domingo, 9 de julho de 2017

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O interessante estado de direito

Há coisas que não entendo no Brasil. Ou melhor, coisas que me esforço para entender. O STF, por exemplo, negou a liberdade a uma prisioneira que roubou xampu e chicletes. Mas decidiu soltar Rodrigo Rocha Loures, que recebeu a mala preta com R$ 500 mil numa pizzaria. Sou leigo e fiquei sabendo que a mulher foi mantida na prisão porque era reincidente. Provavelmente roubou um tubo de creme dental no passado e, como essas pessoas são insaciáveis, deve ter levado também a escova de dentes.

Leio no belo livro “Triste visionário”, de Lilia Moritz Schwarcz, sobre o escritor Lima Barreto, que o médico Nina Rodrigues, expoente da Escola Tropicalista Baiana, defendia no fim do século XIX que negros e brancos eram diferentes biologicamente e o Brasil precisava ter dois códigos penais. Felizmente, as ideias racistas de Nina, que conheci pelo seu trabalho pioneiro sobre a maconha, foram sepultadas. Existe apenas um código penal.

Suspeito, no entanto, que existam diferentes estados de direito. A mais generosa versão desse conceito surgiu no país quando começou a ser desmontado o gigantesco esquema de corrupção.

A Lava-Jato é responsável apenas por um terço das conduções coercitivas no país. Nunca houve problemas até que, depois da centésima experiência, a operação trouxe Lula para depor. Resultado: um grande debate nacional sobre condução coercitiva. Em 2013, o Congresso aprovou o instrumento da delação premiada. Era destinado a desarticular o crime organizado. Ninguém protestou. Ao ressurgir na Lava-Jato, a delação premiada precisou se revalidar no contexto do novo e delicado estado de direito.

Marcelo Odebrecht disse que ensinava aos seus filhos que era feio delatar. No Congresso, a delação premiada foi definida como a tortura do século XXI. E Dilma Rousseff comparou os delatores a Joaquim Silvério dos Reis, nivelando a Inconfidência Mineira ao assalto à Petrobras.

Mostrei num curto documentário como as famílias dos presos sofrem para visitar os parentes no Complexo de Bangu, às vezes, passando a noite ao relento, à espera de uma senha.

A televisão revela agora como Sérgio Cabral recebe visitas à vontade, inclusive como chegam encomendas da rua no setor onde está preso agora. Sua mulher, Adriana Ancelmo, está solta para cuidar dos filhos, e a polícia encontrou nas casas da irmã e da governanta joias escondidas por ela. Leio nos jornais que numa excursão da Escola Britânica ao exterior, o filho de Cabral foi o único a viajar na classe executiva.

Se a mulher de Cabral ajudá-lo, de novo, a roubar R$ 1 bilhão do povo do Rio, inclusive com prêmios por conceder aumento da passagem de ônibus, creio que, pela leitura da lógica do STF, irá para a cadeia. Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex, dizia o velho anúncio. A mulher que roubou o xampu deve ser jovem, desconhece slogans publicitários do passado.

Há algum tempo, desisti de esperar uma reação previsível do Supremo. Carmem Lúcia, de vez em quando, me consola prometendo que o clamor das ruas será ouvido.

De vez em quando, sim, o clamor das ruas será ouvido. Mas o sistema politico partidário brasileiro envolve com seus tentáculos os próprios ministros do Supremo. O ubíquo Gilmar Mendes articula leis no Congresso, encontra-se com investigados, discute o preço do boi com Joesley Batista e foi padrinho da casamento de Dona Baratinha, herdeira do clã que enriqueceu cobrando caro para que o povo do Rio viaje nos seus ônibus vagabundos.

A Lava-Jato lançou a ideia de que a lei vale igualmente para todos. É uma ideia tão antiga que pronunciá-la parece apenas repetir um lugar comum. Vencemos a etapa em que o racismo teorizava um código penal para brancos e outro para negros.

Mas a realidade mostra como existe ainda um grande caminho a trilhar. A lei não é igual para todos. Ela afirma que os portadores de diploma universitário têm direito à prisão especial.

E cria uma dessas situações que talvez só possa se resolver numa peça de ficção. Nas cadeias do Rio, em condições tão distintas, os cariocas que Sérgio Cabral arruinou e o novo rico que a corrupção alimentou.

Na realidade concreta do cotidiano, é um conflito insolúvel. A lei vale para todos, contudo, entretanto,você sabe como é, estamos no Brasil, um país que, definitivamente, não tolera roubo de chicletes. Como dizem os defensores do estado de direito, vivemos o perigo de um estado policial. Hoje o chiclete, amanhã um quilo de açúcar, daqui a pouco os homens podem nos levar pelo simples desvio de um milhão de dólares.

No tempo da corrupção, éramos felizes e não sabíamos. Ninguém tinha feito delação premiada. Era possível comprar eleições em nove países do continente e, sobretudo, comprar uma Olimpíada. O complexo de vira-lata foi jogado no lixo; do pingue-pongue ao polo aquático, gritávamos: Brasil, com muito orgulho e muito amor.

Aí, chegou a polícia.

