segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Querida, encolhi o Moro

Sergio Moro, que entrou no governo como um Super-Homem, foi reduzido a Homem-Formiga.

Aos que gostam de reordenar o passado conforme os acidentes do presente, pode ter parecido uma jogada sagaz de Bolsonaro. Afinal, ele primeiro atraiu e logo estrangulou um forte adversário na corrida de 2022.


Na fase do flerte, Jair ofereceu a Sergio o Coaf, o vigia das transações financeiras. Na do estranhamento, cedeu facilmente a agência à Economia e agora, na da asfixia, prepara sua entrega ao Banco Central, com a degola do servidor que Moro havia colocado na chefia do órgão.

Ocorreu algo parecido com as medidas legislativas preconizadas pelo ex-juiz para combater o crime e a corrupção. O presidente vendeu apoio prioritário antes da largada, mas entregou desdém pouco depois.

A “paz curitibana”, que prometia reger a relação entre o ministro da Justiça e o comando da Polícia Federal, também foi perturbada pelo mandonismo do Planalto. O efeito foi como criptonita para o Homem de Aço.

Tanto maquiavelismo, convenha, não combina com as faculdades intelectuais de Bolsonaro. Mais plausível é que uma combinação de fatos, nem todos sob o seu domínio, tenha estimulado adaptações na sua conduta presidencial, o que concorreu para o esmagamento de Moro.

Nesse processo, Bolsonaro descobriu que a autonomia de órgãos de fiscalização como a PF, a Receita e o Coaf ameaça o seu círculo familiar. Encontrou aliados circunstanciais, caso do presidente do Supremo Tribunal Federal, interessados em podar as asas de agências de controle.

O escândalo das mensagens da Lava Jato escancarou abusos de autoridades investigativas e do próprio Moro. O ministro, no contra-ataque aos hackers, enfiou o pé na jaca dos procedimentos não republicanos.

Sergio Moro beijou a lona, de onde dificilmente vai se reerguer. Resta saber até onde chegará o colossal consórcio que bolina as organizações estatais de fiscalização, agora reforçado pelo presidente da República.

Brasil sem sonhos


Voltas que o mundo dá

Apesar do intenso zum-zum nacional, com leis marotas votadas na madrugada, duas notícias de fora marcaram a semana: o risco de estagnação econômica mundial e a volta do peronismo na Argentina. O interesse por política externa nunca foi muito grande no Brasil. Mas tem crescido nos últimos anos. Senti isso na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Estudantes a frequentavam com interesse para ouvir os debates.

Bolsonaro fez parte dela, por alguns anos. Naquele momento, ainda não era um líder popular nacional. Tornou-se presidente, e discutir com líderes populares é mais áspero: os seguidores são hipersensíveis à imparcialidade ou ao preconceito.

Mas fatos são fatos. A política externa conduzida por Bolsonaro precisa ser criticada, pois pode nos levar a um isolamento perigoso no momento de uma crise mundial.


Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos. Nada a reparar. A aproximação com os Estados Unidos estava no seu programa e, creio, é apoiada pela maioria dos eleitores brasileiros.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos e está se afastando de outras partes do mundo. Isto não estava no programa. Muito menos reduzir o movimento a uma proximidade com a família Trump, como se política externa fosse tocada por amizades familiares, e não interesses nacionais.

Bolsonaro aproximou-se de Israel. Nada a reparar. Mas se afastou do mundo árabe ao anunciar que levaria a Embaixada do Brasil para Jerusalém. Não completou o plano, mas o desgaste ficou no ar.

Bolsonaro assinou um acordo comercial com a Europa, condicionado ao respeito ao meio ambiente. Nos últimos tempos, tem se dedicado a criticar a Europa, afirmando, injustamente, que a Alemanha quer comprar a Amazônia a prestação.

O acordo com a Europa ficou mais difícil, pois Alberto Fernández, vitorioso nas prévias argentinas, não o quer agora. Acha, como o ex-chanceler Celso Amorim, que o momento não é adequado para o Mercosul. Isso não impediria o Brasil de ir adiante. O próprio acordo prevê que os países entrem de acordo com seu ritmo. Quem aprovar a entrada não precisa esperar o outro.

Com as declarações de Bolsonaro, dificilmente avançaremos. Ele cancelou uma reunião com o chanceler francês para cortar o cabelo. Os franceses não entenderam essa emergência capilar.

