segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Pensamento do Dia

 


Tributário dos vivos e dos mortos

Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas. E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida — corpo e alma — integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência. Sonho ser acessível e desejável para todos uma vida simples e natural, de corpo e de espírito. Recuso-me a crer na liberdade e neste conceito filosófico. Eu não sou livre, e sim às vezes constrangido por pressões estranhas a mim, outras vezes por convicções íntimas. Ainda jovem, fiquei impressionado pela máxima de Schopenhauer: “O homem pode, é certo, fazer o que quer, mas não pode querer o que quer”; e hoje, diante do espetáculo aterrador das injustiças humanas, esta moral me tranquiliza e me educa. Aprendo a tolerar aquilo que me faz sofrer. Suporto então melhor meu sentimento de responsabilidade. Ele já não me esmaga e deixo de me levar, a mim ou aos outros, a sério demais. Vejo então o mundo com bom humor. Não posso me preocupar com o sentido ou a finalidade de minha existência, nem da dos outros, porque, do ponto de vista estritamente objetivo, é absurdo. E no entanto, como homem, alguns ideais dirigem minhas ações e orientam meus juízos. Porque jamais considerei o prazer e a felicidade como um fim em si e deixo este tipo de satisfação aos indivíduos reduzidos a instintos de grupo. Em compensação, foram ideais que suscitaram meus esforços e me permitiram viver. Chamam-se o bem, a beleza, a verdade. Se não me identifico com outras sensibilidades semelhantes à minha e se não me obstino incansavelmente em perseguir este ideal eternamente inacessível na arte e na ciência, a vida perde todo o sentido para mim. Ora, a humanidade se apaixona por finalidades irrisórias que têm por nome a riqueza, a glória, o luxo. Desde moço já as desprezava. Tenho forte amor pela justiça, pelo compromisso social. Mas com muita dificuldade me integro com os homens e em suas comunidades. Não lhes sinto a falta porque sou profundamente um solitário. Sinto-me realmente ligado ao Estado, à pátria, a meus amigos, a minha família no sentido completo do termo. Mas meu coração experimenta, diante desses laços, curioso sentimento de estranheza, de afastamento e a idade vem acentuando ainda mais essa distância. Conheço com lucidez e sem prevenção as fronteiras da comunicação e da harmonia entre mim e os outros homens. Com isso perdi algo da ingenuidade ou da inocência, mas ganhei minha independência. Já não mais firmo uma opinião, um hábito ou um julgamento sobre outra pessoa. Testei o homem. É inconsistente.

A virtude republicana corresponde a meu ideal político. Cada vida encarna a dignidade da pessoa humana, e nenhum destino poderá justificar uma exaltação qualquer de quem quer que seja. Ora, o acaso brinca comigo. Porque os homens me testemunham uma incrível e excessiva admiração e veneração. Não quero e não mereço nada. Imagino qual seja a causa profunda, mas quimérica, de seu sentimento. Querem compreender as poucas ideias que descobri. Mas a elas consagrei minha vida, uma vida inteira de esforço ininterrupto. Fazer, criar, inventar exigem uma unidade de concepção, de direção e de responsabilidade. Reconheço esta evidência. Os cidadãos executantes, porém, não deverão nunca ser obrigados e poderão escolher sempre seu chefe.


Ora, bem depressa e inexoravelmente, um sistema autocrático de domínio se instala e o ideal republicano degenera. A violência fascina os seres moralmente mais fracos. Um tirano vence por seu gênio, mas seu sucessor será sempre um rematado canalha. Por esta razão, luto sem tréguas e apaixonadamente contra os sistemas dessa natureza, contra a Itália fascista de hoje e contra a Rússia soviética de hoje. A atual democracia na Europa naufraga e culpamos por esse naufrágio o desaparecimento da ideologia republicana. Aí vejo duas causas terrivelmente graves. Os chefes de governo não encarnam a estabilidade e o modo da votação se revela impessoal. Ora, creio que os Estados Unidos da América encontraram a solução desse problema. Escolhem um presidente responsável eleito por quatro anos. Governa efetivamente e afirma de verdade seu compromisso. Em compensação, o sistema político europeu se preocupa mais com o cidadão, com o enfermo e o indigente. Nos mecanismos universais, o mecanismo Estado não se impõe como o mais indispensável. Mas é a pessoa humana, livre, criadora e sensível que modela o belo e exalta o sublime, ao passo que as massas continuam arrastadas por uma dança infernal de imbecilidade e de embrutecimento.

A pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem... Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz. Deveríamos fazer desaparecer o mais depressa possível este câncer da civilização. Detesto com todas as forças o heroísmo obrigatório, a violência gratuita e o nacionalismo débil. A guerra é a coisa mais desprezível que existe. Preferiria deixar-me assassinar a participar desta ignomínia. No entanto, creio profundamente na humanidade. Sei que este câncer de há muito deveria ter sido extirpado. Mas o bom senso dos homens é sistematicamente corrompido. E os culpados são: escola, imprensa, mundo dos negócios, mundo político. O mistério da vida me causa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação ou não pode mais experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram. Aureolada de temor, é a realidade secreta do mistério que constitui também a religião. Homens reconhecem então algo de impenetrável a suas inteligências, conhecem porém as manifestações desta ordem suprema e da Beleza inalterável. Homens se confessam limitados e seu espírito não pode apreender esta perfeição. E este conhecimento e esta confissão tomam o nome de religião. Deste modo, mas somente deste modo, soa profundamente religioso, bem como esses homens. Não posso imaginar um Deus a recompensar e a castigar o objeto de sua criação. Não posso fazer ideia de um ser que sobreviva à morte do corpo. Se semelhantes ideias germinam em um espírito, para mim é ele um fraco, medroso e estupidamente egoísta. Não me canso de contemplar o mistério da eternidade da vida. Tenho uma intuição da extraordinária construção do ser. Mesmo que o esforço para compreendê-lo fique sempre desproporcionado, vejo a Razão se manifestar na vida.
Albert Einstein, "Como vejo o mundo"

Últmo refúgio


O patriotismo é o último refúgio do patife
Samuel Johnson

O golpismo resiste

Muitos brasileiros, sobretudo os de classe média, têm mentalidade golpista. Basta dar uma olhada na nossa História para constatar isso. Depois da nova república os militares e oligarcas em geral passaram a ter a preferência da população. Diga-se população com uma boa parcela de generosidade. Os pobres, negros, mulheres e marginalizados da época não tinham voz, eram subpopulação. Os brancos, héteros, ricos e masculinos decidiam os destinos da nação e quando decidiam fazer uma pequena guerra ou revolta colocavam os jovens e negros à frente das tropas para que morressem defendendo seus princípios, ou seja, os das oligarquias.

Trocavam de governo como quem troca de cueca e quando vemos os filmes hoje, excelentes por sinal, sobre aqueles anos, a Revolução Paulista, a Revolução de 30 (sim, eram chamadas de revolução) constatamos isso. Cadê o povo? As revoltas populares quando aconteciam eram massacradas pelos exércitos dos brancos e maltratadas pelos livros de História.


Com o passar dos tempos isso foi mudando. Homens e mulheres puderam votar. O povo começou a aparecer até que em 1964, com a revolta dos marinheiros e a possibilidade de reformas agrárias no campo fizeram com que se estabelecesse no Brasil uma ditadura que não disfarçava mais os interesses a defender. Antes disso, outras tentativas de golpes aconteciam, mas quase nunca, ouso dizer, com iniciativa popular. Em 1964, lutando contra a ditadura, o cenário mudou. Não que as classes populares tenham tomado as ruas, mas muita gente que vinha de baixo começou a lutar.

Já não era mais aquela movimentação vinda de mais um pequeno golpe de estado. Mesmo a revolta dos tenentes em 1922 ou a Intentona comunista em 1935 tinham um sabor de golpe de estado, de classe média e se limitavam aos quartéis.

Em 1964 a reação foi pra valer e os porões da ditadura se encheram de gente. A classe média que ajudou o golpe se mantinha e passava distante do que acontecia. Torcia pelo golpe, mas não queria que o sangue sujasse suas mãos. Os militares continuavam sendo vistos como uma casta, apesar da incompetência em administrar um país. E incompetentes seguiram mesmo com o clamor de certos grupos para que voltassem.