Fernando Gabeira

A pinguela da pinguela

Acordo. Mais uma manhã de crise. No estado. Na cidade. No país. Para onde eu olho, vejo crise. Todos foram roubados e estão com os bolsos vazios matutando por aí. Violência urbana é pouco. Violência institucional é o bicho. Roubaram os impostos de toda a gente. Roubaram nas obras. Roubaram as sobras. Roubaram as passagens de ônibus. Roubaram da cultura, das escolas, dos hospitais. E ergueram um inferno à luz do dia.

Os piores, como diz outro ditado, não são os que ladram. São os que, calados, mordem e enfiam as patas nas goelas para roubar até a comida que já se engoliu. E, junto, roubam a coragem, o espírito, a arte e o ímpeto, agora débil, de construção da cidadania. Quem imaginaria que, já vão três décadas da redemocratização, depois de tudo pelo que se lutou, cairíamos, como uns patos depenados, neste fosso?

Fosse ele só econômico, seria justo olhar para a frente e imaginar que reformas, ideias, vontade política, visão, pactos entre poderes e sociedade (ainda existe isso?), lá adiante, seriam capazes de, sob novo leme, nos levar a um porto mais seguro. Mas é só parar para pensar um segundo: o leme, em que mãos? Chegamos a um ponto em que o retrocesso que nos carregou a tantas léguas da terra firme levou, junto, um continente de conquistas que pareciam asseguradas e, de repente, escoam na arrebentação.


Tudo que se balizou nas fundações de nossa nova democracia cada vez mais velha e menos plena está atolado no limbo da catástrofe ética/moral, e seus fios já não se conectam com uma massa crítica suficientemente forte para produzir, como deveria ser, um debate que integre a sociedade como um todo. E alimente, com sua riqueza e sua energia, uma real transformação.

Sob nova direção, as tripulações das naus executiva e legislativa permanecerão as mesmas e, dos passageiros, acorrentados em porões conjunturais, poucos terão alguma voz. A galé está à mercê dos algozes de sempre.

Ou alguém acredita que, se o presidente cair, seu substituto imediato (cansei de escrever nomes) irá se revelar um grande líder unificador e, quem sabe, alçar ao convés um ministério de notáveis para, num lance de bravo capitão, desfazer a lambança e levantar velas de grandeza altaneira?

Quem crê que uma nova aliança político-partidária, imbuída de renovados sentimentos cívicos (talvez com a ajuda de uma anistia geral e irrestrita), sustentará a travessia, abraçando as melhores plataformas e unindo-se a alguns iluminados (aos quais terá restado certa decência) que, como zumbis, erram pelos ralos das rampas e das esplanadas?

Mesmo assim, por falta de opção e por uma questão de sobrevivência, a maioria tenta se segurar à noção de que, se e quando o presidente cair, e o quanto antes isso ocorrer, estaremos em prontas condições de rearrumar a casa. É uma espera perplexa, exausta, envenenada pela sensação de que é inútil, neste momento, se manifestar como se deve: nas ruas.

Para que, se a inflação está baixa? Deixe estar, que “os outros” resolvem. Aí está a força-tarefa a zelar por nós. O procurador-geral está com a faca na boca e o queijo fatiadinho. É só ir servindo que a turma faz o resto. Ninguém perde por esperar: hoje, amanhã, semana que vem, ou até o Natal, todos os presos ainda renitentes delatarão, políticos, empresários, alguns magistrados, talvez até o próprio presidente, e o ex-presidente, e todos os presidentes, os senadores, os coronéis, os encarcerados, delatarão, e todos os mortos ressuscitarão numa espécie de apocalipse travestido em paraíso.

Com o que ficaremos quando acordarmos desse sonho abissal? O que se fará, até 2018, e depois de 2018, para curar a doença que corroeu o corpo da democracia antes de ela atingir a maturidade? Como dissipar esta nuvem, esta massa de ar empedrado que cismou de estacionar na encruzilhada com um jeito de coisa ruim que nunca mais vai sair? Qualquer olhar mais atento, um ligeiro desvio para o que está dentro da casa pode esfacelar, em segundos, os mais sinceros e otimistas vislumbres de esperança.

O que se pode esperar da geração que está no poder, e das novas que estão chegando? Como manter os olhos abertos e vigilantes e tentar separar joio de trigo quando tudo parece entrelaçado numa mesma teia povoada por criaturas soturnas? Como esperar que a pinguela da pinguela se mantenha de pé se, em quase todo espectro, vicejam ainda o sangue e a lama da grande espoliação?

Há quem tente povoar o deserto com um novo sonho: o de que virá algum grande gestor (ou gestora), líder que, através da negação da política (mas, certamente, não da ideologia), empunhando a varinha mágica da eficiência e a vassoura da objetividade, dará um fim a esta velharia.

Um mundo novo, em que cultura é desperdício, carnaval é o mal, indígenas são vagabundos, Amazônia dá um baita estacionamento, armas para todo mundo etc. Afinal, o parlamento vem avançando nessas matérias, e o Brasil... Ah, é uma tendência! Trump. Macri. Macron? Crise de representatividade. Reciclagem. Sei lá, mil coisas. É melhor deixar vir, e não descuidar do estoque de alho.

