quarta-feira, 7 de agosto de 2024

É preciso mudar a política. Mas como?

Se um orador em qualquer auditório perguntar à plateia se acha necessário mudar a política, quase todos os braços se levantarão. De esquerda, centro e direita. Os dois ou três reticentes serão certamente de cientistas políticos “nefelibatas”, como diria Fernando Henrique Cardoso, que, de pronto, arguirão o óbvio — essa insatisfação é generalizada no mundo. O que não deveria, contudo, fazê-los desconhecer o diferencial de intensidade dos problemas daqui e ignorar os sinais do abismo à frente.

As disfunções do nosso sistema político são variadas. Por ora, foquemos de um lado no “presidencialismo esgotado”; de outro, na “representação sem fidúcia”, para os quais há diversos indicadores, mas por economia de espaço abordo apenas dois.


Abstraindo-se qualquer etiologia, examinemos o que denomino “taxa de sinistralidade” dos presidentes eleitos na 4ª e na 6ª Repúblicas — a do Pós-Guerra e a atual —, deixando-se de lado as demais por terem escassa ou nenhuma conformação democrática. E apenas dos titulares, valendo para a análise o período dos mandatos e eventuais ocorrências dele derivadas. Na primeira fase, dos quatro presidentes, dois exercícios foram encerrados dramaticamente: Getúlio Vargas (1954) suicidou-se, e Jânio Quadros (1961) renunciou. Cinquenta por cento de sinistralidade. Na Nova República, independentemente das reeleições, foram até agora cinco personagens, dos quais quatro amargaram problemas graves. Fernando Collor sofreu impeachment (1992); Dilma Rousseff também (2016); Lula foi preso (2018) e declarado inelegível (o que seria depois revertido); e Jair Bolsonaro foi tornado inelegível (2023) sem ainda ter sido preso. Quatro em cinco. A taxa sobe para 80%. A que montante queremos chegar?

Quanto à representação sem fidúcia, para prová-la basta um número. Axiomaticamente, confiança supõe conhecimento, mínimo que seja. Inexiste, se eu não me lembro sequer do representante que escolhi. Em setembro de 2023, menos de um ano depois da eleição dos atuais deputados federais, questionados pelo Ipec se lembravam o nome daquele/a em quem haviam votado, apenas 29% disseram que sim. E é legítimo supor que esse baixíssimo registro ainda diminuiria caso fosse indagado e conferido o candidato sufragam

Sendo inequívoco o impacto da governança que um sistema político propicia sobre a performance da sociedade, os dados que O GLOBO trouxe em editorial de 23/6/2024 são um veredito condenatório. Calculou quanto cresceu ao ano a renda per capita entre 2010 e 2023 — período interessante porque por ele passaram governos de todo o espectro ideológico —, chegando à cifra de 0,2%. E projetou o momento em que dobraríamos o padrão de vida, imprescindível para arrancar o país da pobreza que aflige grande parte da população. A conclusão, estarrecedora, é que isso se daria no distante ano de 2368.

Alguém lembrará que até aqui o Judiciário não foi citado. É verdade e é deliberado, independentemente da obviedade de que esse Poder também precisa mudar. Presidentes escolhem os juízes da Suprema Corte, que são confirmados ou não pelo Senado. Não é mudando o Judiciário que se muda o padrão de governação e de representação. O roteiro é o inverso.

E quais as mudanças possíveis? Quanto ao regime, um sem-número de vozes já diagnosticou a inevitabilidade de avançarmos na direção de um sistema misto. Mais francês ou mais português, o que seja. Entre nós, na ausência de um monarca, é enraizada a ideia da legitimação do poder pela escolha direta. Lá atrás, isso justificou as duas primeiras eleições nacionais — para a Regência Una (1835 e 1838). No século passado, essa preferência seria confirmada nos plebiscitos de 1963 e 1993. Não retrocedendo à captura do Orçamento pelo Parlamento, caberá adotar a convivência entre um presidente chefe de Estado e um chefe de governo escolhido pelo Congresso. Se é expressivo o agregado de líderes políticos e de intelectuais que apostam nisso, diminui bastante o daqueles que se ocupam do esforço de superação da representação sem fidúcia, que exige mudança no sistema eleitoral. Mas não será possível termos o primeiro-ministro e o gabinete parlamentar toleráveis aos olhos da sociedade com os partidos “hidropônicos” que temos hoje.

Não é bonito alguém na universidade ter medo de ler

"Transforma em um tuite ou não irei responder”

Foi isso que ouvi do presidente de uma organização da qual participei enquanto embaixador há alguns anos. Na época, precisei falar com ele sobre uma demanda séria e que simplesmente não poderia ser transformada em um texto com até 280 caracteres. Esta coluna mesmo, neste trecho, já possui mais caracteres.