Bolsonaro já abriu uma guerra contra os peronistas que devem voltar ao poder. Teme que os argentinos invadam o Sul, fora do verão, como os venezuelanos em Roraima.

A Argentina estava aí antes de Bolsonaro e continuará depois dele. São relações de Estado que precisam ser desenvolvidas, e não uma troca de insultos ideológicos.

Para completar as trapalhadas no Sul, o governo Bolsonaro quase derruba seu aliado paraguaio, com o acordo sobre Itaipu. Além dos problemas criados e do ressentimento nacionalista que reavivou, apareceu na negociação uma empresa brasileira ligada a um suplente do senador Major Olimpio.

Gostar de grana é realmente suprapartidário, mas torna-se algo muito sério quando envolve uma negociação delicada como a de Itaipu.

O novo embaixador do Brasil nos Estados Unidos pode ser um filho de Bolsonaro. Ele já fez referência à necessidade de bomba atômica e afirma que diplomacia sem armas é ineficaz.

Já tínhamos resolvido essa questão com os argentinos, não há mais duvida quanto à nossa política nuclear. Se somarmos a reação agressiva à eleição do que chama de bandidos de esquerda na Argentina, Bolsonaro, através do filho, pode nos afastar ainda mais de uma vizinhança tranquila, apesar das diferenças.

Quando deputado, Bolsonaro às vezes ficava bravo, mas discutia. Como presidente, sente-se um herói poderoso: ganhei as eleições.

Se Bolsonaro se fixasse numa relação apenas com os Estados Unidos, já seria extremamente perigoso. Mas o embaixador que pretender enviar aos EUA andava com um boné de propaganda da reeleição de Trump. A verdade é que Trump nos aproximou da OCDE. Mas o próprio Bolsonaro boicota essa aproximação ao apoiar a medida de Tofolli que neutraliza investigações da Receita.

O Brasil corre o risco de ficar apenas com Trump. Em termos pessoais, nada a declarar, pois a química humana é de fato surpreendente. Em termos nacionais, é um grande equivoco.

Desmate é o problema, o Inpe é apenas o mensageiro

O presidente Jair Bolsonaro prestou um desserviço ao País ao desqualificar o trabalho científico do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do seu diretor, Ricardo Galvão, acusando-o de “fazer campanha contra o País” e de que estaria “a serviço de alguma ONG”.

Antes de mais nada, é preciso lembrar que existe uma grande variedade de organizações não governamentais (ONGs), tanto no País como no exterior, algumas delas voltadas para a advocacia de causas ambientais, mas outras realizam estudos técnico-científicos que ajudam muito na análise e compreensão dos problemas. A ideia de que todas elas tenham uma agenda hostil ao País é uma simplificação grosseira e inadequada, como também é incorreta a ideia de que sejam todas organizações de “esquerda”.

As críticas de algumas delas ao que acontece na Amazônia não são nenhuma novidade. Há mais de 50 anos inúmeras dessas organizações, nacionais e internacionais, alertam o governo brasileiro sobre os sérios problemas causados pelo desmatamento ilegal e predatório que é feito naquela região. Contudo, no passado, muitas críticas e denúncias eram baseadas em observações in loco, de caráter jornalístico e usualmente muito exageradas.


A Região Amazônica é tão vasta que só medições do desmatamento por satélite poderiam dar uma ideia realista do que estava acontecendo, e isso foi feito antes de 1990 por satélites americanos. O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), na época, tinha acesso às imagens obtidas pelos satélites, mas durante o governo militar era proibida a análise e divulgação dos dados.

Responsável pelo setor de Ciência e Tecnologia do governo federal em 1991, expliquei ao presidente da República que o modo mais efetivo de enfrentar as frequentes críticas à forma como o governo enfrentava o problema, publicadas na imprensa, era analisar os dados armazenados no Inpe sobre o desmatamento e publicá-los. Isso foi feito e a política de transparência, adotada pelo governo, o que esvaziou a campanha que ocupava as páginas dos jornais.

A política de transparência adotada foi particularmente importante na época porque estava em preparação a grande conferência internacional sobre meio ambiente e desenvolvimento, a Rio-92. Nessa ocasião fomos várias vezes à sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York – com o apoio do Itamaraty –, para esclarecer representantes de governos e ONGs internacionais sobre a realidade do que estava ocorrendo na Amazônia. O resultado final contribuiu para o sucesso da Conferência do Rio, na qual foram assinadas a Convenção do Clima e a Convenção da Biodiversidade e as ONGs tiveram participação expressiva.

