Vanessa, 10 anos, foi morta em casa com um tiro de fuzil na cabeça, em companhia de PMs que disseram ter buscado ali um abrigo. Samara, 14 anos, teve um pulmão perfurado por um tiro de fuzil no pátio da escola e diz que sobreviveu “por milagre”. Arthur foi baleado dentro do útero materno, luta para viver e o mais provável é que fique paraplégico. Maria Eduarda, a Duda, 13 anos, foi morta na quadra esportiva da escola, ao se levantar para beber água no intervalo da educação física. Tudo isso desde o fim de março.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, sente “náusea” ao ouvir a conversa de porão no Palácio presidencial? Ele fica “enjoado” com a gravação entre um presidente e um bandido, entre um bandido e um empresário, ou entre dois bandidos? Eu também fico, Janot. Mas, hoje, minha náusea é com a “bala perdida” que fez 632 vítimas no estado do Rio em seis meses. Sessenta e sete pessoas morreram com um tiro vindo de não sei onde. Em casa, na escola, no trabalho, na rua, no restaurante. Atingidos até antes de nascer.
É guerra, os hospitais sabem disso, mas o governador Pezão só grava declarações, deve meses à PM e aos aposentados. E o prefeito itinerante Crivella vai para Paris, em sua sexta viagem internacional. O secretário estadual de Segurança, Roberto Sá, dá desculpas esfarrapadas e diz que a UPP foi um equívoco e uma utopia.
Mesmo? Logo o Sá, ex-braço direito de José Mariano Beltrame. As balas perdidas, as mortes e os confrontos haviam diminuído muito com as UPPs. O Estado tinha uma estratégia séria e premiada. Mas Sérgio Cabral preferiu investir em joias em vez de fazer sua parte na pacificação. E prossegue a omissão criminosa de Pezão, Crivella e do bunker de bandidos federais engravatados em Brasília, preocupados apenas em salvar mandatos e mordomias.
Vanessa Vitória dos Santos tinha chegado da escola na terça-feira, onde ensaiou para a festa junina. Deixou a mochila rosa com desenho de princesa junto à porta. A madrinha ouviu tiros e viu quando policiais da UPP correram para dentro da casa em que a menina morava com a mãe, o padrasto e dois irmãos, em 10 metros quadrados. “Calma, moço, deixa eu pegar minha afilhada.” Mas Vanessa só teve tempo de dizer que estava com medo. O tiro entrou pela testa e saiu pela nuca. O impacto foi tão forte que ela parou do lado de fora da casa. A mãe, Adriana, se mudou, foi embora com marido e dois filhos. Está com medo.
Samara Gonçalves estava no pátio da escola na quarta-feira quando sentiu um impacto nas costas. “Mãe, se eu me levanto poderia ter sido na minha cabeça, no meu ouvido, Deus me protegeu”, disse a menina. Uma professora a abraçou chorando, avisou a direção, que chamou o Corpo de Bombeiros. Samara vive.
Maria Eduarda Alves da Conceição queria ser atleta de basquete e colecionava medalhas em competições. No pátio da escola, foi morta com dois tiros na cabeça e um nas costas. “Estou sem chão, mataram minha caçula”, disse a mãe, Rosilene, que acabara de dar um celular para a filha de presente. Duda gostava de selfies como toda adolescente e era apaixonada pelo cantor Justin Bieber.
Resposta de Crivella ao Rio? Prometeu erguer muros mais altos na escola de Duda e outras, com argamassa especial contra balas, fabricada nos Estados Unidos. Um espanto. Dos 100 dias de aulas neste ano, em apenas sete dias todas as escolas do município do Rio funcionaram sem interrupção. Tudo por causa da violência. Isso atinge 130 mil estudantes. Quando não mata nem fere, traumatiza.
Arthur nasceria dali a alguns dias. O tiro atravessou o quadril da mãe, Claudineia dos Santos Melo, perfurou um pulmão do bebê e provocou uma lesão na coluna, que pode deixar Arthur sem movimento das pernas. Claudineia saía de uma mercearia na Favela do Lixão, na Baixada Fluminense, quando bandidos atiraram em policiais que faziam patrulha. Ela se salvou. Seu maior sonho, ao receber alta, era “tocar” Arthur.
Desculpe falar disso no fim de semana. Desculpe, porque você não é parente dessas crianças, eu não sou parente dessas crianças, você pode nem morar no Rio ou, se morar, não vive numa casa de 10 metros quadrados na favela como vivia Vanessa, a última vítima de “balas perdidas” enquanto escrevo. Escrevo porque me senti como Janot. Senti náusea com a sucessão de tragédias absurdas e a falta total de solidariedade e de estratégia do poder público, diante das famílias enlutadas pelo horror, no fundo do poço.
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