E assim nossa história seguiu até que a redemocratização mostrou que se podia ter um governo estável e democrático que procurasse o desenvolvimento e o bem estar da população. Sobretudo os governos populares do PT. Mas aquela elite pró mercado financeiro que, de uma certa forma, substituiu a casta oligarca do início do século XX continuava insatisfeita. Fez de tudo para minar esses governos. Conseguiu derrubar a Dilma em mais um golpe para a coleção e não satisfeita colocou no poder um ex- militar e um ministro da economia simpático ao mercado para ter a possibilidade de trazer mais apoiadores. Aquela sanha direitista seria controlada em prol de Paulo Guedes na Economia. Ledo engano. Não deu certo e apesar das forças contrárias, Lula voltou. Conseguiu sair da prisão que mais um pequeno golpe disfarçado arrumou pra ele e se elegeu.

Mas a mentalidade golpista continua. Parece que não querem um governo estável e desenvolvimentista. Preferem uma politica econômica que favoreça o mercado e pronto. O resto é comunismo. Hoje, a impressão que passa, é que estão à espreita e que qualquer brecha para poder tentar mais um golpe, trazer alguém que desestabilize o governo para que o mercado possa sofrer sua massagem estimulante de volta aos palcos. Não sossegam. Preferem a ameaça de um governo autoritário (que na realidade não os ameaça) a um período de crescimento. Lutam contra a educação e a informação para que o povo que fica não tenha o que dizer nem o que pensar. Melhor assim pra eles.

A instabilidade significa mais dinheiro no bolso deles. Um congresso atrasado significa possibilidade de pautas conservadoras e contra o desenvolvimento. São as oligarquias disfarçadas de mercado financeiro e de economia moderna que tentam sempre mostrar suas garras e se eternizar no poder.

Mas continuamos aqui vigilantes. Queremos uma democracia e a possibilidade do povo se desenvolver. Com justiça, paz e sem golpes. A vida pode ser animada sem essa instabilidade que só favorece a poucos.

Silvio Santos, office boy de luxo do governo, de qualquer governo

O apresentador de televisão mais longevo e famoso do Brasil deu-se mal na única vez que saiu de sua zona de conforto para tentar ingressar no mundo da política. Foi em 1989, às vésperas do primeiro turno da primeira eleição presidencial pelo voto popular desde o fim da ditadura militar de 1964.

À época, o jornalista Roberto Marinho, dono do sistema Globo de jornal, rádio e televisão, apoiava Fernando Collor de Melo, candidato à sucessão do então presidente José Sarney, para evitar a possível eleição de Lula ou de Leonel Brizola, ex-governador do Rio. E Silvio já criara sua rede de televisão – o SBT.

Carente de votos, Aureliano Chaves (PFL) desistiu de disputar a eleição. Uma ala do seu partido bateu à porta de Silvio e o convenceu a se candidatar. Collor, líder das pesquisas, entrou em pânico. Mas a Justiça abortou a aventura de Silvio – afinal, vencera há muito tempo o prazo para registro de candidaturas.


Silvio voltou ao seu nicho do qual nunca mais saiu, fiel ao princípio que se traçou: o de apoiar o governo, não importa qual fosse a orientação do governo, uma vez que televisão é uma concessão do poder público. Nas palavras dele em 1985:

“Eu sou concessionário, um ‘office boy’ de luxo do governo. Faço aqui o que posso para ajudar o país e respeito o presidente, qualquer que seja o regime”.

Repetiria a declaração em 2020, quando Bolsonaro era o presidente da República:

“A minha concessão de televisão pertence ao governo federal e eu jamais me colocaria contra qualquer decisão do meu ‘patrão’, que é o dono da minha concessão. Nunca acreditei que um empregado ficasse contra o dono. Ou aceita a opinião do chefe, ou arranja outro emprego.”

No SBT, mandava ele, e ai de quem o contrariasse. E nele mandava o governante de ocasião. Mudava a programação sem dar satisfação a ninguém e com base apenas na sua intuição, acertando muitas vezes, errando outras tantas. O SBT era o “Silvio Brincando de Televisão”, como diziam os que trabalhavam lá.

