quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Para Bolsonaro, o Brasil está abaixo de tudo

Há quem critique o governo Bolsonaro por inconsistência e falta de projeto. Ele chama Paulo Guedes, um ministro de orientação liberal, para conduzir a economia, aí empurra reformas com a barriga, suspende privatizações e intervém na Petrobras para manipular o preço dos combustíveis. Chama outro ministro consagrado pelo combate à corrupção na Operação Lava-Jato, o ex-juiz Sergio Moro, para Justiça e Segurança Pública, depois o frita até queimar e faz de tudo para desmontar os avanços institucionais derivados da operação.

Os atos de Bolsonaro podem parecer contraditórios e dar a impressão de uma biruta giratória que age ao sabor dos ventos. Mas não são inconsistentes. Há um objetivo claro por trás deles, com prioridades definidas e um estilo próprio de governo. De certa forma, o Brasil de Bolsonaro se assemelha a um condomínio em que o síndico é um capitão do Exército. Quer mandar em tudo, tem seus condôminos prediletos, em favor dos quais se desdobra.

A ordem das prioridades é conhecida. Primeiro, a família, como ficou claro na decisão do STJ que deverá livrar o filho Flávio, o Zero Um, no caso das rachadinhas. Em seguida, policiais, milicianos, militares, caminhoneiros e a claque que bate palmas e o chama de “mito” a cada barbaridade que solta (em especial na pauta de costumes). Suas decisões são tomadas pensando apenas nesses públicos, e para eles vale tudo o que estiver a seu alcance.

Vale acenar com uma vaga no STF ao ministro do STJ que julgará recursos da defesa de seu filho num caso repleto de provas. Vale demitir o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, para tentar manipular o preço do diesel em favor de sua base eleitoral de caminhoneiros. Pouco importa que, na tentativa de zerar os impostos federais sobre o combustível, deixe de indicar uma compensação pela perda de receita, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Vale emitir decretos por cima da competência do Legislativo para facilitar o acesso a armas, com o objetivo velado de reunir uma milícia particular, tornando letra morta o Estatuto do Desarmamento. Vale interferir em todas as reformas, a começar pela da Previdência, para incluir artigos que privilegiem as corporações de policiais e militares. Vale usar a política externa para agradar a grupos religiosos, ainda que isso tenha transformado o país num pária nos organismos internacionais.

Vale, por fim, embarcar no negacionismo científico, desdenhar máscaras, vacinas e o distanciamento social para vender ilusões aos incautos, sem a menor sombra de preocupação com os 250 mil mortos pela Covid-19.

Enquanto Bolsonaro fizer tudo isso dentro da lei, está em seu direito. E não existem, até o momento, as circunstâncias políticas associadas a um processo de impeachment. O que existe é, apenas e tão somente, a nítida sensação, comprovada dia após dia, de que, na lista de prioridades de Bolsonaro, o Brasil está abaixo de tudo.

O custo da guinada nacional-populista

A Petrobras volta a ter um presidente militar, depois de 32 anos. Desde a campanha “o petróleo é nosso”, a estatal é uma questão sensível para as Forças Armadas. À época, dividiam-se entre “nacionalistas” como Horta Barbosa e Estilack Leal - defensores do monopólio estatal - e “entreguistas” liderados por Juarez Távora e Eduardo Gomes, adeptos da presença do capital estrangeiro na exploração petrolífera.

Os nacionalistas podiam ser tanto de esquerda como de direita. Os dois últimos presidentes da Petrobrás do governo de João Goulart foram os generais Albino Silva e Osvino Alves. O monopólio se manteve em 1964, mesmo no governo mais liberal do período militar, o do general Humberto de Alencar Castelo Branco.

Os militares nacionalistas continuaram dando as cartas na Petrobras por uma questão de “soberania nacional”, conforme aprenderam em suas academias. Nos 21 anos de regime militar, a estatal teve apenas um presidente civil, Shigeaki Ueki. Um deles, Ernesto Geisel, saiu da presidência da empresa para ser presidente da República.


A nomeação do general Joaquim Silva e Luna para o comando da empresa é muito mais do que a simples troca de um civil, Roberto Castello Branco, por um militar. Representa um cavalo de pau na política de preços livres dos combustíveis. Voltou a ser uma questão de Estado, a exemplo de como foi durante o período do regime militar e no governo petista de Dilma Rousseff.

E o intervencionismo promete não ficar restrito à Petrobras mas avançar para outras áreas, como o setor elétrico, no qual Jair Bolsonaro já promete se meter. O Banco do Brasil pode ser a próxima vítima.

A guinada é produto da junção da fome com a vontade de comer. De um lado, o núcleo militar palaciano vinha pregando que “é preciso dar um basta nisso” (a política de preços livres), como vociferou o general Augusto Heleno. De outro, um presidente em queda na sua aprovação e de vocação populista-autoritária. Bolsonaro está à cata de medidas de impacto capazes de turbinar sua reeleição. Nada melhor do que agradar ao povão a partir do rebaixamento do preço da gasolina, do gás e da energia.

<p>A mudança se dá por interesses eleitoreiros, muito embora o presidente da República tenha aplicado uma camada de verniz nacionalista, ao afirmar: “o petróleo é nosso e não de alguns grupos”. A frase embute uma acusação a Roberto Castello Branco de “entreguismo” aos interesses do mercado.</p>


Combustíveis com preços represados e energia elétrica barateada artificialmente foi a receita da reeleição de Dilma. O resultado todos conhecemos. Bolsonaro quer ir pelo mesmo caminho. Mas há uma diferença fundamental entre as duas situações.

