quinta-feira, 7 de março de 2019

Bolsonaro e compostura revelam-se inconciliáveis

Desde 1º de janeiro de 2019, o presidente da República vive tentando conciliar duas necessidades conflitantes: ser Jair Bolsonaro e manter um mínimo de compostura. Na noite da Terça-feira Gorda, um post do capitão no Twitter reforçou a suspeita de que Bolsonaro e compostura são mesmo dois elementos inconciliáveis.


O presidente publicou na rede antissocial um vídeo obsceno. Nele, um sujeito exibe as nádegas desnudas no alto de um ponto de ônibus. Acaricia o ânus. Ao fundo, ouve-se a algaravia típica de um bloco carnavalesco. Na sequência, um segundo personagem retira o pênis de dentro da bermuda e urina sobre a cabeça do primeiro.

Bolsonaro anotou que não se sentiu "confortável em mostrar" o vídeo. Mas acrescentou: "Temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades". Depois, cometeu uma generalização tola e ofensiva: "É isto que têm virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro".

Cinco dias antes, Bolsonaro dissera a 13 jornalistas com quem dividiu a mesa do café da manhã que decidira levar na coleira as opiniões que Carlos "Pitbull" Bolsonaro, seu filho "Zero Dois" despeja nas redes: "Tudo passou a ter um filtro da minha parte", declarou. Faltou responder: Quem filtrará os pensamentos do pai?

O problema está na árvore, não nos frutos. Vale para os Bolsonaro uma adaptação do velho brocardo: quem sai aos seus não endireita. A exibição do vídeo escatológico é de fácil solução. O próprio Twitter pode acionar suas regras internas para retirar a vulgaridade que Jair Bolsonaro jogou no ar.

A parte mais difícil do problema é ter que lidar por pelo menos quatro anos com um presidente cuja massa cinzenta não produz senão pensamentos sombrios. Algumas observações de Bolsonaro não poderiam ser distribuídas nem nas bancas, embaladas em plástico preto. Mas elas são despejadas diariamente na internet, na frente das crianças. É como se o país estivesse condenado a uma crise de compostura perpétua.
Josias de Souza 

A chuva dourada

Desde “Pelo telefone” (Donga), composta em 1916, no quintal da casa da Tia Ciata, na Praça Onze, a relação do samba e do carnaval com os bons costumes e a ordem instituída foi tensa. A letra original do primeiro samba, “O chefe da folia/ Pelo telefone / Mandou me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar”, foi alterada para a versão mais conhecida hoje em dia, “O Chefe da Polícia / Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar”. Composto por Sinhô e gravada em 1928 pelo seu aluno de violão, Mário Reis, e depois por Aracy Cortes e Noel Rosa, o samba “Jura”, mais recentemente gravado por Zeca Pagodinho, nasceu no teatro de revista, com uma letra que insinua o sexo não-convencional: “Jura. Jura de coração/ Para que um dia/ Eu possa dar-te o meu amor/ Sem mais pensar na ilusão/ Daí então dar-te eu irei/ Um beijo puro na catedral do amor.”

No começo dos anos 1970, uma professora primária escandalizou o país ao exibir os seios num baile do Clube Sírio e Libanês, em Botafogo, no Rio de Janeiro. Era uma época em que as grandes sociedades, como o Clube dos Democráticos e os Tenentes do Diabo, estavam em absoluta decadência, o desfile de escola de samba ainda era na Avenida Presidente Vargas e os blocos de massa, apenas dois, Cacique de Ramos e Bafo da Onça. Quem quisesse brincar na rua os quatro dias de carnaval no Rio de Janeiro teria de ir à Avenida Rio Branco e correr atrás dos chamados blocos de sujo, que se formavam quase espontaneamente.

A Banda de Ipanema, que desfilara a primeira vez em 1965, inspirando o surgimento de dezenas de bandas pela cidade, fez renascer das cinzas o carnaval de rua. Sua musa inspiradora, a atriz Leila Diniz, com seu biquíni bem-comportado, escandalizara a cidade ao exibir na praia o barrigão da gravidez. Criada por Ferdy Carneiro, Albino Pinheiro, Jaguar, Ziraldo, Sérgio Cabral, o pai, e demais integrantes de O Pasquim, a banda reunia os protagonistas do cinema novo e da bossa nova, era um contraponto satírico a inúmeras proibições à cultura feitas pelo regime militar.


Com o tempo, os bailes nos clubes foram ficando cada vez mais permissivos; os desfiles de escolas de samba mais luxuosos e glamourizados; a folia de rua, mais popular e democrática. O gigantismo da Banda de Ipanema levou ao surgimento de outros blocos na Zona Sul carioca, como o Simpatia é Quase Amor, inspirado num personagem de Aldir Blanc. O carnaval, com sua força transgressora, foi a vanguarda da revolução dos costumes, em curso no mundo ocidental, desde as manifestações de 1968.

Naquela época, tudo acabava a zero hora de Quarta-feira de Cinzas. Apenas dois blocos desfilavam no Rio de Janeiro depois disso: “O que é que eu vou dizer em casa”, que reunia os foliões mais exaltados, que saiam do xadrez da antiga Delegacia de Averiguações, na Avenida Presidente Vargas; e o “Chave de Ouro”, liderado por playboys do Cine Imperator, na Avenida Dias da Cruz, no Meier, subúrbio carioca da Central do Brasil, que promoviam um jogo de gato e rato com os policiais mobilizados para impedir a folia.

Em mais de 100 anos, ninguém conseguiu conter os foliões, a liberação dos costumes nem os excessos dos mais exaltados. O vídeo divulgado pelo presidente Jair Bolsonaro, a partir de sua conta no Twitter, condenando a festa popular, é o flagrante de um fato isolado, num bloco da Bela Vista, bairro boêmio de São Paulo. As cenas obscenas de um homem urinando na cabeça de um travesti, que havia se masturbado, sobre um ponto de ônibus, porém, não poderiam ser generalizadas, por mais permissivo e erotizado que esteja o carnaval. Muito menos compartilhadas. Pornográfico, o vídeo viralizou nas redes sociais e espantou o mundo, literalmente.