Embora tenha apoiado todos os governos desde o do general Emílio Garrastazu Médici (1969/1974), o terceiro da ditadura militar, foi com Bolsonaro que Silvio se sentiu mais à vontade. Daí à nova tradução, desta vez dada pela esquerda, à sigla do SBT: “Sistema Bolsonarista de de Televisão”.

Dez dias após a eleição de Bolsonaro em 2018, Silvio ordenou que o SBT exibisse mensagens de cunho patriótico do tempo da ditadura militar – entre elas, “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Diante dos protestos, retirou-as do ar no mesmo dia. Ele podia brincar de fazer televisão, e brincava com gosto.

Antes da posse de Bolsonaro, Silvio o entrevistou ao vivo, por telefone. Chamou-o de “um carioca muito simpático, risonho e brincalhão”, e elogiou a escolha do juiz Sergio Moro para ministro da Justiça, profetizando:

“Eu acho que você [Bolsonaro] pode ficar oito anos [no governo], depois passando para Moro e ele fica mais oito. O Brasil vai ter 16 anos de homens com vontade de fazer o país caminhar. Não vou viver até lá, é claro, mas, se depender da minha vontade e das pessoas que querem um Brasil para frente, oito anos com Bolsonaro e oito anos com Moro vão ser 16 anos de um bom caminho. Peço a Deus que isso se realize”.

Bolsonaro retribuiu o afago convidando Silvio para assistir ao seu lado o desfile militar de 7 de setembro de 2019, lançando um selo para celebrar os 90 anos de Silvio, e nomeando ministro das Telecomunicações o deputado federal Fabio Faria, genro de Silvio, casado com Patricia Abravanel.

A luta de um quilombo contra a especulação imobiliária

A agricultora Gabriela Sacramento, de 39 anos, deixou de ter medo da fome no início da vida adulta, quando ganhou uma casa do pai em Lauro de Freitas, cidade da zona metropolitana de Salvador, e aprendeu a viver da terra. Morando em uma área entrecortada por rios, além de plantar, Gabriela e a família usavam as águas que corriam no quintal para tomar banho e pescar. Duas décadas depois, esses momentos são apenas memória.

Primeiro, a construção da Via Expressa Contorno de Lauro de Freitas, um empreendimento do governo da Bahia em parceria com a prefeitura municipal e a Concessionária Bahia Norte, dividiu o terreno dela em dois, afastando-a do rio. Em abril deste ano, Gabriela precisou se mudar porque foi ameaçada por denunciar a construção de um bairro planejado no território onde vivia.

A terra pela qual Gabriela luta é o Quilombo Quingoma, considerado um dos mais antigos do Brasil, com atividade registrada desde 1569 e certificado pela Fundação Cultural Palmares desde 2013. Pela Constituição Federal de 1988, a comunidade remanescente deveria ter o direito à propriedade definitiva das terras assegurada, mas o processo de titularização está paralisado desde 2015 no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Enquanto o Estado demora a conceder aos moradores a posse definitiva do terreno, o próprio poder público, junto à iniciativa privada, está fatiando o quilombo. A mais recente disputa envolve a construção do bairro planejado Joanes Parque, um loteamento com unidades a partir de 130 metros quadrados. Segundo uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF), o condomínio está sendo erguido dentro de área já reconhecida como sendo do Quingoma em um relatório antropológico aprovado pelo Incra e a comunidade em 2017.
Empresa oferece loteamentos em território quilombola delimitado pelo Incra

Em fevereiro deste ano, o MPF, junto às Defensorias Públicas da União e do Estado (DPUs), emitiu uma recomendação para impedir a construção e comercialização do loteamento. Entretanto, uma publicação no Instagram da empresa MAC Empreendimentos, na última segunda-feira (12/08), afirma que o stand de vendas do loteamento seria inaugurado nesta semana. De acordo com o site da empresa, já foram abertas 50% das ruas. Metade do processo de terraplenagem também já estaria concluído.

"O empreendimento já está bem avançado na questão de supressão de vegetação, ainda que exista essa ação [civil] em curso. Mas como a liminar ainda não foi apreciada [pela Justiça], eles continuam a avançar com a construção", explicou Gabriel Cesar, defensor regional de Direitos Humanos na DPU da Bahia.