Nos tempos de Dilma o populismo tarifário se deu na rebarba do boom das commodities. O de Bolsonaro está se dando em um quadro de recessão da economia mundial e em meio de uma pandemia, onde os gastos públicos terão de se expandir para financiar o auxílio emergencial das camadas mais necessitadas.

Não há espaço para subsidiar combustíveis sem mexer na política de preços. Bolsonaro jura que não fará isso. A conferir.


A Petrobras quase quebrou no governo Dilma, quando sua credibilidade foi ao chão. Começou a ser reconstruída na gestão de Pedro Parente, com a diminuição da alavancagem de sua dívida. Avançou muito na gestão de Castello Branco, com a política de preços baseada na variação cambial e no preço internacional do petróleo.

Isso permitiu a estatal priorizar o que é a sua expertise: a exploração de petróleo, principalmente em águas profundas. Para tal, a Petrobrás começou a vender ativos e anunciou um ousado programa de privatização da maioria de suas refinarias, muitas delas deficitárias. O segundo objetivo estratégico era aumentar os dividendos para seus acionistas, entre os quais o maior deles, o governo.

A substituição dos preços livres por uma política que “olhe menos para o mercado e mais para o consumidor”, conforme preconizam os militares e o próprio general Luna e Silva, é deixar a empresa sem condições financeiras de se dedicar ao seu foco. O mundo está em transição em sua matriz energética para uma de baixo carbono. Atrasos na exploração do pré-sal pode transformá-lo em um elefante branco quando se completar o ciclo da mudança da matriz.

Os custos da ressureição do nacional-populismo vão bem mais além do que o tombo do valor de mercado da Petrobras, cerca de cem bilhões de reais em dois dias. Parte já revertido nessa terça-feira.

De imediato fica pendurado no ar o programa de privatização das refinarias. Oito das treze existentes seriam vendidas para a iniciativa privada. Quem, em sã consciência vai comprá-las, sabendo que pode haver interferência política do governo na definição do preço de seus produtos? A trava dos investimentos pode se espraiar para além do setor petrolífero. Há liquidez no mercado internacional, o Brasil poderia se beneficiar do momento favorável. Mas o governo vai na contramão ao semear desconfianças. Colherá tempestades.

O dano maior é para a credibilidade da Petrobras e da política econômica do governo, com impacto direto na desvalorização do real, no aumento da inflação e dos juros e, portanto, no desempenho do PIB. Tanto os militares como o presidente enxergam uma muralha da China entre o mercado e a “economia real”. É uma miragem.

Guinadas como foi dada na Petrobras findam por afetar negativamente o emprego, o poder aquisitivo das pessoas, a vida real.
Hubert Alquéres

Congresso de 'majestades'

PEC da ‘impunidade’ parlamentar cria ‘suas excelências, as majestades’. Parlamentares NÃO poderão ser presos ou julgados pelo Judiciário nos casos estabelecidos na proposta. Transforma réus em reis intocáveis. Absurdo. Inconstitucional. Afronta ao povo brasileiro
Simone Tebet , senadora (MDB-MS)

O João Bobo não fica mais de pé

Jair Bolsonaro brinca com a agenda liberal como uma criança com um boneco tipo João Bobo. Ele esmurrava, mas o bicho voltava a ficar de pé, sempre com um sorriso na carinha. Até que um dia ... Nesse episódio da intervenção na Petrobras, o João Bobo ficou lá, estatelado, e o garoto afinal se assustou.

Correu para o Congresso com uma medida provisória que facilita a privatização da Eletrobras, mandando dizer ao mercado que não, absolutamente, a agenda não mudou. Fez elogios públicos a um Paulo Guedes atropelado e desautorizado, em estado de mutismo desde o anúncio da demissão do amigo Roberto Castello Branco – e que continuou caladinho. Até uma espécie de “bolsa caminhoneiro” Bolsonaro agora quer criar, para ajudar sua turma sem meter o dedo explicitamente na política de preços da maior empresa da América Latina, como havia deixado claro que faria.




Só que, desta vez, vai ser difícil botar o brinquedo de novo em pé. Em dois anos, foi-se erodindo a confiança do mercado e de boa parte do establishment nas intenções neoliberais desse governo. A turma que apoiou Bolsonaro para se ver livre do PT foi se decepcionando dia-a-dia com as reformas que não andaram, as privatizações que não saíram e o conjunto da obra de atos e declarações de Bolsonaro, sobre o qual nem é preciso falar. De superministro, Paulo Guedes passou a uma espécie de viúva da Esplanada, calada e sofredora.

Ninguém acredita mais que a privatização da Eletrobras vai sair. É possível, sim, que o BNDES, com a nova medida provisória, comece a fazer estudos de modelagem. Daí a ver o Congresso aprovando a venda da empresa há um longo caminho. Por trás dos sorrisos e promessas de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, que posaram ao lado de Bolsonaro na aglomeração legislativa desta terça, há, antes de tudo, a satisfação de ter o chefe do Executivo rendido a seus pés &#8212; e com todos aqueles cargos e funções maravilhosas a oferecer na máquina federal.

Poucos apostam no ajuste fiscal que a equipe econômica tenta passar como condição para a retomada do auxílio emergencial. O auxílio vem, isso é certeza, pois o candidato Bolsonaro precisa dele. Já o ajuste do governo vai sendo desidratado a cada dia, entre concessões, como a retirada voluntária da redução da jornada e dos salários dos servidores, e medidas sem noção, como a extinção do piso constitucional de recursos para Saúde e Educação. Quem conhece o Legislativo, sabe que isso nunca vai ser aprovado, embora os espertíssimos Lira e Pacheco adotem um discurso neoliberal de ocasião e finjam levar a sério.