Ontem, Bolsonaro se fez de desentendido e perguntou no Twitter: “O que é golden shower?”. A tradução significa “chuva dourada”, uma prática sexual escatológica. Não se sabe se a autoria foi do próprio presidente ou de seu filho caçula, o vereador carioca Carlos Bolsonaro, que opera suas redes sociais. A postagem virou chacota na imprensa mundial, porém, mobilizou os partidários do presidente da República, que lidera uma campanha moralista e ganhou as eleições com uma agenda pautada pela defesa da família. A rigor, deveria estar mais preocupado com a reforma da Previdência e a articulação da base governista na Câmara do que com o carnaval.

Viva a Mangueira!!!

Pensamento do Dia


Debate rasteiro

O Brasil dos nossos dias realmente elevou ao estado de arte, como se diz, a capacidade que as classes superiores desenvolveram nesses últimos tempos para transformar questões de desimportância ilimitada em motivo para discussões de altíssima tensão, nas quais se debate, desesperadamente, o destino final de tudo o que pode existir de essencial na existência humana. A mulher do empresário Nizan Guanaes, por exemplo, cometeu ou não crime de racismo ao utilizar os serviços profissionais de negras vestidas com o traje clássico de baianas, em sua recente festa de aniversário em Salvador?

Quais os segredos de vida e morte que o ex-ministro Gustavo Bebianno, do qual nenhum cidadão comum jamais tinha ouvido falar até hoje, vai enfim “contar para todo mundo” ─ e provocar com isso a autodestruição imediata do governo?

O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, já está marcando reuniões secretas com a CUT, a Conferência Nacional dos Bispos e o ex-presidente Fernando Henrique para acertar os detalhes finais do golpe de Estado que vai derrubar, a qualquer horinha dessas, o presidente Jair Bolsonaro? Viram o que saiu publicado na coluna do colunista A? E o que saiu publicado na coluna do colunista Z? Com a crise cada vez mais grave, quantos meses ainda pode durar este governo? E por aí se vai.


Nenhum desses portentos tem a mais remota possibilidade de resultar em qualquer tipo de coisa relevante, é claro, mas cada um deles faz um barulho danado até evaporar do noticiário, para dar lugar a outros vendavais da mesma qualidade. Aguarde a qualquer momento, portanto, mais uma crise fatal em Brasília ─ ou melhor, mais um “desdobramento” da crise que se instalou no governo desde o dia 1º de janeiro deste ano e até agora não foi embora. Já ouvimos, entre outras desgraças garantidas, que o presidente jamais conseguiria montar o seu ministério sem entregar a alma e o erário aos “políticos”.

Anular o convite para o ditador da Venezuela vir à cerimônia de posse de Bolsonaro foi uma atitude “de altíssimo risco” do novo governo ─ o Brasil, com essa decisão tresloucada, estava se isolando do resto do mundo. Renan Calheiros iria ser eleito para a presidência do Senado e, a partir dali, formaria um vigoroso polo de “poder alternativo” ao governo; a “Resistência” encontraria nele o seu novo comandante. Outros terremotos, além desses? É só escolher no Google.

Fica a impressão, no meio de toda essa calamidade permanente, que a vida política brasileira está tentando, em pleno século XXI, operar num sistema de moto-contínuo ─ os fatos, aí, se criariam através da reutilização infinita da energia gerada pelo movimento desses próprios fatos. É a fantasia da máquina que funciona sozinha.

O moto-contínuo, como se ensinava na escola, é um fenômeno cientificamente impossível, por violar as leis da termodinâmica. Mas isso aqui é o Brasil, e no Brasil todo mundo sabe que há uma porção de leis que não pegam ─ talvez seja o caso, justamente, da “crise política” que é apresentada todos os dias ao público.

Um acontecimento ganha vida, prospera, desaparece e se reproduz num outro, o tempo todo; o mesmo processo se repete com esse outro acontecimento, e assim a coisa não para nunca. Não tem a menor importância a força real dos fatos apresentados à população, nem a constatação de que nunca resultam em nada de prático; eles existem porque são anunciados, e pronto.

A próxima catástrofe é a reforma da previdência que o governo acaba de apresentar à Câmara dos Deputados. Tanto faz o que vai realmente acontecer. Mesmo que as mudanças sejam aprovadas, você ouvirá que o governo sofreu mais uma derrota ─ ou porque tal ou qual item não passou, ou porque “o custo foi alto demais”, ou porque o ministro Zé falou uma coisa e o ministro Mané falou outra, e assim por diante. As verdadeiras questões que têm de ser resolvidas, enquanto isso, ficam voando no espaço sideral, inalcançáveis por um debate neurastênico, rasteiro e sem lógica.

Bolsonaro é legítimo, mas não é monarca absoluto

Jair Messias Bolsonaro ganhou, sem dúvida nenhuma, a eleição presidencial em dois turnos em outubro do ano passado. Obteve 57,7 milhões de sufrágios, mais de 10 milhões a mais do que o adversário de esquerda, Lula, representado por seu boneco de ventríloquo, Fernando Haddad. E não é pouco. Entre a divulgação do resultado final e a posse os derrotados ainda tentaram descaracterizar a legitimidade de sua vitória, alegando que ele não conseguiu os sufrágios de mais da metade dos eleitores aptos, pois 89,4 milhões não o escolheram: 47 milhões preferiram o derrotado, 31,3 milhões abstiveram-se, 2,4 milhões ficaram em branco e 8,6 milhões anularam o voto. O argumento é estúpido sob qualquer ponto de vista, pois o slogan “ele não!” não é previsto no ordenamento constitucional de nossa democracia. O voto no Brasil nunca é negativo, mas sempre afirmativo.