Arnaldo Bloch

Gente fora do mapa

O outro lado da Africa

A crise sobe ao pico da montanha

Há perguntas no ar que precisam de respostas: se o presidente da República é tão impopular, tendo apenas 7% de aprovação da sociedade, por que as massas não estão nas ruas exigindo sua deposição?

A economia está separada da política?

Se não, como se explica a retomada gradual da economia, a partir do crescimento de 0,8% da produção industrial em maio e sinais de reativação de outros setores produtivos?

Se o governo vai mal, terá ondições de obter o apoio de parlamentares na CCJ e no plenário da Câmara? Ou lhe faltarão forças para resistir?

As respostas implicam considerações sobre o caráter da política e a índole das classes sociais, tendo como pano de fundo a grandeza do país continental que temos.

Começando com as características da política, é oportuno lembrar que nosso sistema democrático é frouxo, incipiente; as instituições não se fundam sobre eixos sólidos, deixando ver um imenso campo de tensões entre os Poderes; há imensos buracos criados pela CF de 88, não preenchidos por legislação infraconstitucional; a representação política não se investe de convicções doutrinárias; o sistema de governo, o presidencialismo, se funda no poder da caneta (que cimenta as coalizões); o sistema partidário é uma colcha de retalhos, com cerca de 35 siglas que não representam correntes de pensamento; e o processo eleitoral abriga um conjunto de disposições em constante mutação.

Com essa argamassa, o edifício político sofre abalos, flutuando ao sabor das circunstâncias. A crise crônica, que se arrasta desde a fundação da República e cuja origem aponta para a árvore do patrimonialismo (fonte dos “ismos” que corroem os vãos do Estado – o mandonismo, o familismo, o nepotismo, o caciquismo, enfim, o fisiologismo), flui e reflui ao sabor dos ventos.

Chegou ao clímax após a passagem do lulopetismo no comando da Nação, quando se descobriu que as portas do Estado foram abertas para negociatas com círculos empresariais.

No governo Lula, o presidencialismo de coalizão instalou a cooptação parlamentar pela via da ilicitude (“mensalão”).

Ao lado de forte programa de distribuição de renda, que puxou para o meio da pirâmide milhões de pessoas (mérito a ser reconhecido), o lulopetismo também dividiu o país ao meio, agrupando de um lado seus aderentes, designados por “nós”, e jogando no outro lado grupamentos contrários, “eles”, “elites” e parcelas das classes médias.

As estruturas do Estado foram invadidas por hordas do petismo, que fincaram profundas estacas no território público, sob slogans e refrãos pregando ódio. O apartheid social fez ferver os dois caldeirões que passaram a separar a sociedade. A seara política foi tomada por discursos incandescentes. A disputa pelo poder se tornou aguda.

Sob o pano de fundo, viam-se instituições do Estado aprimorando formas de atuação. Fenômeno deflagrado pela CF de 88. O Ministério Público adensou sua missão de defesa da sociedade.

Seus quadros jovens pareciam talhados para a tarefa de “passar o Brasil a limpo”, coisa que fizeram com muita disposição, apesar das críticas sobre o açodamento que hoje caracteriza sua atuação.

Os jovens procuradores adentraram no terreno da política, com a deliberada intenção de lancetar os tumores ali existentes. Identificaram-se os “cancros do poder”, a paisagem devastada por corrupção.

O Judiciário foi acionado de forma mais intensa. E assim, o Poder mais elevado no altar da Pátria, aproximando-se das demandas sociais e saindo da redoma, passou a decidir sobre pautas do cotidiano dos cidadãos.

O alvo mais próximo foi o Legislativo, o poder mais aberto e exposto à cultura da velha política. Ficou sob a lupa de procuradores e as ordens para investigação dadas pelos juízes. Os fios do rolo da política foram se aproximando do Executivo.

O poder da caneta passou a ser monitorado. Denúncias pipocaram por todos os lados. Chegou-se, assim, às “pedaladas fiscais”, uma das razões para o afastamento da presidente Rousseff.

O cenário foi descortinado, deixando ver o descalabro nas contas públicas, uma gigantesca cratera com um rombo de R$ 170 bilhões nas contas do Estado. O vice-presidente assume com o compromisso de liderar um programa de reformas. As expectativas eram animadoras.

Nesse ponto, convém pontuar sobre características da sociedade. A pirâmide social abriga no meio uma forte classe média, de espírito muito aguçado e, nos últimos tempos, disposta a acompanhar de forma mais intensa do processo político. Já nas margens, os contingentes carentes se voltam para a micropolítica, que abriga demandas de caráter imediato – o transporte rápido, o alimento barato, o hospital acessível, a segurança pública.
Identificam-se com o populismo, seus ídolos e protetores, Lula, por exemplo. A crise fomenta a organicidade social. Entidades são criadas para defender políticas públicas, ensaiando o fortalecimento de nossa democracia participativa. Mobilizações explodem. Em 2013, chega-se ao ápice, com grandes movimentos tomando conta das ruas e clamando pela saída da presidente Dilma.