O João Bobo caiu e não levanta mais. Mercado e establishment já procuram outro playground para brincar em 2022. Dificilmente Bolsonaro, com seus militares – que estão se divertindo nas estatais – e seus terraplanistas, que gostam de jogar pesado, tipo canelada e dedo-no-olho, vão estar nele. E a turma do Centrão, liderada por Lira e Pacheco? Vai estar no avião de quem lhe pagar passagens de primeira classe para a Disney, rindo de quem ficou.

E a pandemia?

Estávamos em março de 2020 quando eu disse que a estratégia de Bolsonaro para (não) lidar com a pandemia seria esperar que as medidas impostas por governadores e prefeitos funcionassem a ponto de garantir que a crise de saúde desse lugar à crise econômica. Aí, poderia dizer que a culpa da miséria vivenciada por muitos brasileiros na ressaca da pandemia era responsabilidade de todos, menos dele, que, embora presidente, havia tido as suas mãos amarradas pelo STF.

Esse discurso começa a degringolar com a atitude tresloucada de se contrapor à vacina. Mesmo quem tem método sucumbe à própria vaidade. Ora, a vacina é a forma que temos hoje de pensar no retorno à normalidade. Esse era, supostamente, o desejo de um presidente que falava contra o isolamento. Por culpa de Bolsonaro, entretanto, não temos vacinas.

E, se não temos vacinas, temos uma segunda onda, que, ao deixar sem ar os pacientes de Manaus, escancarou a incompetência do governo. Temos hoje em São Paulo a maior ocupação de leitos de UTI desde o início da pandemia. A Bahia já tem 80% dos leitos ocupados. No Rio de Janeiro a situação é ainda pior.


Pode ser coincidência, mas é curioso que, num ponto crítico da segunda onda, estejamos discutindo o discurso antidemocrático que levou à prisão de um aliado do governo e a interferência do presidente na Petrobras, que depois vira afago nas redes ao ministro Paulo Guedes. Para animar uma torcida liberal recentemente frustrada, o presidente falou até em privatização, coisa que ele parecia ter esquecido de defender quando aglomerou com apoiadores no Ceagesp.

Os assuntos são todos relevantes, merecem discussão. O tema principal, entretanto, continua sendo a pandemia, que já causou 250 mil mortes num país que ainda não resolveu como vai vacinar a sua população.

Bolsonaro, ao pautar as nossas discussões, constrói o cenário adequado para edificar sobre a nossa falta de estratégia o alicerce da narrativa que lhe favorece.

Pensamento do Dia

 


Por um ajuste sem granadas e jabutis

Ajuste fiscal não pode ser feito com a lógica de “colocar a granada no bolso do inimigo”. Não pode ser uma coleção de jabutis. Nem bodes. Mas é dessa forma que foi preparada a PEC Emergencial relatada pelo senador Márcio Bittar (MDB-AC). Quem acha que é possível, no momento extremo que vivemos, fragilizar o SUS, acabar com o Fundeb? A PEC faz isso. E, de quebra, o ajuste que está sendo proposto pelo governo Bolsonaro acaba com duas fontes de financiamento da Receita Federal e assim torna mais fraco o órgão que arrecada e combate a sonegação.

A votação no Senado foi adiada. Ainda bem. A ideia original era votar a proposta, cheia de ardis e complexidades, em 48 horas. Seria hoje a votação do relatório apresentado na terça-feira. Neste governo e no meio de uma pandemia, quem sinceramente pode defender o fim das vinculações para a Saúde e Educação? O país quer e precisa de um SUS mais forte. O desafio de reabrir escolas públicas e recuperar o ano letivo perdido torna mais necessário o financiamento educacional. A proposta do governo é acabar com as vinculações nas três esferas administrativas, e para os dois setores. União, estados e municípios não teriam mais que cumprir o piso para educação nem o mínimo para a saúde.

A proposta ataca também a autonomia da Receita Federal, como contou no “Valor” de ontem Maria Cristina Fernandes. Com a supressão de um inciso, deixa de haver a vinculação de impostos para o financiamento das atividades de administração tributária. A vinculação foi introduzida numa Emenda Constitucional, a 42, de 2003, mas, segundo explicação de técnicos que eu ouvi, nem estava sendo usada. Isso porque a maior parte do financiamento da Receita vem do Fundaf, Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento de Atividades de Fiscalização. Ele foi criado pelo decreto lei 1.437 de 1975 e sobreviveu à Constituição de 1988.

— Todos os fundos estão vinculados ao Orçamento-Geral da União, mas a gente sempre podia, na hora dos cortes, dizer que tinha os recursos. Até porque se não pudermos fazer nossas atividades, o governo estará dando um tiro no pé. Sem arrecadação não se sai de crise fiscal. O problema é que o governo está acabando com todos os fundos e ainda por cima propôs o fim dessa vinculação —disse um técnico tributário.


Quando a vinculação foi aprovada em 2003, a Receita dizia que preferia não usar esse dispositivo. Mas agora, com o fim do Fundo, essa vinculação seria o plano B para ela se financiar. Se ela tiver que disputar recursos no Congresso vai encontrar muita gente torcendo para a Receita não fazer o seu trabalho.

Na famosa reunião ministerial, cujo vídeo foi divulgado pelo ministro Celso de Mello, o Brasil viu uma espécie de ressonância magnética do atual governo. Tudo foi visto lá. O ministro Paulo Guedes por exemplo falou da sua técnica de “colocar a granada no bolso do inimigo”. Ele se referia a ter incluído na transferência para os estados e municípios a exigência de não aumentar o salário dos servidores. A ideia era de fato boa, mas a grande resistência a esse ponto vinha do próprio presidente da República que queria dar aumentos para policiais e garantir o reajuste dos soldos dos militares. Por isso, só foi aprovada depois de garantidas as vantagens para os grupos protegidos pelo presidente.