No entanto, no momento em que não está com algum dos filhos, principalmente o zero dois, Carlos, o presidente constitucional e legítimo do Brasil precisa refletir um pouco sobre os números do primeiro parágrafo deste texto para adicionar a seu estilo de governar um mínimo de lógica aristotélica. Ninguém aqui quer tirar o mérito do triunfo de um candidato que desafiou todos os lugares-comuns de qualquer pleito eleitoral para qualquer cargo. Afinal, ele não participou de nenhum debate nos veículos de comunicação de massa, gastou uma quantia ínfima, se comparada com as fortunas dilapidadas pelos disputantes, e ainda foi esfaqueado brutal e covardemente num evento público, o que praticamente o impediu de fazer campanha. Todos os méritos ao vencedor!



Mas isso não o torna monarca absoluto para exercer o poder sob a mira da família onipresente e de militantes que se sentem seus donos. Os votos deles foram essenciais, mas não os únicos. Para sê-lo, a vitória teria ocorrido no primeiro turno. Já então tivera apoio de antipetistas inconformados com a eventual permanência da rapina da esquerda nas gestões anteriores, confirmando essa decisão na rodada final.

Ao dar ao economista Paulo Guedes, na Fazenda, e ao ex-juiz Sergio Moro, na Justiça, “carta branca” – que depois rasgaria ao interferir na negociação da reforma da Previdência e ao “desconvidar” Ilona Szabó da suplência de uma comissão sem poder –, o candidato tornou-se o ai-jesus do chamado “mercado” e de quem temia o desmanche do combate à corrupção. A trajetória do ex-parlamentar revela a guinada nas convicções do antigo crítico da necessidade de equilibrar as contas públicas reduzindo o rombo das despesas com inativos ao adotar o ideário liberal do auxiliar que chamou de “posto Ipiranga”. A desautorização do “indemissível” foi um ritornello a esse passado de fundamentalista devoto.

O presidente ainda tem três anos e dez meses para confirmar sua fidelidade aos acenos que fez ao liberalismo econômico e ao combate ao crime dentro das normas legais vigentes. Só que para tanto deveria cumprir sem tergiversar a promessa que fez no discurso de posse, e repetiu outras vezes, de seguir princípios fundamentais do Estado de Direito, que chefia: o de governar para todos, pois todos são iguais perante a lei – quem votou nele e quem não o escolheu na urna.

Há exemplos históricos de quem seguiu esses conceitos. Seu colega de armas Eurico Gaspar Dutra, ex-chefe militar na ditadura do Estado Novo, orgulhava-se de ter às mãos o “livrinho”, ao qual era tão leal quanto o era aos princípios de sua esposa, dona Santinha. Afinal, ele não interferiu no pacto do PSD, que o elegeu, com a UDN, que ele derrotou na eleição, na votação da Constituição mais liberal da História.

No governo seguinte, Getúlio Vargas, cuja ditadura do Estado Novo ruiu após entrevista do udenista José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, do Correio da Manhã, nomeou o paraibano seu ministro de Viações e Obras Públicas, refazendo a aliança antiga de 20 anos na Revolução de 1930.

A “resistência” da esquerda, sob a égide do PT, não tem postura comparável à da UDN de 70 anos atrás e não se exige que o governo atual, escolhido sob a égide do abandono das práticas ilícitas da quadrilha que esvaziou os cofres da República e levou o País à maior crise econômica, política e moral da História, reedite a velha prática.

Mas partir do pressuposto de que as redes sociais devam governar para substituir o que seus usuários, muitos deles à sombra do anonimato e de avatares substituindo fotografias, chamam de mídia lixo com insultos impublicáveis, não encontra amparo na mesma Constituição que legitima o chefe da Nação. Lula, cercado de extremistas que, armados, foram derrotados na guerra suja contra o regime militar, tentou usar suas falanges para destruir os meios burgueses de comunicação e malogrou. Na Vila Euclides, no auge de seu poder sindical, fazia as massas de grevistas ecoarem “o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo”. Hoje, 39 anos depois, ele está preso por corrupção, os sindicatos perderam a força e a emissora, com todos os seus defeitos, ainda é líder de audiência.

Desde aqueles anos 80, os veículos de imprensa e difusão pelo rádio ou pela televisão perderam muito do poder que tinham no fim do século 20, mas há algo que não pode ser deixado de lado no meio dessa crise. Talvez o presidente, notório admirador da democracia americana, devesse atentar para a observação judiciosa do historiador Timothy Snyder, professor de uma das mais respeitáveis instituições da cultura do Tio Sam, a Universidade Yale, em entrevista a Daniel Haiddar, publicada no Estado do domingo 3 de março (pág. A8).

Disse o autor de Road to Unfreedom (A Caminho da Negação da Liberdade): “Qualquer oportunidade que tenhamos de reverter tendências, como desigualdade, corrupção ou aquecimento global, depende do trabalho de seres humanos reais para descobrir coisas e escrever sobre o que eles investigaram. Não há substituto para o jornalismo. A internet não substitui isso”. É isso mesmo.
José Nêumanne

Fingir que está tudo bem

fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido
com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro
do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir
que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde
os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas
não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão
desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós
olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver
sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de
medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto
dentro de mim: será que vou morrer? olhas-me e só tu sabes:
ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer:
amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga.

José Luís Peixoto

Um presidente sem decoro

Pode ter sido efeito da ressaca de um carnaval onde apanhou muito por toda parte e foi alvo de insultos de baixo calão.

Mas ninguém espera que um presidente aparentemente normal reaja como fez o capitão Bolsonaro em sua conta no Twitter.

Ele agrediu a lei, a moral, os bons costumes e até a sensibilidade dos seus próprios devotos ao compartilhar um vídeo pornográfico.

Sim, porque uma coisa é o erotismo, representação explícita da sexualidade. Outra muita diferente é a pornografia.

O vídeo mostrou um homem dançando sobre um ponto de táxi em São Paulo após introduzir um dos dedos no próprio ânus.

Em seguida, aparece outro que abre as calças e urina na cabeça do homem que dançava. Por que Bolsonaro compartilhou o vídeo?