Nos últimos tempos, sob a crise que solapa a crença na política, as massas refluíram sua corrida às ruas. Parecem saturadas e com expectativas frustradas.

A crise política avança na esteira da descoberta de novos escândalos. As reformas começam a sair do papel e a firmar sua imprescindibilidade na cachola social. Vamos, então, a algumas questões inseridas no início do texto. A crise política subiu ao pico da montanha.

O MP e o Judiciário passaram a ganhar o jogo no tabuleiro de xadrez. O presidente da República passou a ser o alvo maior do bombardeio em função de delação premiada e exposição da gravação de uma conversa com um empresário.

Cairá? Resistirá? Nesse momento, o termômetro não deixa ver o grau. Enquanto isso, a economia, descolando-se da política, mostra sinais de recuperação. A população perde o ânimo de ir às ruas, até porque repudia a bandalheira de black-blocks. Fracassam greves comandadas por centrais sindicais.

Que perderam credibilidade. Mesmo com a impopularidade do presidente, as reformas avançam. Persiste a crença de que, sem elas, o futuro será sombrio.

Foguete na rabada

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                 I
Pobre no frio se acabando,
Já faltou água no pote,
O mato dá na canela,
Se queimou o cabeçote
E um governador melado
Pulando igual um caçote.

              II
Baba-ovo de magote
Com a boca no angu:
- E viva o governador,
Que eu tou mió do que tu!
E a turma do Palácio
Se acabando na Pitu.

           III
Nada se faz de concreto
E haja reunião:
Depois de mais de três horas
De muita aporrinhação,
Vem uma moça do partido
Querendo uma “colocação”.

             IV
O buraco na calçada,
O desemprego na porta,
A água chegou na lama
Que secou a nossa horta
E um aspone indefinido
Dizendo assim: “Eu tô morta!”.

            V
O governante pensando
Que está muito bacana,
O povo torcendo a cara:
- Lá vai o troco, sacana!
E o grande indefecável
Se vendendo por banana!

           VI
A eleição vem aí:
Quem comeu a bananada
Vai dizer que é do povo
E não sabia de nada.
Quem quiser voar sem asa
Pegue um foguete da Nasa
E amarre na rabada!

Vanessa, Samara, Arthur e Eduarda

Cada história dessas é um soco em nossa consciência, é um tiro de fuzil na cidadania brasileira. E tiro de fuzil não é tiro de pistola. Ele destrói o organismo, todo o tecido social em volta. Se nada acontecer – ou apenas retórica vazia –, teremos atingido o fundo do poço civilizatório.

Vanessa, 10 anos, foi morta em casa com um tiro de fuzil na cabeça, em companhia de PMs que disseram ter buscado ali um abrigo. Samara, 14 anos, teve um pulmão perfurado por um tiro de fuzil no pátio da escola e diz que sobreviveu “por milagre”. Arthur foi baleado dentro do útero materno, luta para viver e o mais provável é que fique paraplégico. Maria Eduarda, a Duda, 13 anos, foi morta na quadra esportiva da escola, ao se levantar para beber água no intervalo da educação física. Tudo isso desde o fim de março.

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O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, sente “náusea” ao ouvir a conversa de porão no Palácio presidencial? Ele fica “enjoado” com a gravação entre um presidente e um bandido, entre um bandido e um empresário, ou entre dois bandidos? Eu também fico, Janot. Mas, hoje, minha náusea é com a “bala perdida” que fez 632 vítimas no estado do Rio em seis meses. Sessenta e sete pessoas morreram com um tiro vindo de não sei onde. Em casa, na escola, no trabalho, na rua, no restaurante. Atingidos até antes de nascer.

É guerra, os hospitais sabem disso, mas o governador Pezão só grava declarações, deve meses à PM e aos aposentados. E o prefeito itinerante Crivella vai para Paris, em sua sexta viagem internacional. O secretário estadual de Segurança, Roberto Sá, dá desculpas esfarrapadas e diz que a UPP foi um equívoco e uma utopia.

Mesmo? Logo o Sá, ex-braço direito de José Mariano Beltrame. As balas perdidas, as mortes e os confrontos haviam diminuído muito com as UPPs. O Estado tinha uma estratégia séria e premiada. Mas Sérgio Cabral preferiu investir em joias em vez de fazer sua parte na pacificação. E prossegue a omissão criminosa de Pezão, Crivella e do bunker de bandidos federais engravatados em Brasília, preocupados apenas em salvar mandatos e mordomias.

Vanessa Vitória dos Santos tinha chegado da escola na terça-feira, onde ensaiou para a festa junina. Deixou a mochila rosa com desenho de princesa junto à porta. A madrinha ouviu tiros e viu quando policiais da UPP correram para dentro da casa em que a menina morava com a mãe, o padrasto e dois irmãos, em 10 metros quadrados. “Calma, moço, deixa eu pegar minha afilhada.” Mas Vanessa só teve tempo de dizer que estava com medo. O tiro entrou pela testa e saiu pela nuca. O impacto foi tão forte que ela parou do lado de fora da casa. A mãe, Adriana, se mudou, foi embora com marido e dois filhos. Está com medo.