O bairro planejado avança porque, embora o estudo antropológico que reconheceu a extensão do território quilombola identifique que a área total do quilombo tem 1.225 hectares, o governo da Bahia tem uma contraproposta de reconhecer 284,76 hectares, o equivalente a 23% do quilombo reconhecido pelo Incra.

O condomínio fica numa área fora dessa segunda metragem, mas dentro da maior, equivalente 1,7 mil campos de futebol.


Segundo documentos da ação civil pública à qual a DW teve acesso, a MAC Empreendimentos alegou que mantém a propriedade das terras onde está sendo construído o condomínio, e que tem as licenças ambientais municipais para implementar o loteamento.

Em e-mail, a MAC Empreendimentos afirmou que atua "regularmente com todas as licenças necessárias, obedecendo todas as leis e que não nos encontramos em território quilombola". A empresa enviou à reportagem uma decisão da Justiça do dia 22 de julho, no qual foi decidido pela abstenção de obras ou serviços apenas no perímetro proposto pelo governo e não na área total reivindicada pelos quilombolas.

A prefeitura de Lauro de Freitas afirma que vem se abstendo de conceder licenciamentos e alvarás para construir na área da proposta do governo, como determinado pelo judiciário. Em nota, diz ainda que o empreendimento está fora desse perímetro.

A empresa alega que já investiu cerca de R$ 5 milhões na área, entre impostos e obras. Porém, segundo o MPF e as defensorias, a MAC tem direito no máximo a indenizações, já que a propriedade dos remanescentes de quilombos é um direito constitucional e inalienável.

A questão é que, se os imóveis forem construídos, o estado terá que pagar uma indenização maior. "Entendemos que esse empreendimento não pode avançar, pois essa área possivelmente será reconhecida como um território quilombola. Não faz sentido liberar a construção", acrescenta Gabriel Cesar.

Mesmo que as casas ainda não estejam construídas, o empreendimento já causou impacto na vida dos quilombolas – foram derrubados cerca de cinco quilômetros de mata, comprometendo as áreas de plantio. Animais silvestres como cobras e tatus estão sendo encontrados dentro ou próximos das casas. A comunidade denunciou o caso à Secretaria de Meio Ambiente e à ouvidoria da cidade, pois o local é uma Área de Proteção Ambiental (APA).

"Desde 1569 a gente vem fazendo a proteção desses espaços, mas hoje a gente está sendo invadido. A gente não pode nem usufruir de uma mata sagrada para fazer nossos ritos", lamenta Rejane Rodrigues, 39 anos, pedagoga e líder do Quilombo Quingoma, que tem atualmente cerca de 4,5 mil moradores, distribuídos em 650 famílias e mil casas.

Uma decisão do Superior Tribunal Federal (STF) de 2021 determina que, independentemente da fase do processo de certificação ou titulação, as comunidades tradicionais não podem ser penalizadas ou privadas dos seus direitos pela demora do estado. Em abril, o MPF solicitou que a União, o Incra, o Governo da Bahia, o município de Lauro de Freitas e a MAC Empreendimentos fossem condenados a pagar uma indenização por dano moral coletivo e dano existencial aos quilombolas do Quingoma no valor de R$ 5 milhões.

O Incra reconheceu em nota que o Quingoma é um caso singular, pois envolve o avanço da urbanização em direção à área da comunidade, com empreendimentos públicos e privados ocupando parcialmente o território. O órgão diz que essa situação leva a dificuldades técnicas – não detalhadas – para concluir o processo, e afirmou ainda que realiza reuniões mensais com a comunidade e outras entidades do Estado da Bahia, para articular soluções.

A construção do bairro planejado é apenas a última batalha enfrentada pelos quilombolas de Quingoma. A primeira delas aconteceu com a construção da Via Expressa, inaugurada em 2018 para desafogar o trânsito entre a capital e o Litoral Norte baiano. A estrada gera transtornos até hoje à comunidade. Na época da construção, alguns moradores precisaram ser indenizados por perder seus imóveis. Agora, alguns deles precisam pagar pedágio.

