especialmente, a fé.
A adesão política nunca resulta de frio cálculo: envolve paixões às pencas. Mas o apelo direto e sistemático a sentimentos e valores que infundem sentido à vida privada de cada qual — e supostamente estão ameaçados por inimigos reais ou imaginários —, reforça a tendência humana a rejeitar informações que contrariam crenças arraigadas: eis o ingrediente primeiro da polarização afetiva. Por hostil ao convívio democrático, neutralizá-la é o desafio dos vitoriosos. Talvez mais difícil do que convencer Onoda de que a sua guerra acabara.
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