Agora, de novo, houve vantagem para os favoritos de Bolsonaro. A isenção de impostos federais sobre o diesel por dois meses, anunciada pelo presidente para agradar caminhoneiros, custa R$ 3 bi. Terá que ser coberta com aumento de impostos. A Receita está com essa bomba na mão. Que imposto aumentar e que possa gerar receita este ano?

Ajuste fiscal dói. Nunca foi indolor. Cada avanço que o Brasil conseguiu foi difícil. Não pode ser feito no truque, no escondido. Não faz sentido propor mudanças permanentes em troca da aprovação de algo urgente e temporário, como o auxílio emergencial. Não pode incluir jabutis, nem bodes.

O auxílio será extrateto e fora da meta fiscal. Mas a PEC é apresentada como uma forma de dar um sinal de que o governo ajustará suas contas. O problema é que especialistas acham que, do jeito que está, ela contorna o teto de gastos, enfraquece a regra de ouro, propõe o fim do mundo na educação e na saúde e puxa a escada da Receita Federal. Em resumo, não há ajuste, apenas bodes, jabutis e granadas.

O que aprendi sobre o Brasil?

Eis uma pergunta legítima para quem, desde o final dos anos 50, tem se dedicado a tentar enxergar o seu país pela “rua” sem esquecer a “casa” e o “outro mundo”, escapando das sociologias nas quais o óbvio protagonismo da língua e dos costumes é excluído pelo foco no que se entende por “política” (em que partidos viram dinastias e súcias) e “economia” vista apenas como mercado. Um cenário no qual o “cultural” não existe, pois as elites se omitem, atribuindo às leis impessoais da realidade política e do mercado essa nossa impiedosa viagem marcada por uma indigna desigualdade.

Estudos de economia e política são legião no Brasil. Neles, o País é lido de fora para dentro como se o sistema nacional não tivesse singularidades históricas e sociais. A morada com suas regras e seus costumes, por exemplo; a religião que foi um catolicismo exclusivista; o regime que foi monárquico e um sistema de relacionamentos pessoais indiscutíveis.

Num ensaio cuja contemporaneidade é patente, pois passamos todo o tempo falando disso, Oliveira Vianna examina “O papel dos governos fortes no regime presidencial” (publicado em 1923, no livro Pequenos Estudos de Psicologia Social) e sugere que um fator essencial de nossa “psicologia política” seria “a incapacidade moral de cada um de nós para resistir às sugestões da amizade e da gratidão, para sobrepor às contingências do personalismo os grandes interesses sociais, que caracterizam a nossa índole cívica e definem as tendências mais íntimas de nossa conduta no poder”.

Eis uma pergunta essencial, pois o que o Brasil diz para mim é justamente essa capacidade de politizar tudo, menos as nossas relações pessoais e as suas éticas. É justo nessa fronteira entre o pessoal e o impessoal que jaz tanto o “você sabe com quem está falando?” quanto os autoritarismos negacionistas de todos os tipos. Da pandemia e da vacina sem nenhuma dúvida, mas igualmente dos foros privilegiados que julgam de modo diferenciado um mesmo delito. Com eles, a lei vale mais para uns do que para outros. É essa oscilação circunstancial e claramente pessoal que chama a minha atenção quando encaro o Brasil como pátria amada e objeto sociológico objetivo.


Devo observar que corrigir a generosa e ampla ética das relações sociais do Brasil por meio de um “estado forte”, como considera Oliveira Vianna, tem sido aplicado e está novamente no mapa. Corrigir a sociedade pelo Estado ou pelas leis é um dogma entre nós. E o dogma fala mais de uma ilusão do que de um remédio eficaz. O que ela revela é a separação relativamente absoluta entre “governo” e cultura ou estilo de vida. Tomando como vilão apenas os governos e o Estado, esquecemos convenientemente do nosso papel e, atribuindo tudo ao governo, Estado ou administração pública deixamos de olhar criticamente a nossa própria condição de fidalgos e “homens bons” - gente que fura todas as filas, inclusive as da vacina.

A segregação entre “casa e rua”, que até hoje nos persegue (porque a casa é inocente e a rua é bandida), esquece que os mais exaltados “governos fortes” e as ditaduras foram ou são exercidos por nossos colegas, amigos, compadres, parentes e subordinados. Nenhum governo conseguiu encarar o fosso entre a morada e a vida pública nas suas mais claras contradições, pois a casa é monárquica, a rua, republicana! Na casa existe uma dura hierarquia de gêneros e idades, na rua há uma surpreendente igualdade que, quase sempre, nos obriga a usar o “você sabe com quem está falando?” como um ritual de distinção.

Não deve ter sido por acaso que a passagem da monarquia para a República foi realizada por terríveis rompimentos com elos pessoais. Novas concepções de como se relacionar com Deus e de como limitar o luxo e o poder dos nobres tiveram um papel básico nas relações com aqueles que ocupavam um papel superior. Disciplinar funcionários do Estado foi fundamental no caso das primeiras burocracias - dos primeiros requisitos para mudar o feitio e o estilo de governar legal e politicamente para todos.

No caso brasileiro tivemos Estados fortes e fracos, mas pouco discutimos que a segmentação entre Estado e sociedade tem como consequência isentar a responsabilidade e o peso da sociedade junto ao Estado. No fundo, mantemos até hoje em separado entidades que estão entrelaçadas, posto que o Estado é a sociedade e os seus estilos de vida e vice-versa.