Um efeito colateral da publicação dos dados do Inpe foi ajudar muito as medidas tomadas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Polícia Federal, que levaram efetivamente a uma redução significativa do desmatamento ilegal até 1994.

Ao longo dos anos as técnicas de coleta e análise de informação pelo Inpe foram aperfeiçoadas – e podem ainda ser melhoradas –, mas os dados publicados regularmente são hoje uma referência utilizada por todos os cientistas que trabalham nessa área.

Por essas razões, desqualificar os dados coletados pelo Inpe ou criar embaraços à sua publicação não protege o governo, mas o torna alvo de novos ataques. Não há nada que escalões burocráticos em Brasília, no Ibama, no Ministério da Agricultura ou no Ministério de Ciência e Tecnologia possam fazer para melhorá-los.

O argumento usado pelo presidente da República de que publicar dados que indiquem um aumento do desmatamento na Amazônia poderia prejudicar os negócios internacionais do Brasil é simplesmente ingênuo. Há vários satélites artificiais cruzando o céu na Região Amazônica e outros países (e até organizações comerciais) têm acesso ao que acontece na região no que se refere ao desmatamento. No caso dos Estados Unidos, esse monitoramento já era feito antes de o Brasil começar a fazê-lo, em 1990. Não é possível, nessa área, ocultar a realidade. Liberar os dados, mas aguardando ocasião mais propicia para fazê-lo, só provocaria suspeitas de manipulação.

O que é preciso entender é que promover o desenvolvimento na Amazônia é de interesse primordial dos próprios brasileiros e pressões internacionais não são necessárias para que tomemos as providências corretas para fazê-lo, como já ocorreu no passado. Uma das formas de fazê-lo é evitar o desmatamento ilegal, porém isso só é efetivo quando toda a sociedade se engaja no tema. É o que mostra a experiência bem-sucedida da queda do desmatamento desde 2004 até recentemente. A redução do desmatamento não se deu apenas pela adoção de mais fiscalização, mas como resultado da conscientização do setor agropecuário de que suas atividades não exigem expansão territorial ilegal, mas melhorias das tecnologias usadas. Desmatar para a retirada de madeira e soltar gado nas áreas desmatadas, que era o velho paradigma usado no País, levou-nos a desmatar 200 milhões de hectares para 200 milhões de cabeças de gado (uma cabeça de gado por hectare). Esse é um método primitivo e caro de criar gado, quando outros países criam 20 ou 30 cabeças por hectare.

O apoio da sociedade só se consegue, todavia, com transparência completa. E nisso a contribuição do Inpe é essencial, bem como o apoio das próprias ONGs, devidamente esclarecidas. Desqualificar o trabalho do Inpe e o seu diretor não resolve e prejudica o próprio esforço do governo para promover um desenvolvimento que seja sustentável.

O Inpe é, no caso, apenas o mensageiro, e não a mensagem. A mensagem é o desmatamento ilegal e predatório.

Triste Bahia

Tristes sucessos, casos lastimosos,
Desgraças nunca vistas, nem faladas.
São, ó Bahia, vésperas choradas
De outros que estão por vir estranhos.

Sentimo-nos confusos e teimosos
Pois não damos remédios as já passadas,
Nem prevemos tampouco as esperadas
Como que estamos delas desejosos.


Levou-me o dinheiro, a má fortuna,
Ficamos sem tostão, real nem branca,
macutas, correão, nevelão, molhos:

Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
E é que quem o dinheiro nos arranca,
Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.
Gregório de Mattos

Retrato de um presidente

O assombroso é que Jair Bolsonaro, o capitão expulso do Exército por indisciplina, nem se esforça para disfarçar sua má índole. Ele é mau e gosta de ser. Podendo apenas criticar um adversário, ataca para destruí-lo. Vale-se de todos os meios, lícitos ou não, para alcançar o que quer. E depois celebra sem pudor o que conseguiu.

Não tem a menor empatia. Não consegue se pôr no lugar do outro. Não liga para sentimentos, a não ser os seus. Não reconhece limites. Não admite erros. Só pede desculpas, quando o faz, se isso lhe render vantagens imediatas. Põe a família (a dele) acima de tudo. E o enriquecimento dela é o que importa. Que mau sujeito!

Até chegar por acidente onde chegou, somente ele e seus parentes amargavam as consequências perversas dos seus defeitos. Desde então quem as suporta é o país. Está se tornando rapidamente um perigo para as instituições que jamais prezou, que enxerga como obstáculos à sua vontade. Se elas vacilarem ele as esmagará.