Para “expor a verdade” à população, segundo ele. “É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro”, escreveu.

Havia um bloco perto da cena. Mas a cena nada tinha a ver com o enredo do bloco nem com o comportamento dos seus integrantes.

Bolsonaro pediu aos quase 3 milhões e meio de seguidores que tirassem suas próprias conclusões e que debatessem a respeito.

Recebeu como resposta mais de 24 mil comentários, a maioria criticando-o pelo que havia feito.

Em um deles, o jornalista Fabio Pannunzio, apresentador do jornal da Rede Bandeirantes de Televisão, escreveu:

“Bolsonaro, a minha neta de seis anos tomou conhecimento dessa cena no seu Twitter. Ela e outros milhões de crianças cujos pais o seguem. Quero ver como o presidente da República vai explicar o que elas viram. Você precisa de tratamento médico com urgência”.

“Proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” é crime, segundo a lei 1.079 da Constituição Federal.

Compartilhar vídeo pornográfico é ou não incompatível “com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” de presidente da República?

Compartilhar vídeo pornográfico para em seguida deplorar seu conteúdo torna o vídeo menos pornográfico?

Presidente da República é o servidor número 1 do país. Todos os olhos se voltam para ele, para o que faz ou deixa de fazer.

Todos os ouvidos estão atentos para escutar o que ele diz. O comportamento de um presidente é escrutinado a cada momento.

Tudo bem que Bolsonaro não contasse com sua eleição até levar a facada em Juiz de Fora que quase lhe custou a vida. Mas, e daí?

Daí que parece nada ter aprendido desde que se elegeu presidente, nem mesmo a proceder com a honra que o cargo exige.

O país que deu a Bolsonaro 58 milhões de votos em outubro último está sendo apresentado aos poucos ao presidente que elegeu.

Não importa se está gostando ou não do que vê. Terá que conviver com ele pelos próximos 4 anos. Ou exatos 3 anos, 9 meses e 25 dias.

Ricardo Noblat:

Imagem do Dia


A volta da rotina

Todos voltamos à dura realidade da vida e esta quarta-feira, que há décadas, inexoravelmente, pauta minha crônica, é de cinzas. A partir de hoje, entramos, pelo calendário litúrgico católico romano, nos 40 dias de regeneração e exame de consciência afins à disciplina do corpo e da carne, essa quarentena que precede a Paixão de Cristo, aval da nova aliança de Deus Pai com a nossa pobre e carnavalesca humanidade. Hoje abrimos a esquecida Quaresma das penitências e arrependimentos reveladores de quanto o tal “Brasil laico” como estado nacional é, como sociedade, estruturado pelo Natal, pela Semana Santa e pelo Sábado de Aleluia, quando todos carnavalescamente – e à brasileira – ressuscitavam com Cristo Nosso Senhor.

Parece piedoso demais para o seu gosto moderno e também para o meu, mas esse é um lado esquecido do significado do carnaval que faz demandas financeiras absurdas quando lidas pelo código burguês do equilíbrio fiscal, mas que são parte de uma cosmologia formada pelo catolicismo ibérico que permeia o nosso perfil espiritual e transborda inclusive nos nossos impulsos ideológicos político-revolucionários.


Somos marxistas, mas não somos materialistas. Marx e Engels arregalariam os olhos com essa combinação que, na Europa, trouxe à história humana um progresso material extraordinário e uma visão de mundo que dispensava a transcendência religiosa do (e no) outro mundo.

Mas eis que todo ano celebramos o carnaval no qual todos viram foliões (malucos proto-transgressores) e usam fantasias, abandonando seus uniformes rotineiros. Eu uma vez escrevi sobre desfiles, paradas militares e procissões como três modos de revelação ou leitura esteticamente enquadradas do Brasil por si mesmo.

Nos desfiles, você provavelmente tomou parte fantasiado disso ou daquilo – certamente investindo de uma mensagem contra as classificações rotineiras, preconceituosas e em geral dicotômicas (homem ou mulher, rico ou pobre, sério ou galhofeiro) –, mas inconsciente de seu próprio lado, o qual necessariamente exclui um outro, pois não se pode ser nem a favor nem contra tudo todo o tempo. E pode agora refletir sobre o significado profundo das cinzas.

Sim, porque o seu desfile carnavalesco, misto de irreverência e manifestação, foi apenas um lado da nossa “democracia convulsiva”, como diz Anibal Machado numa brilhante análise do nosso carnaval no seu pouco lido João Ternura. Um livro que tanto me deu certeza de que o carnaval é a celebrização de nossa permanente e latente malandragem – uma ambiguidade ou indecisão histórica de raiz que nos impede de fechar e abrir novas etapas porque tudo se carnavaliza e mistura e, no moinho satânico da política, dos privilégios, dos direitos, das cláusulas pétreas, tudo muda para voltar ao que era antes.

***
Creio que Freud explicaria por que o ex-governador e hoje penitenciário Sergio Cabral resolveu carnavalizar-se, tachando sua triste nudez moral e sua patológica ambição no uso do político como um instrumento de enriquecimento pessoal e familístico, de vício. Só num país do carnaval, rótulo, aliás, significativo do primeiro livro de um Jorge Amado igualmente olvidado, um condenado por corrupção é um personagem que trocou o uniforme de governador (e de “caxias” – de zelador e seguidor das leis e da moralidade) pela fantasia de um malandro radical.

Aquele que sai do fio da navalha, entre a lei e o crime, e abraça a corrupção. Um malandro que, como ele próprio confessa, hoje se sente aliviado de ter reavaliado essa transmutação cinzenta de crime em vício. Hoje, nessas minhas cinzas de assistir ao Brasil canibalizar-se a si mesmo por meio de todo tipo de má-fé e procrastinação, só posso ousar sugerir a criação, entre nós, com ajuda da grande mídia, dos Ladrões Anônimos.

Nele, na roda dramática de pessoas que perderam o controle sobre suas vidas devido ao abuso de alguma droga que passou a controlá-las, ele poderia começar assim: “Meu nome é Serginho e eu sou um ladrão do erário!”.