Conclusão: o que eu aprendi com o Brasil foi que a sociedade ainda não se entendeu com o Estado. O jogo do empurra-empurra de dizer que a sociedade estava errada no século 19 e de repetir a dose, usando o mercado e a política no século 20 e 21, tem que mudar. Tanto o Estado quanto nós, sociedade, temos de nos assumir como parte de um todo. Sem isso, o suicídio fica ainda mais perto...

PS: Quando um presidente eleito diz que “se tudo dependesse de mim não seria esse o regime” ele deixa passar o desgosto e a aversão com a democracia representativa, a qual ele jurou solenemente defender. É lamentável.

Cuidado, Bolsonaro à solta

Há algumas semanas, sugeri que só havia uma maneira de conter Jair Bolsonaro. Mas, sem espaço, não dei detalhes. Seria uma ação conjunta, tipo Swat ou Mossad, em que uma equipe de agentes de elite o imobilizaria de surpresa, enquanto outra lhe aplicaria uma focinheira. A salvo das mordidas e cusparadas de besta-fera, uma terceira equipe o enfiaria numa camisa de força. Por fim, as três equipes, bem treinadas, o levariam pedalando o ar e o meteriam numa jaula.


Leitores protestaram argumentando que até Bolsonaro tem direito a um processo justo, mesmo que sumário, composto de inquérito, investigação, denúncia, oitiva de testemunhas, distribuição para respectiva vara, leitura da ata de reunião do condomínio, pedido de licença para arguição de descumprimento do preceito fundamental, parecer do relator, recursos infringentes, masturbação a céu aberto e outros trâmites legais. Tudo bem. O problema é se a expectativa de vida do brasileiro é suficiente para se chegar ao fim disso.

O próprio Brasil pode acabar antes, porque os coices de Bolsonaro se dão à la diable, aleijando a educação, a saúde, o meio ambiente, as relações exteriores, os direitos humanos, a ciência, a cultura. Atingem até os que acreditaram nele, como o pessoal do comércio, da indústria, do próprio agronegócio. Menos ou mais, todos já foram prejudicados por seu governo. Mas a reação é a da mulher do malandro.

Que o Exército babe às ordens de Bolsonaro entende-se —ele o comprou a preços de Camelódromo. O Congresso, que o conhece bem, sabe quando lhe dar corda ou lhe puxar o tapete e o valor disso em suas contas bancárias. E a Justiça começa a exalar mau cheiro com certas decisões que emite, infectadas por suas digitais.

Matar, desmatar, corromper, nada o compromete. Mas agora Bolsonaro meteu-se com as estatais e a Bolsa. Talvez, afinal, comecem a achá-lo perigoso fora da jaula.

Brasil tem quase 30 fábricas de vacina para gado e só 2 para humanos

A pandemia da covid-19 evidenciou uma fragilidade do Brasil: a alta dependência de insumos importados da China para a fabricação de vacinas e o sucateamento de laboratórios e fábricas usados para produzir imunizantes no país.

Enquanto na década de 1980, o Brasil tinha pelo menos cinco institutos capazes de produzir vacinas, atualmente, há apenas dois em operação: Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e o Instituto Butantan.

E das 17 vacinas atualmente distribuídas por esses dois institutos de pesquisa, só quatro são fabricadas totalmente no Brasil e não dependem da importação do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), como é chamada a matéria-prima para produzir imunizantes.


Esse sucateamento do setor de vacinas para humanos contrasta com os elevados investimentos na fabricação nacional de imunizantes para animais, principalmente gado.

Enquanto o Brasil importa a grande maioria das vacinas usadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mais de 90% das vacinas para gado são fabricadas no país, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan).

"O problema do Brasil é que a gente importa tudo. Nos últimos anos, reduzimos em 50% a capacidade de produção nacional de vacinas. Temos só duas fábricas. No setor veterinário, temos inúmeras fábricas", diz Ana Paula Fernandes, pesquisadora do Centro de Tecnologia em Vacinas e Diagnóstico da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De fato, existem cerca de 30 fábricas para vacina veterinária — a maioria no Sudeste do país, segundo o Sindan. Trata-se de um mercado que garantiu faturamento de R$ 6,5 bilhões ao setor farmacêutico veterinário e que ajuda a manter a liderança mundial do Brasil na exportação de gado.

'Para mais de 90% das vacinas para gado, o ciclo completo de produção ocorre em território brasileiro', diz Emílio Saldanha, vice-presidente do Sindan

"Todo o processo de fabricação, da semente de trabalho do vírus vivo ao envase e distribuição, é feito aqui. Para mais de 90% das vacinas voltadas a gado, o ciclo completo de produção ocorre em território brasileiro", disse à BBC News Brasil o vice-presidente executivo do Sindan, Emílio Saldanha.

Mas quando foi que o setor de vacinas para humanos deixou de ser prioridade, enquanto a vacinação de gado se desenvolvia?

Segundo o fundador e primeiro presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina Neto, foi na década de 1980 que o setor de pesquisa e fabricação nacional de vacinas para humanos viveu o auge de investimentos.

"No regime militar, foi implementado o modelo de substituição de importações. Os militares fizeram um esforço para ampliar capacidade produtiva local de insumos farmacêuticos e o pico se deu no final dos anos 1980", recorda.

Em 1985, o regime militar lançou o Programa de Autossuficiência de Imunobiológicos (Pasni), com a meta de tornar o Brasil autossuficiente na produção de imunizantes. Recursos do Ministério da Saúde foram transferidos em peso para quatro instituições de pesquisa: Bio-Manguinhos, Instituto Butatan, Fundação Ezequiel Dias e Instituto Vital Brasil.

Em poucos anos, o Brasil passou a fabricar uma série de vacinas em território nacional, como a da tríplice viral, febre amarela, tríplice bacteriana, poliomielite, tuberculose (BCG), e hepatite B.