Samara Gonçalves estava no pátio da escola na quarta-feira quando sentiu um impacto nas costas. “Mãe, se eu me levanto poderia ter sido na minha cabeça, no meu ouvido, Deus me protegeu”, disse a menina. Uma professora a abraçou chorando, avisou a direção, que chamou o Corpo de Bombeiros. Samara vive.

Maria Eduarda Alves da Conceição queria ser atleta de basquete e colecionava medalhas em competições. No pátio da escola, foi morta com dois tiros na cabeça e um nas costas. “Estou sem chão, mataram minha caçula”, disse a mãe, Rosilene, que acabara de dar um celular para a filha de presente. Duda gostava de selfies como toda adolescente e era apaixonada pelo cantor Justin Bieber.

Resposta de Crivella ao Rio? Prometeu erguer muros mais altos na escola de Duda e outras, com argamassa especial contra balas, fabricada nos Estados Unidos. Um espanto. Dos 100 dias de aulas neste ano, em apenas sete dias todas as escolas do município do Rio funcionaram sem interrupção. Tudo por causa da violência. Isso atinge 130 mil estudantes. Quando não mata nem fere, traumatiza.

Arthur nasceria dali a alguns dias. O tiro atravessou o quadril da mãe, Claudineia dos Santos Melo, perfurou um pulmão do bebê e provocou uma lesão na coluna, que pode deixar Arthur sem movimento das pernas. Claudineia saía de uma mercearia na Favela do Lixão, na Baixada Fluminense, quando bandidos atiraram em policiais que faziam patrulha. Ela se salvou. Seu maior sonho, ao receber alta, era “tocar” Arthur.

Desculpe falar disso no fim de semana. Desculpe, porque você não é parente dessas crianças, eu não sou parente dessas crianças, você pode nem morar no Rio ou, se morar, não vive numa casa de 10 metros quadrados na favela como vivia Vanessa, a última vítima de “balas perdidas” enquanto escrevo. Escrevo porque me senti como Janot. Senti náusea com a sucessão de tragédias absurdas e a falta total de solidariedade e de estratégia do poder público, diante das famílias enlutadas pelo horror, no fundo do poço.

Imagem do Dia

Netherlands. Utrecht.
Utrecht (Holanda)

Temer está caindo de podre

O Brasil pode atingir um feito nada abonador. A prevalecer o que já está acertado entre os caciques dos principais partidos do Congresso — a troca de Michel Temer por Rodrigo Maia —, em pouco mais de um ano, o país terá empossado seu terceiro presidente. Essa alta rotatividade no cargo mais alto do governo explicita o quanto o nosso sistema político está falido. Por mais que vozes se levantem dizendo que todo o processo de troca de presidentes está seguindo os trâmites previstos na Constituição, tudo leva a crer que caminhamos rápido para a beira do precipício.

Não por acaso, a população está descrente do modelo tradicional de se fazer política. Tudo o que as pessoas veem pela frente é corrupção e roubalheira. A visão popular é de que os políticos estão mais preocupados em garantir seus nacos no poder mesmo que, para isso, seja preciso apear do governo aqueles de quem, até bem pouco tempo, eram aliados de primeira hora. É o que se vê com Temer. Enquanto ele se mostrou útil para os interesses das bancadas que lhe davam suporte no Congresso, manteve uma força incontestável. Mas, ao ser atingindo em cheio por denúncias de corrupção, foi abandonado.



A fragilidade de Temer é tamanha que, mesmo no seu entorno, já começou a contagem regressiva para que ele seja deposto. O primeiro passo para a chegada de Rodrigo Maia à Presidência da República deve ser dado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com a possível aprovação da denúncia contra o presidente feita pela Procuradoria-Geral da República. O peemedebista é acusado de corrupção passiva. Poucos no Palácio do Planalto acreditam que ele conseguirá evitar uma derrota. Temer está cada vez mais parecido com Dilma Rousseff às vésperas de ela cair.

A constatação do derretimento de Temer pode ser medida pela quantidade de dinheiro liberada pelo Planalto para garantir apoio no Congresso. Em junho, pelo menos R$ 1,8 bilhão foi empenhado em emendas parlamentares, quase 20 vezes o comprometido no acumulado dos cinco meses anteriores. Ou seja, em vez de manter aliados na base do governo, a montanha de verbas foi acompanhada de uma debandada de políticos, inclusive de integrantes do partido do presidente, o PMDB. Não há liberação de emenda que garanta apoio a alguém que está caindo de podre. Dilma provou desse veneno.

No mercado financeiro, o pragmatismo também fala mais alto. Nos últimos dias, assessores de Temer mantiveram intensos contatos com investidores para medir até que ponto vai o apoio ao governo. A constatação foi clara. O peemedebista praticamente virou carta fora do baralho. Os donos do dinheiro só querem saber quando Maia tomará posse e qual será o time que comandará o país. Bancos e corretoras querem tirar do presidente da Câmara dos Deputados o compromisso de que manterá Henrique Meirelles à frente do Ministério da Fazenda e de que tocará as reformas, especialmente a da Previdência.