Tratar um presidente desvairado e nada confiável com reverência ou brandura servirá para que ele possa ir muito além dos seus poderes. Pobre de um país onde escasseiam as vozes de referência, abundantes no passado. Ou onde elas se calam por conveniência ou por medo. Se um dia resolverem falar poderá ser muito tarde.

Paisagem brasileira


O fantasma da verdade

O presidente da República se diz um homem espontâneo. Suas declarações escatológicas, na fronteira da insanidade e muito além da grosseria — a exemplo da política ambiental do cocô dia sim, dia não —, seriam a prova de sua autenticidade.

Palavras estapafúrdias tentam vender a imagem do improviso de um homem simples e sincero. Ora, a pretensa espontaneidade faz parte de uma estratégia complexa de manipulação fria das emoções mais irracionais, o medo, o ódio e o ressentimento. Desde a campanha eleitoral, o presidente segue à risca a cartilha de desinformação de Steve Bannon, coordenador da campanha de Donald Trump cujas digitais estão nas campanhas bem-sucedidas de Salvini na Itália, Orbán na Hungria e do Brexit no Reino Unido. O documentário “Privacidade hackeada”, disponível na Netflix, descreve as entranhas dessa estratégia. 

É parte dela sua recente escolha de assumir, sozinho, a comunicação do governo. Em tom circense, de animador de auditório, suas palavras não são ditas a esmo, têm um propósito, um alvo certeiro: iluminam sua ribalta, pautam o debate, propagam mentiras, semeiam confusão. Convocam o que há de pior nas pessoas.

Nas redes sociais e na mídia se discute “a última do Bolsonaro”. Essa cacofonia abafa o ruído da demolição de tudo que se construiu na defesa dos direitos humanos, nas ações de proteção ambiental, no combate à proliferação de armas e preconceitos. Encobre a tragédia do desmatamento da Amazônia, a desmoralização dos centros produtores de conhecimento e das instituições que vertebram o Estado. O achincalhe internacional a que nos expõe a ridícula política externa. O ataque covarde aos artistas. O perverso desmantelamento da Comissão da Verdade. Esses atos são os verdadeiros excrementos que envenenam e poluem o Brasil.

Fake news, que foram constitutivas da campanha eleitoral, são essenciais ao seu modo de governar. O presidente “espontâneo” deve sonhar com dizer sua absoluta mentira, falando sozinho. A verdade é o fantasma que assombra esse homem.
Rosiska Darcy de Oliveira

Complexo presidencial

Essa coisa de querer mostrar, a ferro e fogo, todo o tempo, que é ele quem manda, sem escutar a ninguém e sem aceitar qualquer tipo de ponderação, é muito ruim para o nosso país. O presidente precisa superar os complexos que traz do passado
Gustavo Bebianno, ex-ministro da Secretaria-Geral de Jair Bolsonaro

Cacarejos no Estado-Espetáculo

Os estilos da galinha e da pata servem para comparar governantes, partidos, políticos em geral. A primeira põe um ovo pequenino, mas cacareja e todo mundo vê; a segunda põe um ovo maior e ninguém nota. O ovo da pata é mais completo, mas o da galinha é que desperta atenção e desejo. Esse êxito se deve porque a fêmea do galo sabe alardear seu produto, cumprindo o preceito maquiavélico: “o vulgo só julga aquilo que vê”.

Bolsonaro adota o estilo galinha, como Lula. Ambos cacarejam em palanque, acusam, usam símbolos populares, exageram no mau gosto e no “baixo-calão”. Há dias, indagado sobre como preservar o meio ambiente, o presidente sugeriu “fazer cocô dia sim, dia não para reduzir a poluição”. Ou então, “basta um cocozinho petrificado de índio para barrar licenciamento de obras”.

Lula também tinha das suas. No Rio Grande do Sul, em alusão a um túnel na BR-101, mandou:“Não podemos parar tudo por causa de uma perereca, como em Osório. O País não pode ficar a serviço de uma perereca. Nem que eu tiver que me atarracar com aquela perereca, vou andar nesse túnel. E peça para a perereca sair de perto, porque eu vou vir meio nervoso".

Para compreender a importância do cacarejo na política, convém lembrar nossa inden­tidade. Os estudiosos do ethos nacional apontam imprecisão, adjetivação excessiva, individualismo e exagero em lingua­gem destemperada, indeterminada, misteriosa. Assim o Brasil balança na gangorra, ora como o melhor dos mundos, ora como o pior. Nesta verborragia, fica fácil pôr um aditivo no verbo e exagerar seus feitos.