"Tanto para o Butantan quanto para a Fiocruz os investimentos da década de 1980 foram um marco. O Brasil possuía um parque farmoquímico para produção de IFA (Insumo Farmacêutico Ativo)", disse à BBC News Brasil Tiago Rocca, gerente de parcerias estratégicas e novos negócios do Butantan.

Mas a maré logo iria mudar para a indústria de pesquisa em vacinas. A partir de março de 1990, a abertura comercial promovida pelo então presidente Fernando Collor permitiu a entrada maciça de produtos importados e muitas indústrias brasileiras não resistiram, inclusive o setor de imunizantes. Nesse meio tempo, China e Índia despontaram como grandes produtores de insumos farmacêuticos.

"O Brasil passou a importar em larga escala IFA, moléculas pequenas e outras matérias-primas usadas para fazer vacina. O problema é que os investimentos não acompanharam a competitividade e abertura. Atualmente, importamos cerca de 90% dos insumos imunobiológicos", explica Rocca, do Butantan.

Como consequência da abertura econômica, institutos e fábricas foram fechando as portas, restando apenas Fiocruz e Butantan com capacidade para produzir vacinas de tecnologia nacional.

"A abertura da economia no governo Collor foi feita sem cuidado, sem verificar como os diferentes segmentos seriam afetados. Na indústria farmacêutica, o que fizemos foi secar a capacidade de produção nacional e passar a importar tudo através das multinacionais", acrescenta Vecina Neto, que é professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

Outro momento importante na trajetória da indústria de vacinas foi a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999.

O Brasil passou a adotar um regime mais criterioso para liberação de medicamentos e foram impostas regras para equiparar o Brasil aos padrões internacionais de segurança em qualidade em pesquisa.

Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que essas medidas foram importantes, mas destacam que elas não foram acompanhadas de investimentos para que institutos como Fiocruz e Butatan pudessem atualizar sua infraestrutura e continuar a fabricar vacinas de ponta a ponta no país.

O resultado disso foi que imunizantes que antes eram produzidos no Brasil passaram a ser importados. O Butantan, por exemplo, fabricava a vacina Tríplice Bacteriana Acelular (contra difteria) e a de hepatite B, mas passou a importar esses produtos porque é custoso atualizar as fábricas para que se adequem às exigências regulatórias.

"Nós registramos a patente, detemos a tecnologia, mas precisamos de uma nova fábrica para produzir essas vacinas de acordo com as melhores práticas da Anvisa", explica Tiago Rocca.

Atualmente, das sete vacinas que o Instituto Butantan fornece só a da gripe é fabricada inteiramente no Brasil, a partir de um acordo de transferência de tecnologia. E das 10 vacinas fornecidas pela Fiocruz, só 4 não dependem da importação de Insumo Farmacêutico Ativo, ou IFA.

Gonzalo Vecina Neto avalia que os governos que se seguiram ao de Collor, inclusive os de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, não tiveram uma visão de longo prazo e também não investiram em pesquisa farmacêutica e de vacinas.

"O boom das commodities estimulou os governos a navegar em águas tranquilas e se fiar na exportação de produtos agrícolas. Por que FHC e Lula não investiram na autossuficiência em vacinas? Falta de visão de longo prazo. Nenhum dos dois tirou o pé do curto prazo, do populismo local, da reeleição no quarto ano."

Segundo a microbiologista Ana Paula Fernandes, que é professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o grande gargalo na indústria nacional de vacinas está na ausência de laboratórios tecnológicos e plantas fabris para viabilizar a transformação da pesquisa em produto final.

"Temos capacidade técnica, pesquisadores de ponta, mas existem gargalos que impedem que as descobertas se transformem em vacina. Temos conhecimento técnico para fazer vacinas como a da Pfizer e Moderna contra a covid-19, mas não temos matéria-prima, investimentos e fábricas para produzir", resume.

Esses gargalos são chamados pelos cientistas de "vale da morte". Isso porque, entre a descoberta científica e o uso desse achado, existe um abismo atualmente intransponível.

Segundo o professor de imunologia da USP Jorge Kalil, faltam laboratórios e plantas fabris que permitam testar a descoberta das universidades em animais e, depois, em seres humanos.

"O que impede que isso aconteça é falta de investimentos. Nós temos uma ciência de excelência no Brasil, mas precisamos atravessar o vale da morte, que é ir da descoberta científica nos laboratórios acadêmicos para a fase final, da industrialização", diz Kalil, que também é diretor do Laboratório Incor de Imunologia e ex-presidente do Instituto Butantan.

Já o setor de vacinas veterinárias conseguiu sobreviver à abertura de mercado e escapou às regulações criteriosas da Anvisa.

A liberação de vacinas e medicamentos para uso animal é regulamentada pelo Ministério da Agricultura, que impõe regras mais flexíveis, diz o ex-presidente da Anvisa Gonzalo Vecina Neto.

Além disso, um amplo e lucrativo mercado privado garante a compra das vacinas para gado, suínos e aves, enquanto o maior comprador de vacinas humanas é o governo federal.

O Brasil é o maior exportador de gado do mundo e a quantidade de bois no território brasileiro equivale ao tamanho da população brasileira. A venda em larga escala de vacinas para uso animal garante que seja mais vantajoso fabricar o produto no Brasil a importar de outros países, até porque o custo de fabricação é menor que o de vacinas para humanos, já que as regras são menos rígidas que as impostas pela Anvisa.

Otto Mozzer, dono da Allegro Biotecnologia, destaca ainda que parte da indústria de vacina animal cresceu na garupa do programa do governo federal de erradicação, até 2026, da febre aftosa — doença altamente contagiosa que pode causar a morte do animal e que provocava grandes prejuízos aos produtores.