Ambas as situações aconteceram com Gabriela Sacramento. A via deixou o rio e o poço artesiano de onde pegava água de um lado, e o espaço para a nova casa do outro. O imóvel, que antes era de alvenaria, hoje é um contêiner. "Eles colocavam dinamites para explodir, então era impossível construir uma casa. Agora, eu também dependo da água do meu vizinho, o que torna mais difícil a plantação", diz.

Gabriela paga pedágio para ir ao hospital onde ela e o filho realizam tratamento oncológico e para chegar à sede da Associação Agrícola Novo Horizonte, da qual é presidente. Em maio deste ano, a tarifa básica para carros aumentou de R$ 6,30 para R$ 7.

A Via Metropolitana começou a ser planejada em 2008 e, desde essa época, os moradores do Quingoma passaram a receber demandas judiciais pela reintegração de posse. Além da pressão, sofreram casos de incêndio de casas, agressões físicas e viram funcionários de construtoras entrar no território sem autorização para realizar estudos de topografia.

"Há no Brasil um processo histórico de apagamento dos direitos das populações subalternizadas, que geralmente são pretos e pobres. E com o Quingoma não é diferente", diz o pesquisador Fabio Macedo Velame, líder do grupo de pesquisa EtniCidades da Universidade Federal da Bahia (UFBA). De acordo com ele, a rodovia faz parte de um planejamento regional e municipal de expansão urbana e criação de novos bairros.

Em nota, a Concessionária Bahia Norte afirmou que todas as intervenções estruturais necessárias à implantação das praças de pedágios nas rodovias "ocorreram respeitando os trâmites legais para a obtenção das licenças previstas no contrato de concessão". Além disso, a gestora diz manter diálogo com as comunidades quilombolas "para a preservação do patrimônio material e imaterial das áreas associadas às rodovias".

Sobre o pedágio, a Bahia Norte disse que "as isenções de pedágios em rodovias sob sua gestão são previstas em contrato de concessão e deferidas exclusivamente pelo Governo do Estado da Bahia".

Disputas constantes pela posse de terras geram insegurança nas áreas ocupadas pelas comunidades quilombolas. Segundo a DPU na Bahia, desde abril desse ano, os conflitos na área do Quingoma se agravaram, e três lideranças do quilombo foram ameaçadas de morte.

Gabriela e Rejane foram incluídas no Programa de Proteção ao Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) e estão vivendo fora da comunidade há cerca de quatro meses, enquanto outra liderança, uma idosa, vive sem poder sair de casa dentro do território.

Todas temem ter o mesmo destino de Mãe Bernadete, ialorixá do quilombo Pitanga dos Palmares, também na região metropolitana de Salvador. Ela foi assassinada há um ano, no dia 17 de agosto de 2023. Líder da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) e liderança local, Mãe Bernadete também estava no programa de proteção, o que não a impediu de ser morta com 25 tiros. Em 2017, o filho dela já havia sido assassinado. A Polícia Civil concluiu que Bernadete foi morta após entrar em conflito com o tráfico de drogas no território.

Segundo dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia tem a maior população quilombola do país, com 30%. O percentual equivale a 397 mil pessoas em 944 comunidades. Mas apenas 5,2% dos quilombolas na Bahia vivem em territórios titulados. O Incra tem atualmente 1,8 mil processos de titulação abertos.

De acordo com a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, responsável pela execução do programa de proteção, há 16 lideranças quilombolas ameaçadas e protegidas no estado atualmente. Ao todo, há 133 defensores inseridos no PPDDH na Bahia.

Longe do que considera o seu local de origem, Gabriela passou a ter dificuldades para dormir e hoje precisa de medicamentos para induzir o sono. "Eu vivo praticamente presa, escondida. Tenho a sensação de que estou sendo perseguida", conta ela.

Mesmo inseridas no programa, Rejane e Gabriela dizem que não se sentem protegidas. A DPU solicitou melhorias no programa à secretaria de Justiça e Direitos Humanos. "O programa não é feito para tirar as pessoas do território, mas muitas vezes isso não é possível. E quando elas saem, é sempre uma dificuldade de deslocamento e alimentação", diz o defensor Gabriel Cesar.