Na era moderna, governantes e políticos sobem ao palco do Estado-Espetáculo para acrescentar palmos de altura ao seu tama­nho. No Estado Novo, a imagem do Brasil foi lapidada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) getulista. No ciclo militar, mergulhamos no Brasil-Potência. Na volta à democracia em 1986, ouvimos cacarejos de glórias aos planos econômicos do governo Sarney.

Falácias frustraram o povo. Perplexos, assistimos ao marketing do furacão Collor, as extravagâncias de Itamar, as falas elaboradas do schollar Fernando Henrique e o palanque armado de Lula. Sem esquecer o dilmês incompreensível de dona Rousseff. Todos soltando recursos e amarrando apoios.

Na antiguidade, conta-se sobre Temístocles, o ateniense, que não era de cacarejar. Convidado para tocar cítara numa festa, o general declinou:“Não sei tocar música, o que sei é fazer de uma pequena vila uma grande cidade”.

Já os governantes das nossas três esferas federativas mane­jam cítara, clarineta ou trombone. Como Bolsonaro, que fala pelos cotovelos, atira forte e xinga todo mundo, inebriado pelo poder. Gogol dizia: “Não é por culpa do espelho que as pessoas têm uma cara errada”.A ruína provocada pela pirotecnia inspira o exagero dos governantes.

O governo tem o dever de prestar contas, o que exige boa comunicação. Mas há de usar o canal legítimo, com mensagem apropriada para públicos adequa­dos. É certo mostrar propostas e desapropriado subir em palanque para vender ilusões em troca de aplausos. O Brasil precisa de menos Estado-Espetáculo e mais Estado-Cidadão.

Capitão troca o versículo de João por Lei de Murphy

O país assiste a uma nova encenação política. Estava em cartaz o enredo baseado no versículo multiuso extraído do Evangelho de João: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Entrou em cena um roteiro adaptado: "Enfrentareis a verdade, e a verdade vos aprisionará".

Nas duas tramas, Bolsonaro faz o papel de si mesmo. A diferença é que, na primeira, ele se apresenta do modo como pensa que é: um político imaculado, estalando de pureza moral. Na segunda, ele é visto da maneira como voltou a ser: um político convencional, com todos os vícios da espécie.

Ex-deputado do baixo clero, Bolsonaro inventou-se como baluarte da extrema-direita, reinventou-se como presidenciável da Lava Jato e chegou ao apogeu da metamorfose como presidente avesso aos maus costumes. No novo espetáculo, ele desossa o Coaf, intervém no Fisco e na PF, leva Sergio Moro à frigideira.

Enquanto aquele Bolsonaro hipoteticamente ético esteve no palco, travou com o pedaço do asfalto que o chama de "mito" uma relação de cumplicidade. Quem ouvia seus discursos aplaudia efusivamente ou, pelo menos, dispunha-se a acreditar graciosamente. Agora, o capitão promove um roadshow de horrores.

Bolsonaro arrasta três correntes no palco. A do filho 01 conduziu-o à parceria tóxica com Dias Toffoli. A do 02 enfiou-o num bunker assombrado por inimigos imaginários —dos generais aos comunistas. A corrente do filho 03 empurrou-o para o balcão onde a cadeira de embaixador é trocada por favores variados.

Rendido aos interesses de sua dinastia, Bolsonaro mantém com a verdade uma relação rude. Quanto mais ele a enfrenta, mais ela o aprisiona no seu enredo arcaico. Nele, prevalece não o versículo do Evangelho de João, mas o mandamento único da Lei de Murphy: quando algo pode dar errado, dará.

Pensamento do Dia


Moço mal-educado

Nos anos 50 a.C., ou seja, quando ainda não existia cristianismo, todo esforço civilizatório romano se sustentava no resgate das ideias dos filósofos gregos, do qual Marco Túlio Cícero foi um expoente. Filósofo e advogado, destacou-se como republicano, mas não foi um político bafejado plenamente pela sorte, pois acabou traído por Octaviano, filho de Julio Cezar, ao bater de frente com Marco Antônio. Assassinado em 7 de dezembro de 43 a.C., sua cabeça e suas mãos foram cortadas e expostas no Fórum Romano. Entretanto, seu legado intelectual sobrevive até hoje.