"O grande parque tecnológico industrial foi na trilha da produção de vacina contra febre aftosa. Todos captaram recursos para fabricação dessa vacina e foram produzidos, nos últimos 20 anos, mais de R$ 6,2 bilhões de doses aqui no Brasil", disse Mozzer, que é doutor em biotecnologia pela USP.

Para se ter uma ideia, o Brasil tem cerca de 220 milhões de cabeças de gado, segundo o vice-presidente-executivo do Sindan, Emilio Saldanha. Cada um desses animais, precisa tomar duas doses de vacina contra febre aftosa — uma exigência do Ministério da Agricultura para todos os produtores de gado do país.

"Faz 30 anos que somos autossuficientes nas principais vacinas para rebanho brasileiro. Vacinação é sinônimo de competividade", destaca Saldanha.

O principal argumento contrário a investir em vacinas nacionais é o de que, atualmente, é mais barato importar produtos da Índia ou China do que construir laboratórios e fábricas para garantir autossuficiência. Atualmente, o déficit na balança comercial brasileira de insumos farmacêuticos é de R$ 2,1 bilhões (dado de 2019), segundo a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Como o Brasil passou por mais de 30 anos de desinvestimentos no setor, seria preciso um investimento pesado do poder público para reverter esse cenário.

Por outro lado, a pandemia do coronavírus mostrou os riscos de depender inteiramente da importação de insumos. A demora na entrega de matéria-prima pela China pode significar meses de atraso no cronograma de vacinação da população contra covid-19.

Além disso, há doenças que existem no Brasil e que não despertam interesse de pesquisa de grandes farmacêuticas estrangeiras, por serem um problema regional.

Para especialistas, investir em vacinas nacionais é estratégico para proteger população de doenças regionais e reduzir dependência externa, especialmente em momentos de crise, como em pandemias

"Por exemplo, tem um tipo de malária que é comum no Brasil, mas não em outros países. Temos dengue, zika, chikungunya... Fabricar vacinas eficazes contra doenças que predominam aqui é importante para proteger a população", diz Ana Paula Fernandes, que participa de um projeto nacional de vacina contra covid-19.

O gerente de parcerias do Butantan, Tiago Rocca, também defende investimentos em tecnologia nacional. "Não é só uma questão de lucro, de custo e de venda. É uma questão estratégica não depender quase inteiramente de importações", diz.

"Hoje, nós temos uma parceria com uma empresa estrangeira para continuar fornecendo a vacina da Hepatite B. Mas é uma questão estratégica ter a produção nacional, porque todos os habitantes do Brasil precisam tomar e precisam de dose de reforço a cada dez anos. É uma doença que está aí."

Cientistas brasileiros também argumentam que investir na infraestrutura de fabricação nacional de imunizantes é importante para fazer frente ao coronavírus, especialmente diante de evidências de que as vacinas contra a covid-19 terão que ser atualizadas constantemente para responder a variantes do vírus.

Butantan assinou contrato de transferência de tecnologia para produzir no país a CoronaVac. E a Fiocruz negocia contrato similar com a Oxford-AstraZeneca. Os dois institutos investiram na atualização das suas fábricas e laboratórios para viabilizar esses acordos.

Enquanto isso, pesquisadores brasileiros tentam angariar recursos para colocar no mercado vacinas feitas com tecnologia 100% nacional.

O grupo de pesquisa da microbiologista Ana Paula Fernandes, da UFMG, já terminou a fase pré-clínica de estudos para produção de uma vacina brasileira contra covid-19. "Tivemos uma resposta excelente. Usamos camundongos e eles responderam muito bem."

O professor Jorge Kalil, da USP, tenta desenvolver uma vacina em formato de spray nasal contra covid-19. Ele também já usou o produto em camundongos e tenta transpor o "vale da morte" para conseguir testar o produto em humanos.

"Se a gente consegue dinheiro para a fase mais fundamental da descoberta, é difícil percorrer o caminho que leva ao desenvolvimento do produto industrializado. Estamos agora negociando parcerias com empresas brasileiras."

Brasil em modo Venezuela

 


Clã Bolsonaro tem alívio nos tribunais mas 'rachadinha' já é uma marca

O clã Bolsonaro fez o diabo para fugir do fantasma da "rachadinha". Flávio foi ao STF para tirar o caso da Justiça do Rio. O Planalto organizou uma reunião com o chefe da Abin em busca de brechas para anular as investigações. E o presidente tentou intimidar investigadores ao lançar suspeitas de tráfico de drogas contra o filho de um promotor.

As apurações que cercavam a família presidencial meteram medo em Jair e companhia. Não à toa, a prisão de Fabrício Queiroz, em junho de 2020, é considerada uma linha divisória: logo depois que o operador do esquema passou um tempo na cadeia, o presidente baixou as armas contra o Supremo e foi ao altar com o centrão, em busca de blindagem.

Bolsonaro está perto de se livrar desse pesadelo no campo judicial. A decisão do Superior Tribunal de Justiça de anular a quebra de sigilo de Flávio e outros 94 investigados, nesta terça, obriga a investigação a voltar uma dezena de casas no tabuleiro e pode livrar a família de responder pelas acusações de desvio de dinheiro em seus gabinetes.


O caso pode ser praticamente enterrado na próxima semana, quando o STJ deve decidir se invalida também os relatórios financeiros que deram origem à apuração. A defesa das duas anulações tem como porta-voz o ministro João Otávio de Noronha, por quem Bolsonaro já disse ter sentido "amor à primeira vista".