Bolsonaro (des)governa o Brasil pelo Twitter

Em apenas dois meses de Governo, o Brasil se tornou o laboratório do novo autoritarismo. Jair Bolsonaro mostrou que pretende governar não por planejamento nem por projetos, não por estudos e cálculos bem fundamentados nem por amplos debates com a sociedade, mas sim pelos urros de quem pode urrar nas redes sociais. O presidente já fritou pelo menos um ministro e tomou decisões a partir da reação de seus seguidores. Se Donald Trump inaugurou a comunicação direta com os eleitores pela internet, na tentativa de eliminar a mediação feita por uma imprensa que faz perguntas incômodas, seu autodeclarado fã brasileiro deu um passo além. Vende como democracia o que é corrupção da democracia. Governa não para todos, mas apenas para a sua turma.


Os três filhos, também políticos profissionais, que ele chama de 01, 02 e 03, fazem o serviço de expressar a vontade do “Pai”, que eles tratam assim, com letra maiúscula. Se no Governo oficial há um ministério oficial, no cotidiano informal da internet o Governo é familiar. A bolsomonarquia digital se mostra seguidamente mais real – e também mais efetiva.

O presidente confirma e legitima o anúncio de seus “garotos”, como ele chama sua prole masculina, com um retuíte. Especialmente os de 02, Carlos Bolsonaro, vereador do Rio, também conhecido como o “pitbull” do pai. A prole feminina, como Bolsonaro já nos informou, com a elegância habitual, é resultado de uma “fraquejada”.

Foi assim quando Gustavo Bebianno, então ministro da Secretaria Geral da Presidência e parceiro de primeira hora da candidatura de Bolsonaro, estava enroscado com o laranjal do PSL. Bebianno deu uma entrevista ao jornal O Globoafirmando que não havia “crise nenhuma” no Governo por conta das denúncias envolvendo o partido que presidiu interinamente durante a campanha eleitoral. Para provar, afirmava que havia falado com Bolsonaro três vezes naquele dia.

O filho 02 tuitou que era “mentira absoluta” do então ministro. O pai do garoto, que por coincidência é presidente da República, retuitou. Bebianno vazou os áudios das conversas, desmentindo Bolsonaro. Ele de fato tinha falado com o presidente três vezes naquele dia. Quem mentia era Bolsonaro. Mesmo contra a vontade da ala militar do ministério, cada vez mais numerosa, Bolsonaro atendeu ao clamor e demitiu Bebianno oficialmente, depois de tê-lo fritado no Twitter. Esta é a seriedade com que a bolsomonarquia trata a administração pública.

O “superministro” Sergio Moro descobriu-se menos super na semana passada. Tratado como herói por sua atuação na Operação Lava Jato, Moro foi pressionado pelo presidente a “desconvidar” Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, como suplente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Szabó é uma reconhecida especialista na área da segurança, mas os seguidores de Bolsonaro a consideram “esquerdista”. Aparentemente, eles entendem que um conselho deve ter pessoas que pensam igual, porque daí não é preciso se dar ao trabalho de debater e apresentar dados consistentes para fundamentar as escolhas. Os conselheiros apenas confraternizam, dividem um pão com leite condensado, tomam um café no copinho plástico ecológico.

A capacidade cognitiva dos seguidores de Bolsonaro, porém, o país e o mundo já conhecem. O impressionante foi Moro ter cedido. E mostrado à população que não tem nem mesmo o mini poder de nomear uma suplente sem ter a aprovação da prole de Bolsonaro e sua turma. Assim que o ministro da Justiça anunciou o vexatório recuo, o 03 tuitou: “Grande dia”. Aparentemente, os garotos adoram a hashtag #GrandeDia”.

Bolsonaro sabe que não é inteligente nem preparado, sabe que sua relação com o Congresso é precária e sabe também que uma parcela de seus ministros e das forças de direita que o apoiaram já está horrorizada com a vulgaridade de sua família no poder. Não significa que estes apoiadores desaprovem a violência. Apenas que prezam as boas aparências. É a estética da bolsomonarquia que os horroriza. E não a ética.

Como quando o presidente diz ao ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que está preocupado em ter que pagar os honorários do ex-amigo Bebianno, que era seu advogado em ações na Justiça. “Se ele me cobrar individualmente o mínimo, eu to f… Tem que vender uma casa minha no Rio para pagar”. O republicano diálogo do presidente da República com o ministro-chefe da Casa Civil sobre o recém demitido ministro da Secretaria Geral da República foi vazado numa “ligação acidental” de Onyx a um jornalista de O Globo.

Bolsonaro sabe também que está no meio de diferentes forças que o apoiaram para botar seus projetos de poder no topo da lista de prioridades. E sabe que nem sempre os interesses coincidem, como no caso da transferência da capital de Israel para Jerusalém, que agradaria aos evangélicos, mas desagradaria ao agronegócio. Essas forças precisavam dele para chegar ao poder central —ou para se manter no poder com ainda mais poder do que no passado. Mas não têm apreço pela sua presença no Planalto se sua figura trapalhona e truculenta, com suas crias barulhentas e mal-educadas, começarem a prejudicar os negócios.

Bolsonaro também já sentiu o bafo na nuca do vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão. Todo o capital que dispõe para se manter ativo no jogo, e não apenas uma marionete, é a popularidade nas redes sociais, as mesmas que garantiram a sua eleição. Bolsonaro já mostrou que fará tudo, inclusive ampliar a crise do país, se necessário, para manter esse capital ativo —o que significa manter seus seguidores sentindo-se “representados”.

Poderia ser uma contradição. Afinal, se a situação do Brasil não melhorar, não há popularidade que se mantenha. É preciso perceber, porém, que Bolsonaro faz parte de um fenômeno contemporâneo: as escolhas são determinadas pela fé, não pela razão. É o mesmo mecanismo que faz com que, em 2019, as pessoas decidam acreditar que a Terra é plana ou que achem sentido em afirmar que o Brasil e o mundo estão ameaçados pelo “comunismo” ou que faz o bolsochanceler, Ernesto Araújo, garantir que o aquecimento global é um complô de esquerda.