Segundo Cícero, tudo o que é moralmente correto deriva de quatro fontes: a percepção ou desenvolvimento inteligente do que é verdade; a preservação da sociedade organizada, em que todos recebem o que merece e cumprem com suas obrigações; a grandeza e força de um espírito nobre e invencível; ou a ordem e moderação em tudo o que é dito e feito, por meio da temperança e do autocontrole. O presidente Jair Bolsonaro não se enquadra plenamente em nenhum desses quesitos.

Por exemplo, no primeiro quesito, não tem compromisso com a verdade quando trata da tortura nos quartéis durante o regime militar. O caso de Fernando Santa Cruz é paradigmático. Com relação à equidade e igualdade de oportunidades na sociedade, no segundo, privilegia claramente aliados e corporações que o apoiam, como os caminhoneiros, sem falar no caso de nepotismo na indicação do filho, deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para a embaixada do Brasil em Washington. Com relação à moderação e ao autocontrole, o quarto quesito, dispensam comentários, não fazem o seu estilo de governar.

Talvez se aproxime apenas do espírito invencível, que o levou à Presidência, mas deixa muito a desejar, no terceiro quesito, quanto à nobreza, por causa do comportamento rude e desrespeitoso em relação aos que o contrariam, desde o correligionário que ousa contestá-lo à primeira-ministra alemã Angela Merkel, hoje a principal liderança europeia. Um dia sim, outro também, o presidente da República dá uma declaração polêmica, às vezes escatológica. As pesquisas dirão como a maioria da sociedade encara isso, mas as pessoas educadas, de qualquer orientação política, reagem negativamente, inclusive as que lhe deram o voto nas eleições passadas.

No exterior, então, a repercussão desse estilo de governar é péssima. Nunca um presidente brasileiro teve sua imagem tão associada ao nazismo e ridicularizada por chargistas dos principais veículos de comunicação do mundo. O presidente Donald Trump também é muito criticado por suas declarações xenófobas, racistas e misóginas, mas dispõe de meios de intervenção na política e na economia mundial com os quais não contamos. Mesmo que Bolsonaro queira fazer um piquenique à sombra de Trump na política internacional, sua capacidade de atuação em fóruns multilaterais e nas relações bilaterais sofre restrições absolutamente desnecessárias por causa de suas atitudes e declarações.

Lembro-me de uma história contada pelo falecido jornalista Walter Fontoura, então diretor da sucursal do jornal O Globo em São Paulo, sobre Roberto Marinho, seu patrão. O criador da TV Globo viajou para a capital paulista e, como sempre, Fontoura foi buscá-lo no Aeroporto de Congonhas. Marinho estava acompanhado de Lili de Carvalho, com quem havia se casado. Fora convidado para um jantar com uma personalidade, mas não conseguia lembrar o seu nome.

“Walter, como é mesmo o nome do rapaz com quem vamos jantar?”, indagou Marinho. “O escritor Vargas Llosa, aquele candidato a presidente do Peru”, respondeu Fontoura. “Não é o que rasgou a carteira de identidade na campanha?”, comentou Marinho. “É ele, sim!”, confirmou o jornalista. Foi o bastante para Roberto Marinho cancelar a agenda com o autor de Conversa na Catedral: “Esse moço é muito mal-educado, não vou jantar com ele, não”. Liberal-radical, polêmico e temperamental, Vargas Llosa perdeu a eleição para Alberto Fujimori, em 1990, mas ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 2010. Hoje, vive na Espanha.

Desde os tempos ancestrais, os códigos morais regulam o comportamento humano. Não são imutáveis. Os códigos de Ashoka, na Índia, e Hamurabi, na Babilônia, por exemplo, estão extintos. Todos, porém, buscam uma resposta para a seguinte indagação: o que é agir corretamente? Ao se tomar uma decisão, há uma dimensão ética e outra pragmática, muitas vezes tensa, que nem sempre são compatíveis. No longo prazo, o comportamento ético acaba sendo mais vantajoso.

Na política, como na teoria dos jogos, quando alguém ganha, outros perdem. Jogos de ganhar-perder são chamados de “soma zero”, porque as perdas equilibram os ganhos. Não existe ambiguidade, cada jogador fará o possível para derrotar o outro. Entretanto, há situações em que ninguém ganha, todos perdem. A guerra nuclear, os ataques ao meio ambiente e a recessão econômica, por exemplo, são situações de perde-perde. O presidente Jair Bolsonaro deveria refletir um pouco sobre isso. Muitas de suas decisões vão na direção de resultados nos quais todos perderão. Isso vale para os cortes na educação, a censura no cinema, a venda de armas, os radares das estradas e o desmatamento, para citar apenas alguns exemplos.