Em nota, a secretaria afirmou que o programa está sendo remodelado em todo o Brasil. Na Bahia, o órgão afirma que triplicou o orçamento destinado à proteção e criou um Grupo de Trabalho intergovernamental para regularização de conflitos fundiários. "Como resultado desses esforços, por exemplo, o Quilombo Pitanga dos Palmares já está em fase final de demarcação de terra", diz a nota.

Enquanto não voltam para casa, Rejane e Gabriela tentam lutar à distância para que novos empreendimentos não cheguem ao Quingoma. "Eu sei que sair de lá também é uma forma de luta, de resistência, porque se eu ficar, posso ser morta como mãe Bernadete foi", diz Rejane, que acrescenta: "Eu não preciso ser heroína, que herói é solitário, e a luta é coletiva".

Emenda impositiva é corpo estranho no nosso sistema político

O ministro do STF Flávio Dino sustou a execução das emendas impositivas até que "os Poderes Legislativo e Executivo, em diálogo institucional, regulem os novos procedimentos conforme a presente decisão".

Os princípios da execução das emendas impositivas são, segundo o despacho do ministro:

"a) existência e apresentação prévia de plano de trabalho, a ser aprovado pela autoridade administrativa competente, verificando a compatibilidade do objeto com a finalidade da ação orçamentária, a consonância do objeto com o programa do órgão executor, a proporcionalidade do valor indicado e do cronograma de execução;

b) compatibilidade com a lei de diretrizes orçamentárias e com o plano plurianual;

c) efetiva entrega de bens e serviços à sociedade, com eficiência, conforme planejamento e demonstração objetiva, implicando um poder-dever da autoridade administrativa acerca da análise de mérito;

d) cumprimento de regras de transparência e rastreabilidade que permitam o controle social do gasto público, com a identificação de origem exata da emenda parlamentar e destino das verbas, da fase inicial de votação até a execução do orçamento;

e) Obediência a todos os dispositivos constitucionais e legais que estabeleçam metas fiscais ou limites de despesas".

O despacho do ministro é claríssimo e é difícil imaginar que algum agente público seja contra esses princípios.


Como escrevi em 2013: "A adoção do Orçamento impositivo será negativa para a qualidade da gestão política de nosso presidencialismo de coalizão, que tem a característica de ser fragmentado.

Em nosso presidencialismo com voto proporcional em grandes distritos (São Paulo, por exemplo, é um distrito com 70 cadeiras), há fortíssima fragmentação política e enorme capacidade de representação de minorias. No sistema distrital americano, uma minoria que represente 10% da população, espalhada no território, não terá assento na Câmara. No Brasil, terá 10% dos assentos.

Essa característica faz com que nosso Legislativo defenda pautas de partes da sociedade. Quem defende o interesse agregado é o Executivo. Isso porque o Executivo é o Poder cobrado e visto como responsável pelo desempenho da economia. Os deputados e, em menor escala, os senadores defendem agendas particulares, apesar de geralmente legítimas.

A compatibilização entre os interesses particulares e o resultado agregado —e, portanto, o interesse comum— é arbitrada pelo Executivo, que precisa de instrumentos para fazer com que a banda toque afinada. Grosso modo, o Executivo tem dois instrumentos de gestão: a distribuição de ministérios e cargos em estatais e a liberalização das emendas parlamentares.

A negociação de liberação de emendas parlamentares em troca de votações de projetos que atendam ao interesse agregado é um legítimo instrumento de gestão da base de apoio do Executivo".

A adoção por aqui do orçamento impositivo se explica por um certo vira-latismo, que considera que as instituições políticas norte-americanas são necessariamente superiores às nossas, e pelo oportunismo do Legislativo, que, em um longo período de presidentes fracos, avançou sobre atribuições que são logicamente do Executivo.

Apesar de o desenho institucional político brasileiro ser funcional —veja minha resenha do livro recém-publicado "Por que a Democracia não Morreu"—, nosso sistema político tem limitações. Uma delas é depender muito da qualidade da liderança.

Quando elegemos seguidamente presidentes com pouco apetite para a lida diária da política —Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro—, abriu-se um vácuo que foi ocupado pelo Congresso.

Oxalá o presidente Lula em negociação com o Congresso consiga reverter ao menos parte da piora institucional ocorrida na última década.