As eleições e o cotidiano têm sido determinados por uma interpretação religiosa da realidade. A adesão pela fé é um fenômeno mais amplo e não necessariamente ligado a um credo, já que há muitos ateus que se comportam como crentes. E não só na política, mas em todas as áreas da vida. Esta é a marca deste momento histórico.

É o que também explica que, mesmo com dois meses de um Governo em que Bolsonaro disse e desdisse o que disse, seu filho 02 chamou um ministro de mentiroso e a divulgação dos áudios mostrou que quem mentia era o presidente, mesmo com investigações que apontam envolvimento do filho 01 com a corrupção e com a milícia suspeita de ter assassinado Marielle Franco, que mesmo com as denúncias do laranjal do PSL, que mesmo com ministros enrolados com malfeitos, que mesmo com os 24.000 reais de Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, sua popularidade pessoal ainda é alta. Quase 58% acreditam que Bolsonaro mudará a vida dos brasileiros para melhor, segundo a mais recente pesquisa da Confederação Nacional do Transporte. É comprovadamente o mais desastroso início de Governo das últimas décadas, mas ainda assim Bolsonaro segue popular.

Bolsonaro tenta convencer que se mover pelos gritos dos bolsocrentes nas redes sociais é democracia. Não é. O que Bolsonaro faz prescinde de qualquer instrumento que garanta a vontade da maioria dos brasileiros a partir de processos previstos em lei, com acesso assegurado e aferição confiável. O que Bolsonaro garante é apenas o desejo de um grupo capaz de fazer seus gritos ecoarem na internet, muitas vezes pelo uso de robôs. É justamente o voto que tem sido desrespeitado dia após dia no Brasil de Bolsonaro. Mas, na época em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, como respeitar os fatos? Quando a verdade é autoverdade, como fazer a democracia valer?

Se Bolsonaro seguir nesse rumo, e tudo indica que seguirá, o destino da maior economia da América Latina será decidido pela quantidade e volume dos urros dos bolsocrentes nas redes sociais. Nos próximos meses, a experiência brasileira mostrará como o novo autoritarismo vai evoluir no confronto com a realidade. É improvável que os diferentes grupos no poder, com ênfase na turma da farda, vão seguir o caminho vexatório de Sergio Moro.

Mourão, o vice calculadamente aparecido, segue se manifestando sobre tudo para pontuar que existe plano B – ou F de farda. Como ao declarar, sobre o desconvite de Ilona Szabó: “Eu acho que perde o Brasil. Perde o Brasil todas as vezes que você não pode sentar numa mesa com gente que diverge de você. O Brasil perde. Não é a figura A, B ou C. Perde o conjunto do nosso país e nós temos que mudar isso aí". É desconcertante quando o maior democrata do Governo é um general que já mencionou a possibilidade de “autogolpe”.

Estimulado pelo garoto 02, o pai presidente segue firme no seu desgoverno tuiteiro. Na terça-feira de Carnaval, sentiu-se poderoso o suficiente para abrir fogo no Twitter contra a maior festa popular do Brasil, a mesma que enche o país de turistas. Tentou deletar de um Brasil partido em vários pedaços o que ainda resta de uma identidade comum, esta que mostrou mais uma vez neste Carnaval o quanto pode ser transgressora, contraditória e insurreta. E fazer disso uma potência criadora e uma afirmação da vida, mesmo em meio às ruínas de um país.

O presidente, claro, não gostou do Carnaval mais insurgente dos últimos anos, na qual ele e sua turma viraram sátiras nas ruas. Não há maior potência do que rir do opressor. Com a desonestidade habitual, Bolsonaro escolheu uma cena isolada de um bloco isolado, na qual um homem toca seu ânus e outro urina na sua cabeça. Com a irresponsabilidade habitual, tascou o vídeo no Twitter: “Não me sinto confortável em mostrar, mas temos que expor a verdade para a população ter conhecimento e sempre tomar suas prioridades. É isto que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conclusões”.

Como sabe que os bolsocrentes acreditam em qualquer coisa, Bolsonaro tentou convencer os brasileiros que o Carnaval inteiro é assim. Não é. Quem foi para as ruas sabe. Que o presidente do Brasil diga o que disse sobre a maior festa popular do país que foi eleito para governar é mais uma vergonha. Que poste o vídeo que postou no Twitter é mais uma violência entre as tantas praticadas pela bolsomonarquia e sua corte. Menos pela cena, mais pela manipulação de tentar afirmar que ela representa o Carnaval inteiro. Mentira.

O que Bolsonaro não gostou é que a obscenidade do seu Governo foi revelada nas ruas do Brasil. Então precisou encontrar uma outra para encobrir a sua.

Eliane Brum

Pornografia explícita

Presidência eleva em 16% gasto com cartão corporativo
Os gastos com cartões corporativos da Presidência da República nos dois primeiros meses do governo Jair Bolsonaro aumentaram 16% em relação à média dos últimos quatro anos, já considerada a inflação no período. Apesar de ter seu fim defendido durante a transição, a nova gestão não só manteve o uso dos cartões como foi responsável por uma fatura de R$ 1,1 milhão.

Cumpro o doloroso dever de informar que o Brasil é inviável e não tem mais jeito

Já dissemos aqui na “Tribuna da Internet” que um dos maiores problemas do Brasil foi a perda da simplicidade. Em algum ponto fora da curva nós saímos do caminho correto e mergulhamos num vale de ilusões, em que as pessoas bem sucedidas se internacionalizaram, é preciso viajar sempre para o exterior, ter casa em Miami, Nova York, Londres ou Paris, abrir conta na Suíça ou em paraíso fiscal. Nesse delírio tropicalista, as elites brasileiras passaram a viver num mundo do faz-de-conta ou na terra do nunca-jamais, imitando o genial personagem Peter Pan.