Maia, inclusive, já foi procurado por vários pesos-pesados do mercado. Os donos do dinheiro querem garantir uma transição tranquila até o fim de 2018 e evitar que o vácuo político de hoje seja ocupado pelo PT ou por alguém de extrema direita, como o deputado Jair Bolsonaro. “A saída de Temer já não nos preocupa mais. O que realmente importa é saber se o seu sucessor terá força suficiente para manter o país na linha e fazer as reformas necessárias. Até agora, todos os sinais que Maia nos deu é de que, caso empossado, vai trabalhar pela unidade do país e para corrigir distorções no sistema de aposentadoria”, diz um banqueiro. “É o que temos para o momento. Ninguém aguenta mais a sangria de Temer”, acrescenta.

Entre os investidores, ninguém aposta em uma onda de pânico nos mercados nos próximos dias. “A saída de Temer já está precificada. Daqui por diante, a bolsa de valores e o dólar serão movidos pelas declarações de Rodrigo Maia. Ele se tornou o centro das atenções do mercado”, assinala um executivo de um banco estrangeiro. Para ele, demorou um pouco para os investidores absorverem a possibilidade de mais uma mudança de governo. “Os fatos, contudo, se impuseram. Podem acreditar: com Temer cambaleante, o tiroteio sobre ele vai aumentar muito. Ele não resistirá”, acrescenta.

Resta saber como o presidente se comportará até que chegue o ato final. Por enquanto, ele tem mantido a sobriedade na economia. Todas as iniciativas populistas do governo foram abortadas. A inflação está sob controle, a atividade, mesmo fraca, dá sinais de que está respirando sem aparelhos, o desemprego parou de piorar e os juros continuarão em queda. Se essa rota for mantida, como diz um dos mais respeitados gestores de recursos do país, Temer já irá tarde.

Trump, Gilmar e o fim da realidade

Com o advento da internet e das ferramentas de mídia social — websites, blogs, YouTube, Twitter e contas de Facebook — qualquer pessoa ou pequena organização se tornou capaz de veicular informações para o grande público.

O jornalismo tradicional, que (supostamente) é pautado por regras que garantem a apuração correta dos fatos, que dá direito de resposta e aceita o contraditório e que é exercido por corporações e pessoas que têm nome, razão social e endereços conhecidos, passou a concorrer com indivíduos ou organizações anônimas que disseminam “informações” não para informar, mas sim para alcançar objetivos ocultos tais como desacreditar inimigos, ganhar eleições ou simplesmente aumentar o tráfego de seu website.

E não pense o leitor que a disseminação de fake news (notícias falsas) é obra exclusiva de gente marginalizada ou de organizações clandestinas.

“Terrível. Acabo de descobrir que Obama mandou grampearem meus telefones na Trump Tower antes da vitória. Nada encontrou. Isto é Macartismo”, tuitou Donald Trump, presidente eleito dos Estados Unidos...

“Espero que não fiquemos sabendo que você tem uma conta offshore nas Bahamas”, disse Marine Le Pen para Emmanuel Macron em pleno debate presidencial francês. (A pergunta se referia a um link no site 4chan.org, que expunha documentos falsos que demonstravam que Macron sonegava impostos por meio de um banco nas Ilhas Cayman. O link surgiu duas horas antes do debate...)

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A verdade é que muitas vezes as fake news são reproduzidas e utilizadas por organizações e pessoas proeminentes de forma tão rápida que muitas vezes parece estar combinado com o veículo que criou a mentira... Em um ambiente assim, em quem podemos acreditar?

De fato, as fake news se tornaram um fator tão importante na política e na vida contemporâneas que a própria aplicação do conceito de fake news passou a ser objeto de disputa. O mesmo Donald Trump, que anunciou ter sido vítima de uma gigantesca fraude eleitoral que nunca aconteceu (e que teria lhe roubado a maioria absoluta na eleição presidencial), tuitou: “Alguém competente e com convicção deveria comprar o fake news e decadente ‘New York Times’ e administrá-lo direito. Ou então deixá-lo acabar de forma digna”.

Por sua vez, o “New York Times”, que insiste em caracterizar Trump como o mago das fake news, afirmou em editorial: “Donald Trump entendeu uma coisa melhor do que quase todos os observadores das eleições de 2016: ele entendeu que a desconstrução da ‘realidade’ comum a todos e construída sobre fatos aceitos pela sociedade em geral não representa um problema, mas sim uma oportunidade... Como um autocrata, ele obtém o apoio de seus seguidores mentindo de forma tão corriqueira e descarada que milhões de pessoas simplesmente desistiram de tentar distinguir a verdade da mentira.”

O editorial do “New York Times” tocou no cerne da questão. A verdade e a mentira são propriedades de certos tipos de enunciados, a dizer, dos enunciados que afirmam algo acerca de realidade. (Enunciados declarativos na terminologia de Quine.)

E como é que distinguimos se um enunciado declarativo é verdadeiro ou falso? Comparamos este enunciado com a realidade e vemos se o que ele afirma é o caso. Mas o que acontece quando não há consenso sobre a realidade? Como é que se faz a comparação?