Bolsonaro avisa que o país não tem dinheiro e nada faz para resolver o problema

Já avançando no segundo semestre de sua administração, somente agora o presidente Jair Bolsonaro veio a público admitir “que o Brasil não tem dinheiro e os ministros estão apavorados”. É preciso ser um completo idiota para dar uma declaração desse tipo, que leva qualquer um ao desânimo, prejudica os negócios e dificulta investimentos.

Mesmo que a situação tenha atingido tal gravidade, o chefe do governo não deveria assustar os empresários e alarmar a população, que tanto confia nele.

O pior é que não oferece qualquer solução, não cita nenhuma alternativa. Apenas diz que já falou com o ministro Paulo Guedes, como se isso significasse alguma coisa.


Já afirmamos aqui na Tribuna da Internet que o Brasil se tornou uma espécie de laboratório do sistema financeiro internacional. É um país gigantesco, com a quinta maior população e um enorme mercado interno, que pode ser considerado um modelo reduzido do mundo, pois em nenhuma outra nação a miséria absoluta convive com a riqueza total em tamanha promiscuidade.

Pelas riquezas naturais e condições climáticas, é potencialmente o país com maiores condições de se desenvolver sustentavelmente, no entanto a economia está sempre emperrada. A única coisa certa a dizer é que há algo de errado no país, tipo enigma da Esfinge de Delfos – “Decifra-me ou te devoro”.

Delegar a Paulo Guedes a função de recuperar a economia foi uma decisão primária e perigosa de Bolsonaro, porque se trata de um economista totalmente ligado ao mercado financeiro, como ex-banqueiro, consultor e corretor de valores.

Além de ter dado carta branca a Guedes, o presidente Bolsonaro errou também ao aceitar que não se fizesse uma auditoria na dívida interna. Trata-se de uma necessidade óbvia. Quando um executivo assume uma empresa em dificuldades, sua primeira providência é fazer uma auditoria, que não se destina a preparar um calote nos credores nem nos investidores, apenas serve para ter real conhecimento da situação e evitar possíveis brechas de escoamento de recursos.

No caso da dívida brasileira, que é a causa da falta de dinheiro no país, a auditoria iria concluir que o maior problema é que a economia brasileira foge ao padrão internacional. Todos os países minimamente desenvolvidos só operam com juros simples, aplicados ao ano, sistema muito mais vantajoso do que o esquema brasileiro de aceitar juros compostos, também chamados de juros sobre juros, aplicados mensalmente. Esta é a diferença.

Até a gestão do grande brasileiro Itamar Franco, a dívida interna era inexpressiva, o governo pedia mais empréstimos ao exterior, com juros baixos e simples. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso é que começou a farra do boi dos banqueiros, que não sofreu interrupção.

Se fosse feita a auditoria, seria possível calcular quanto o Brasil estaria devendo hoje, se pagasse juros em padrão internacional, aplicados ano a ano. E assim se saberia também o valor pago a mais com juros compostos, calculados mês a mês.

Para demonstrar a irresponsabilidade do sistema brasileiro (que praticamente só existe aqui), os bancos cobram juros de 322% ao ano nas dívidas dos cartões de crédito, num país cuja inflação não passa de 5% ao ano.

Manada sempre a postos

Depois de qualquer eleição a sensação dos políticos - quer tenham perdido quer tenham ganho - é a de que o povo mais profundo acaba de entrar todo num comboio, dirigindo-se, compactamente, para uma terra distante. Esse povo voltará apenas, no mesmo comboio, nas semanas que antecedem a eleição seguinte.
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Esse intervalo temporal é indispensável para que o político tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou a indiferença em nova paixão genuína
Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Kraus"

Primeiro de abril o ano todo

Em 1989 Angela Merkel era uma divorciada de 35 anos que jamais fizera um pronunciamento político em público. Física com especialização em química quântica, tocava a vida fechada na Alemanha Oriental (comunista). A queda do Muro de Berlim, acontecimento épico que em novembro próximo terá o 30º aniversário festejado à altura, permitiu a Merkel ascender numa democrática sociedade alemã reunificada, e chegar ao topo do poder. Só que neste seu quarto mandato a sua própria saúde, a do país que governa e a do mundo à sua volta encontram-se em condições mais claudicantes. Ainda assim Merkel continua sendo a única chefe de Estado ou de governo deste terceiro milênio merecedora da qualificação de estadista.