Atualmente lidero o maior programa social de educação do Brasil. Tenho contato direto com milhares de jovens da rede pública de mais de 1.557 cidades do país e com estudantes e graduados de todas as universidades públicas do país.

Minha maior dor no trabalho hoje em dia é o fato de que, salvo exceções, as pessoas não estão lendo mais. Não me refiro a ler Machado de Assis ou obras literárias, mas sim a recados e instruções simples e diretas.

Anos atrás, isso era muito comum entre os jovens secundaristas com quem tenho contato. Eu entendia todo o contexto e a questão da idade, mas no pós-pandemia, houve um crescimento assustadoramente notável. E isso se tornou comum também entre nosso time voluntário e com membros das melhores instituições de ensino superior do país.

Já havia escrito uma coluna sobre este tema, já citei a problemática em outras oportunidades e agora estou aqui novamente, pois nada muda minha ideia de que o problema é grave.


Sei que hoje em dia as pessoas precisam lidar com inúmeras demandas diárias. Sei que muitas pessoas não têm quase nenhum tempo livre, para além do dedicado às obrigações básicas. Sei que o mundo é muito mais dinâmico e rápido. Sei que estamos nos acostumando com outros formatos de comunicação, com a predominância de vídeos curtos.

Sei de tudo isso, mas sejamos honestos: não é bonito alguém que está na universidade ou que se graduou em uma ter medo ou preguiça de ler instruções ou comunicados básicos.

Recortei o público entre os estudantes universitários e graduados por uma razão. Sou natural de um bairro da periferia e o primeiro da família que entrou na universidade. Minhas irmãs não tiveram o mesmo privilégio e nem meus pais. Minha mãe, vira e mexe, compartilha uma fake news acerca da morte de algum famoso nas redes sociais e há alguns dias atrás caiu em um golpe. Tudo isso por pura falta de atenção.

O ponto é que entendo que ela é de outra época e que não teve os mesmos privilégios que eu. Não só ela, mas milhões de outros brasileiros. Alguns textos e linguagens, sobretudo as mais formais, são de fato muito difíceis para que eles interpretem.

Agora, para uma pessoa privilegiada o bastante para estar no ensino superior ou ter concluído a graduação, sobretudo em universidade pública, é um grande problema ter medo de ler, ter preguiça e não dispor da atenção necessária para interpretar um comunicado.

Precisamos parar de romantizar, de banalizar ou de maquiar a problemática com argumentos pautados na correria dos dias de hoje.

Há alguns dias um amigo me contou uma história. Ele tem uma amiga médica que admitiu não saber fazer regra de três. Antes que alguém questione a relevância dessa informação, eu digo: ela é pediatra. É extremamente relevante que ela domine essa técnica para conseguir calcular as dosagens dos remédios. Segundo meu amigo, a médica se confortava com o fato de que havia uma tabela e que isso, inclusive, a desestimulou a tentar aprender. E, se um dia a tabela não estiver à mão, como ela vai se virar? Preocupante.

Há alguns dias, assisti a uma palestra online de 2018 do professor Miguel Nicolelis. um médico e cientista brasileiro de reconhecimento internacional e que atualmente integra o time de docentes da universidade de Duke, em Durham, nos EUA.

"Porque o cérebro é o camaleão que ele é, a nossa imersão no mundo digital, e a recompensa que isso traz, porque o cérebro está sempre calculando uma relação de custo benefício. Na verdade, estamos moldando nosso cérebro e muito provavelmente aparando os processos analógicos dele, para que ele se aproxime de uma máquina biológica digital, ou seja, a nossa imersão contínua em lógica digital está induzindo o cérebro a achar que esse é o caminho que deve ser seguido para receber as recompensas da vida cotidiana de todos nós”

Ele continua: "O efeito da hiperconectividade digital foi produzir milhões de tribos, ou seja: nós regredimos para os comportamentos sociais da origem da nossa espécie, mas todos os comportamentos sociais como empatia, interatividade, vocabulário parecem estar sendo contraídos. A dicotomia é muito interessante e o que vemos hoje em dia é que porque o cérebro é tão plástico e porque a função de recompensa mudou drasticamente. A sua transformação em um zumbi digital biológico é quase que uma necessidade de sobrevivência, mas estamos esquecendo que isso está afetando o cérebro e pode estar afetando de uma forma que não queremos”

Quando ingressamos em uma nova instituição, é comum nos sentirmos perdidos e nos depararmos com um cenário repleto de informações que demandam leitura. Isso é natural e faz parte da vida real e adulta. O que fazer nesses casos? Não ler? Desistir? Fazer um monte de perguntas aleatórias? Não é muito mais maduro e eficiente ler as informações com calma, quantas vezes for necessário, e depois tirar as dúvidas?

Sinto que estamos diante de um grande problema, mas a sociedade não apenas não está dando a devida importância, como também está banalizando e romantizando o tamanho do problema. Espero não ser tarde demais para que algo seja feito.