Mas a vida real é muito diferente, não se pode viver como Alice no País das Maravilhas, nem adianta morar num bairro sofisticado como Ipanema, se as balas perdidas já se instalaram lá, junto com moradores de rua e crianças abandonadas.


O fato concreto é que não pode haver convivência pacífica entre a miséria absoluta e a riqueza total, são situações que não devem se misturar, mas o capitalismo à brasileira persiste nesse erro, que somente cabe ao governo resolver, porque o famoso mercado não se preocupa com esse tipo de problema, o importante é o lucro, não há tempo a perder com detalhes, a liberdade democrática só tem sido usada como argumento na hora de acumular dinheiro, sejamos francos.

Na verdade, o Brasil nem pode ser considerado um país capitalista ortodoxo, pois vivemos sob um sistema muito louco, no qual foi montada uma máquina estatal gigantesca e inútil, que explora a população e o empresariado, como se essa prática fosse viável e sustentável.

Brasília é o grande retrato da distorção nacional. Tornou-se uma espécie de versão moderna do Vale dos Reis, onde os faraós egípcios construíram as pirâmides. Tudo no planalto central é grandioso e inoperante. São prédios gigantescos e suntuosos, construídos com recursos públicos que não foram fruto de arrecadação tributária, mas oriundos do crescimento da dívida pública.

Há cerca de 15 anos eu frequentava muito o Tribunal Superior Eleitoral, fiz amigos entre seus auditores, acompanhava as prestações de contas dos partidos, escrevia reportagens sensacionais, acabei processado pelo Partido Verde por denunciar as falcatruas de sua direção, que ainda é a mesma, tanto tempo depois. Fui defendido pelo grande advogado paulista Luiz Nogueira, que venceu em todas as instâncias, mas o PV não aprendeu nem mudou nada.

O prédio do TSE era modesto, tinha poucos servidores. Hoje é um palácio imenso, com mais de mil funcionários efetivos muito bem remunerados que não têm o que fazer. O mesmo fenômeno expansionista ocorreu no Tribunal de Contas da União, no Superior Tribunal de Justiça, no Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria-Geral da República, no Superior Tribunal Militar, nos órgãos ligados a ministérios civis ou à própria Presidência, como a Advocacia-Geral da União, que funcionava no anexo do Planalto e ganhou um prédio enorme para chamar de seu.

Essa gastança desenfreada, que contaminou os três poderes, ocorreu nos governos do PSDB e do PT, que consumiram recursos oriundos da dívida pública para bancar esses delírios de grandeza e aumentar o número de funcionários, de cargos comissionados e de empregados terceirizados.

O Congresso Nacional é uma piada de mau gosto. Os gabinetes dos deputados são mínimos, apenas duas salinhas e um banheiro privativo, mas podem contratar 25 assessores. Os senadores têm mais conforto, mas sem exagero. Então, por que cada senador passou a ter direito de contratar 55 assessores? Não há explicação.

Como não é possível alojar essa tropa no gabinetes da Câmara, onde só cabem seis funcionários, no máximo, o Congresso então criou os escritórios externos, que cada parlamentar (deputado ou senador) tem direito de montar em seu Estado de origem, à custa do Tesouro Nacional, vejam que esculhambação.

O Brasil é pobre, até mesmo paupérrimo, mas nos Três Poderes a administração pública é rica e farta, seja federal, estadual ou municipal, porque todas elas – direta ou indiretamente – acabam sendo alimentadas pela crescente dívida pública, a fonte luminosa que abastece o desperdício e a corrupção.

A perda da simplicidade é uma deformação que ninguém discute, embora seja o maior problema nacional. Esse injustificável gigantismo é um buraco de sugar recursos públicos, porque os prédios imensos têm de ser ocupados e mantidos. E esse superdimensionamento se reproduziu nas sucursais do TCU (a subsede de Goiânia é suntuosa), do Banco Central (confiram as instalações de São Paulo) e foi seguido pelos governos estaduais e municipais no país inteiro.

Carnaval do Brasil


O projeto de Mefistófeles

De longe, o Brasil parece um paraíso ambiental. O país divulga suas praias, seu mar, o Pantanal cheio de biodiversidade e a Floresta Amazônica, aparentemente infinita. Mas, na verdade, o Brasil está caminhando para transformar seu meio ambiente num inferno. Um inferno de soja, pastos, eucalipto, cana-de-açúcar e lama da indústria de mineração.

A destruição do meio ambiente brasileiro parece ser um dos principais projetos do novo governo. Ele está numa missão mefistofélica: quer acabar com os bons costumes. Com os direitos humanos. Com a ciência. Com os projetos de emancipação. Com o próprio pensamento esclarecido.

São pessoas que agem e falam com arrogância e crueldade. São pessoas que riem quando morre uma criança de sete anos. Que comemoram quando a polícia comete massacres em favelas, quando morrem ambientalistas ou vereadoras negras. Pessoas que não conhecem a diferença entre flertar e assediar. Pessoas com relações com milícias. Pessoas que falam toda hora em Deus mas mentem, xingam e difamam. Pessoas que gritam "zero corrupção!", mas que são corruptas.

Em nenhum aspecto, a Agenda do Negativo fica mais clara do que na relação com o meio ambiente e a saúde dos brasileiros.

Em alemão, um provérbio diz que "o peixe começa a feder pela cabeça". Já se sabe o que o presidente pensa sobre proteção ambiental desde 2012. Bolsonaro foi multado pelo Ibama enquanto pescava ilegalmente numa reserva natural. Ele violou a lei e prometeu pagar a multa - mas até hoje não o fez.

Em outras palavras: o presidente bate na tecla do direito e da lei. Mas não quando se trata dele e do seu clã. Nesses casos, fica raivoso. Curiosamente, agora o seu governo trabalha para tirar o poder do Ibama e esvaziar a proteção ambiental.