E por isso tende a tratar com o devido desdém a incivilidade, vulgaridade e insegurança do presidente do Brasil em relação a ela e à nação alemã.

Difícil dizer o que foi mais feiúsco no episódio de dias atrás, quando Jair Bolsonaro respondeu, no estilo “impromptu calculado” que agora virou regra, à decisão da Alemanha de suspender a doação de R$ 150 milhões para a proteção ambiental da Amazônia. Talvez o linguajar: “Pega esta grana e refloreste a Alemanha, ok? Lá está precisando muito mais do que aqui” é chulo. Ou o riso laranja-mecânica também asqueroso com o qual Bolsonaro costuma encerrar suas tiradas. Ou ainda os figurantes do governo com cara de paisagem que assistem a estas frequentes scenate presidenciais. Decididamente, um conjunto pouco edificante.


Daí a resposta alemã ter vindo não da chancelaria em Berlim, mas através de uma plataforma mais adequada: a sátira política. Um programa humorístico na principal rede de TV pública alemã retratou o chefe da nação brasileira, em horário nobre, como “bobo da corte do agronegócio”. Com direito a uma fotomontagem na qual ele enverga a inesquecível sunga verde do também inesquecível personagem Borat, criado por Sacha Baron Cohen, além de uma paródia da música “Copacabana” rebatizada Bolsonaro-Song. Tudo meio tosco, como é o senso de humor germânico. Mas tosco por tosco, tem tudo para alimentar as redes sociais e o rancor bolsonarista.

Merkel, enquanto isso, continua a “governar pelo silêncio”, para usar o termo cunhado por seu biógrafo Dirk Kurbjuweit. Problemas graúdos não lhe faltam — como salvaguardar a Europa tendo Donald Trump em Washington, Vladimir Putin em Moscou e Xi Jinping em Pequim, ou como estancar o declínio econômico alemão, tourear as consequências do influxo migratório, encaminhar a sua sucessão marcada para 2021, ou tratar dos tremores incontidos que hoje a obrigam a ficar sentada durante cerimônias de hasteamento da bandeira. Com este pano de fundo de responsabilidades não deve ser difícil relevar descortesias de quem, como Bolsonaro, a toda hora precisa proclamar “Quem manda sou eu” e desafia a si próprio para não ser, como diz, “um presidente banana”.

Merkel tem por mantra falar apenas o necessário e encarar problemas como “tarefas”, com metodologia trazida da formação científica. Seu processo decisório de avaliar todas as opções é notoriamente lento e cauteloso, motivo de robustas críticas. Ela é assim desde criancinha. Um perfil de 2015 publicado na “Vanity Fair” conta que durante uma aula de natação quando menina ela permaneceu de pé por 45 minutos na borda de um trampolim de 10 metros com o olhar fixo na água da piscina. Só saltou segundos antes da sineta tocar anunciando o término da aula.

Já Bolsonaro sai por aí “montado num jet ski desgovernado”, expressão do colunista Bruno Boghossian, roubando o Brasil de sua melhor, e talvez única, possibilidade de ter relevância mundial: o de agente crucial na defesa global do meio ambiente. Potência militar não devemos querer ser, e potência econômica não conseguiremos, mas o país teria o perfil certo para uma arrancada ambientalista. Teria.

Diz o ditado que mesmo quando você cega uma pessoa, você não consegue condená-la a não ter visão. O inverso também é verdadeiro. Quando um líder não tem visão, seu par de olhos que enxergam acaba sendo de pouca serventia. Quando Jair Bolsonaro vê Angra dos Reis, enxerga uma futura Cancún. Quando Donald Trump pensa na Groenlândia, vê uma oportunidade de negócio: esta semana ele teria cogitado fazer uma oferta de compra daquele território autônomo pertencente à Dinamarca. A gigantesca ilha de mais de 2 milhões de km quadrados fincada entre os oceanos Atlântico e Ártico, entre o Canadá e a Europa, tem recursos naturais cobiçáveis como carvão e urânio, e abriga uma base aérea americana. (Outro ocupante da Casa Branca, Harry Truman, já tentara adquirir o território em 1946). “Só pode ser brincadeirinha de Primeiro de Abril na data errada”, comentou o ex-primeiro ministro dinamarquês Lars Lokke Rasmussen.

Pelo jeito vivemos tempos de Primeiro de Abril o ano todo. Perigosos.