Este me parece ser o ponto crucial. As fake news não têm relação com o conceito de verdade. Pós-modernos a parte, todos nós sabemos distinguir enunciados verdadeiros de enunciados falsos quando podemos compará-los com a realidade. (Para saber se esta chovendo, olhamos pela janela.) O problema das fake news é que elas tornam a realidade fluida.

A proliferação insana de informações desconexas retira do cidadão comum a capacidade de saber o que é o caso. Parafraseando Marshall Berman, a proliferação das notícias falsas faz com que a realidade se desmanche no ar.

Isto, evidentemente, é um problema. Afinal, a existência de algum tipo de consenso sobre a realidade é fundamental para a vida em sociedade. Por exemplo: a Justiça só pode ser feita depois de estabelecidos os fatos. Um juiz só pode decidir se Temer cometeu crime de corrupção passiva se ele souber o que Temer fez. O que me leva ao título deste artigo?

Um dia antes da indicação da nova PGR, Gilmar Mendes jantou com Temer. Sobre esse jantar, a assessoria de Gilmar Mendes declarou que “o tema do encontro foi a reforma política.”

O que acontece com um país quando um juiz do supremo dissemina fake news?

José Padilha

Estatutos do Movimento Falidos e Mal Pagos do Brasil (Famapa do B)

Inadimplentes do mundo, uni-vos!

Artigo Primeiro:

O Brasil quebrou, estamos todos falidos, Deus não é brasileiro e eu não estou me sentindo bem.

Artigo 2º:

Da definição do Movimento.

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O Famapa é o movimento dos sem-tostão. É uma sociedade sem nenhum fim lucrativo (até porque seus membros estão todos em concordata). O Famapa não é um movimento de cunho alimentar, e sim de conscientização falimentar.

Revogam-se as disposições em contrário.

Artigo 3º:

Da maledicência com os portenhos:

Fazer piada com a desgraça argentina é gargalhar do miserê brasileiro.

Artigo 4º:

Do grito de guerra e seus apensos:

O grito de guerra do movimento será “falido unido, jamais será vencido!” permitindo-se a inclusão de um “olê, olê, olê, olá” ao início e/ou ao final de cada urra.

Artigo 5º:

Das lideranças:

O Famapa não possui líderes, ícones, comandantes, timoneiros porque não tem dinheiro para pagar salário a ninguém. Apesar disso, orienta seus associados a elevarem seus pensamentos à memória de Tião Macalé, um famapiano paradigmático.

Artigo 6º:

Do pagamento da diretoria e conselho:

O pagamento dos membros do Conselho de Segurança Falimentar se dará exclusivamente através de tickets-refeição.

Se algum diretor ou conselheiro quiser batalhar proventos de outras fontes – como apanhar guimbas na calçada – uma assembleia extraordinária deverá ser instaurada na oportunidade para a devida deliberação.

Artigo 7º:

Da comprovação de falência:

Para ser um militante ou simpatizante do movimento, o candidato não precisa comprovar sua condição de atrolhado.

Apenso ao Artigo 7º:

O Famapa é um movimento materialista idiossincrático. Em outras palavras: falência é arriar o rabo no chão. Esse papo de “falência moral” é frescura.

Artigo 8º:

Dos objetivos do Movimento:

O poeta Guilherme Arantes já dizia: “se há uma crise lá fora/ não fui eu que fiz”. Desse modo, e com a economia do jeito que anda, todo brasileiro tem direito a não pagar suas contas até que o Brasil acerte a sua economia.

Parágrafo semifinal:

Devo, não nego, pagarei com pré-datado sem fundo.

Parágrafo realmente final:

Dia 16 de outubro, comemorar-se-á o Dia de Santa Edwiges, padroeira dos Endividados.

Carlos Castelo

Paisagem brasileira

praia do rosa
Praia do Rosa (SC)

No futuro...

The old beauty.
Um mundo de velhos solitários é o futuro de um mundo de ricos autônomos e amedrontados
Luiz Felipe Pondé

Antes as balas se perdessem...

Não sei quem criou a expressão bala perdida, nem quero saber. Perdida por quê? Porque não atingiu o alvo desejado e foi pegar quem não devia? Queria eu que as balas atiradas durante as batalhas entre polícia e bandidos se perdessem, sim. Que fossem parar na p.q.p.

Mas não, elas não se perdem, elas vão se aninhar no corpo de inocentes que têm o azar de viver ou de estar passando nas áreas onde a batalha diária aqui no Rio já perdeu a característica de tentativa de sanear a cidade e transformou-se numa guerra civil disfarçada.

“Onde nossas crianças estão a salvo”, pergunta o jornal O Dia. Pergunta que eu repito. Pergunta que ninguém sabe responder.

Insegurança é palavra com pouca força para definir o que estamos sentindo. Creio que a definição correta do sentimento que invade a alma do carioca e do fluminense é medo.

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Medo, pavor, só isso explica a inação da sociedade, o fato de ainda não termos ido para as ruas cobrar de nossas autoridades ações positivas para resolver o descalabro que tomou conta de nossa Polícia e exigir que o Governo Federal use de suas prerrogativas para exigir que as Forças Armadas cumpram parte vital de suas funções, a manutenção da Lei e da Ordem em nosso território e a fiscalização rigorosa de nossas fronteiras.