O novo ministro do Meio Ambiente é Ricardo Salles. Ele poderia ter sido originado na obra 1984, de George Orwell, na qual o "Ministério da Paz" é responsável pela organização da guerra. Porque, no Brasil, o ministro não tem interesse em proteger o meio ambiente, e sim em explorá-lo. É interessante notar que ele também já foi condenado: por fraudar o processo do Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental da Várzea do Rio Tietê, quando foi secretário estadual de São Paulo.

Salles anunciou que vai fazer o Ibama entrar na linha. Ele escolheu um novo presidente do instituto. E, como que por milagre, o Ibama anulou a multa contra Jair Bolsonaro.

Salles demitiu 21 superintendentes do Ibama. A justificativa: "Precisam ter um alinhamento conosco. É um cargo de confiança." Isso é a língua da máfia. A tarefa do Ibama é proteger o meio ambiente dos brasileiros, mas não a obediência ao senhor Salles e seus interesses.


Como que por coincidência, entre os superintendentes exonerados do Ibama, também está Julio Cesar Dutra Grillo. Ele havia alertado para o rompimento da barragem em Brumadinho.

Consequentemente Salles também prometeu "analisar, mudar o valor ou anular" as multas para criminosos ambientais. Salles não é um ministro do Meio Ambiente, mas da Destruição Ambiental.

Da mesma forma, Tereza Cristina não parece ser a ministra da Agricultura, mas do Envenenamento dos Consumidores. Nos primeiros 50 dias do novo governo, 54 novos agrotóxicos foram aprovados. O Ministério da Agricultura deu sinal verde para que novos fabricantes possam comercializá-los, e que novas combinações químicas entre eles sejam permitidas.

Por causa de sua alta toxicidade, alguns desses produtos são proibidos no exterior. Mas isso parece ser secundário, desde que o agronegócio esteja bombando. Tem sentido, nessa lógica, que a Anvisa também deverá ser esvaziada quando se tratar de participar das reuniões de licenciamento de novos pesticidas.

Em outros países do mundo, procuram-se meios de plantar alimentos de forma mais saudável. Na Alemanha, até 2030, os orgânicos deverão ser plantados sobre 20% das terras agrícolas. Ao mesmo tempo, o mercado de alimentos orgânicos registra crescimento constante ano por ano – só em 2018, foram 5,5%.

Não é o caso do Brasil. A Fundação Oswaldo Cruz analisa 30 alimentos regularmente. Em algumas amostras, é possível encontrar até 15 agrotóxicos diferentes. E o que o legislador faz? Nada. No Congresso circula o chamado "pacote do veneno", que almeja a aprovação de mais agrotóxicos.

O relator é o deputado Luís Nishimori (PR). Ele tem duas empresas que vendiam agrotóxicos. Mas no Brasil de hoje isso não é uma razão para substituí-lo. Poderíamos chamar também de corrupção. Nada de novo em Brasília.

A catástrofe ambiental no Rio Grande do Sul passou quase despercebida pela opinião pública. A Associação dos Apicultores Gaúchos contabiliza a perda de 6 mil colmeias, inviabilizando a entrega de 150 toneladas de mel. Em 80% das análises das abelhas mortas, foi constatado algum tipo de agrotóxico presente. Nem a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e muito menos o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, se pronunciaram sobre o caso.

Com frequência, os inseticidas chamados de neonicotinoides são responsáveis pela morte das abelhas. Na Europa, os neonicotinoides são proibidos. No Brasil, não. A indústria agrícola é contra. Mais um produto licenciado recentemente é o Sulfoxaflor, igualmente conhecido por envenenar abelhas.

Não surpreende que a última campanha eleitoral de Tereza Cristina tenha sido financiada por 12 empresários ligados ao agronegócio. Entre eles está por exemplo o empresário rural Ismael Perina Júnior. Ele é membro do conselho consultivo da Coplana, que vende agrotóxicos no interior de São Paulo. Agro é tudo. Agro é pop. Agro é encher o bolso ao custo do meio ambiente e da saúde dos brasileiros.
Philipp Lichterbeck

Nós, jovens, não aceitaremos uma vida com medo e devastação

Nós, os jovens, estamos profundamente preocupados com o nosso futuro. A humanidade está, atualmente, causando a sexta extinção em massa de espécies e o sistema climático global está à beira de uma crise catastrófica. Seus impactos devastadores já são sentidos por milhões de pessoas em todo o mundo. No entanto, estamos longe de alcançar as metas do Acordo de Paris.

Nós, jovens, somos mais da metade da população global. Nossa geração cresceu com a crise climática e teremos que lidar com isso pelo resto de nossas vidas. Apesar disso, a maioria de nós não está incluída no processo decisório local e global. Nós somos o futuro sem voz da humanidade.


Nós não aceitaremos mais essa injustiça. Nós exigimos justiça climática! Exigimos justiça para todas as vítimas passadas, atuais e futuras da crise climática. Por isso estamos lutando! Milhares de jovens tomaram as ruas, nas últimas semanas, em todo o mundo. Agora vamos fazer nossas vozes serem ouvidas. No dia 15 de março, protestaremos em cada continente.

Temos que, finalmente, tratar a crise climática como uma crise. É a maior ameaça na história da humanidade e não aceitaremos a nossa extinção. Nós não aceitaremos uma vida com medo e devastação. Temos o direito de viver nossos sonhos e esperanças. As mudança climáticas já acontecem. Pessoas morreram, estão morrendo e vão morrer por causa disso, mas podemos e vamos parar com essa loucura.

Nós, os jovens, começamos a nos mobilizar. Nós vamos mudar o destino da humanidade, quer você goste ou não. Unidos vamos nos levantar no dia 15 de março e muitas vezes mais, até vermos a justiça climática. Exigimos que os tomadores de decisão do mundo assumam a responsabilidade e resolvam essa crise ou renunciem.

Vocês nos falharam no passado. Se vocês continuarem nos falhando no futuro, nós, os jovens, faremos a mudança acontecer por nós mesmos. A juventude desse mundo começou a se mobilizar e não vamos parar!
Carta aberta do grupo de coordenação global da Juventude pelo Clima