Ou o Rio de Janeiro não faz parte do território nacional?

A Imprensa tem feito sua parte, noticiando o dia a dia trágico e assustador que vivemos. Os números são terríveis e não duram 24 horas. Ontem O Globo lido logo pela manhã falou em 632 vítimas atingidas por balas, sendo que 67 mortas. Qual será a estatística de amanhã?

Disse o Secretário de Segurança do Rio no programa Estúdio I, da Globo News, que o confronto entre policiais e bandidos não é recomendável, mas pode estar acontecendo.

Pode?

Segundo ele, o cidadão liga para o 190 pedindo ajuda, a polícia vai atender a ocorrência onde quer que o caso esteja acontecendo, seja lá onde for, perto de uma escola, de um hospital, de uma igreja. “A polícia atende a uma demanda da sociedade” e nesse momento pode ocorrer um desvio, um erro operacional, um acidente fatal.

Qual a solução, então? Que tal copiarmos o que Nova York fez há uns 30 anos atrás, quando sua polícia estava corrupta, violenta, descontrolada? A solução foi a óbvia: as autoridades enfrentaram com coragem e determinação esses problemas, reformando e reformulando seus batalhões.

E é disso que precisamos: coragem e determinação das autoridades e instituições governamentais. O economista Daniel Cerqueira, técnico do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista em economia do crime e segurança pública, considera que o Rio vive hoje um verdadeiro descontrole:

“Cada grupo de policiais, cada batalhão, faz suas operações e sai atirando a esmo, matando, morrendo. Estamos vivendo uma verdadeira anarquia no sistema de segurança do Rio. É preciso superar isso”.

O que não dá é para estarmos pranteando diariamente nossas crianças, deixando famílias dizimadas, infiltrando a desesperança no coração de nossos jovens.

Temos em estado crítico numa UTI um brasileirinho que ainda não tinha nascido. Ou melhor, que ainda não nasceu...

E tem gente se preocupando se vai ou não ter Carnaval? Deus do Céu, o que houve conosco?

A inexorável agonia do rio São Francisco

Publiquei, nove anos atrás, uma crítica ao projeto de transposição do São Francisco, argumentando que ele estava morrendo; portanto, a dispendiosa obra estaria fadada ao fracasso. Baseava-me em minha vivência e em informações de primeira mão do que estava acontecendo na margem direita do rio, desde Lagoa da Prata até Belo Horizonte, Alto São Francisco. A mídia ignora essa porção da bacia, exceto quando enfoca a nascente, na serra da Canastra. Não divulga, então, sérios problemas, justamente na região com maior densidade populacional.

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Na semana passada, obtive novas informações em Lagoa da Prata e observei que a situação piorou muito nos últimos anos. Infelizmente, o Velho Chico está agonizando, sem que haja um projeto consistente para sua revitalização na área onde havia muitos pântanos, córregos, ribeirões e lagoas que contribuíam para o vigor da mais importante bacia hidrográfica inteiramente brasileira.

Houve muitas causas para essa agonia. A ocupação desordenada do espaço gerou desmatamento, extinção de nascentes, atividades agropecuárias de alto impacto ambiental, assoreamento e poluição intensa por esgoto doméstico e industrial. A ausência do Estado para o planejamento adequado da economia, a fiscalização e a educação dos habitantes mantém-se ainda hoje, como se a água não tivesse qualquer importância para a sobrevivência de todos. Lagoa da Prata é um exemplo desse descaso, a 328 km da nascente. Os extensos canaviais têm comprometido muitos córregos e demandam volumosa irrigação a partir do leito principal. A área do município é de apenas 442 km², e, mesmo assim, mais de cem pântanos e lagoas foram drenados nesse território. Os rios Jacaré e Santana perderam muito volume. Felizmente, existe agora uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) que assegura água limpa oriunda dos poços artesianos e de vários córregos após abastecer a cidade. Há também muitos jovens fiscalizando e exigindo solução para os problemas ambientais.

Os problemas da bacia hidrográfica são maiores em relação aos três principais afluentes pela margem direita. Há denúncia frequente em relação ao rio das Velhas, que corta a porção norte da região metropolitana de Belo Horizonte, recebendo o esgoto in natura de grande parte de sua população. O Paraopeba, entretanto, é mais castigado porque atravessa a área industrial, sendo assoreado pelos resíduos da mineração e das empresas e poluído pelos dejetos humanos. Quanto ao rio Pará, parece que sua situação é ainda pior, porque o descaso é generalizado por onde ele passa desde Resende Costa. Ele está coberto de aguapés na barragem do Gafanhoto, próximo a Divinópolis, e, logo à frente, ele recebe grande parte do esgoto de uma cidade com mais de 230 mil habitantes, conduzido pelo subafluente, Itapecerica. O rio São João, que corta Itaúna, encontra-se também em situação deplorável. O Lambari está praticamente extinto na altura da BR–262.

Vamos assistir passivamente à morte do Velho Chico?