Apesar do provável alívio nos tribunais, Queiroz e a "rachadinha" já são uma marca política do clã, mesmo que as provas não sejam usadas em processos. Os depósitos fracionados, a fortuna gasta pelo filho do presidente em dinheiro vivo e os cheques na conta da primeira-dama contaram uma história que Bolsonaro gostaria de esconder.

A fantasia do discurso anticorrupção já havia ficado pelo caminho antes que o presidente chegasse ao Planalto. Ainda que consiga contornar o cerco judicial com base em aspectos técnicos, Bolsonaro pagará o preço político dessas suspeitas. Agora, o país conhece os métodos da família em décadas de vida pública.

Tome que a culpa é sua

Sempre se disse que só apelando a Freud era possível ter uma explicação sobre quem é Jair Bolsonaro. Principalmente a personalidade no exercício do poder. Traço marcante: só admite a permanência a seu lado de colaboradores que vão além da subordinação formal, curvando-se, invertebrados, aos seus caprichos primários. Ou amortecendo seus triplos carpados.

Quem diria em que se transformou o ícone da campanha eleitoral, hoje exposto à condição de símbolo das frustrações com que o governo desafia seus eleitores. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tantas vezes já esteve na situação em que se encontra agora, a do tanto faz se sai, tanto faz se fica, que perdeu todos os traços da imagem projetada um dia.

As justificativas mais constantes são imprecisas: ora ele permanece porque interessa ao mercado financeiro ter um dos seus dentro da engrenagem; ora porque o poder o emociona. Talvez tenham razão os que avaliam o permanente dia do fico com a explicação de que o ministro aprecia um bom sapo.

Na verdade, a Bolsonaro interessa que fique. Sem Guedes, seria dele a culpa pelo fracasso do plano liberal e mais uma penca de problemas econômicos aprofundados pela crise sanitária da pandemia. Além de não ter, à mão, outro especialista em montagem de gambiarras para conter os efeitos de suas diatribes para destruir reputações e estatais em processo de reconstrução.

O caso de Eduardo Pazuello é ainda mais cruel. Todo o desastre que provocou se deveu à execução de ordens expressas de Bolsonaro. Da imposição da cloroquina à omissão na compra de vacinas, incluindo as mortes por falta de oxigênio. O que fez ou não fez se deve ao presidente, ele já confessou que só cumpre ordens. Como a gestão do governo Bolsonaro na pandemia é a pior do mundo, o ministro, seu agente, é o pior do mundo. Mas fica no cargo segurando a culpa e os processos judiciais.

Uns fazem questão de assumir e ficam com prazer, como é o caso do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Ele desperdiça o título de chanceler sem o menor constrangimento.

Outros, como Ricardo Salles, do Meio Ambiente, são casos de mimetismo explícito. Tornou-se um campeão recordista do negativismo ambiental.

Os governadores e prefeitos, que estão no front da crise generalizada e não podem contemporizar com o morticínio, sofrem a inexistência de uma liderança federal, mas sentem a presença da culpa transferida.

O descalabro orçamentário é culpa do Congresso. Bem como a inexistência de reformas estruturais. Derrubar a CPI da pandemia, barrar a CPI da rede de mentiras, tirar as verbas carimbadas da Educação e da Saúde (onde estiver, pode-se imaginar o desapontamento do velho senador capixaba João Calmon) figuram entre os mais graves atentados do bolsonarismo à sociedade por intermédio do Parlamento.

O ex-ministro da Educação Abraham Weintraub é pioneiro de ataques ao STF e vanguarda da surpreendente escalada antidemocrática do governo Bolsonaro. O modelo que a crônica internacional tipifica como terrorismo político. Tipos como este agridem a Constituição em nome da qual desfrutam o poder, sendo desproporcional a existência de apenas um preso por tais delitos. Ele não age sozinho.

Os ex-ministros Sérgio Moro (Justiça), Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich (Saúde) deixaram os cargos quando perceberam o truque. Demitindo-se, livraram-se da culpa pela interferência política na Polícia Federal e pelas 250 mil mortes de brasileiros por infecção do coronavírus.

A patologia freudiana em Bolsonaro leva a marca dupla do desprezo pela vida e de violentas fixações. Para quem irá a culpa pelo crescimento do crime com a irresponsável legislação armamentista? Quatro sugestões de resposta: dirigentes de clubes de tiros, fabricantes de revólveres, milícias e filhos. Jair Bolsonaro fica também fora desta.

Um caso de amor correspondido livra Flávio Bolsonaro do pior

Em 29 de abril último, ao dar posse a André Mendonça, o sucessor do ex-juiz e Sérgio Moro no Ministério da Justiça, o presidente Jair Bolsonaro assim referiu-se a João Otávio de Noronha, presidente do Superior Tribunal de Justiça, presente à cerimônia:

"Prezado Noronha. Eu confesso que a primeira vez que o vi foi um amor à primeira vista. Me simpatizei com Vossa Excelência."

Menos de três meses depois, Noronha aproveitou as férias do Judiciário para soltar Fabrício Queiroz. Mandou-o para prisão domiciliar. Para não parecer pouco, estendeu o benefício à mulher de Queiroz, que havia fugido. A ela caberia cuidar do marido.

O caso de amor à primeira vista entre o presidente e o juiz culminou com a decisão tomada pela Quinta Turma do tribunal de anular a quebra do sigilo fiscal e bancário do senador Flávio Bolsonaro (Patriotas), acusado de desvio de dinheiro público.

Noronha foi o primeiro dos quatro votos favoráveis ao filho mais velho de Bolsonaro. O voto do relator da ação foi contra. Flávio celebrou a decisão ao lado do seu advogado, Frederico Wassef, em cuja casa, no interior de São Paulo, Queiroz fora preso.

Em seu voto, que deixou eufórico o presidente da República, Noronha acusou o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Banco Central, de promover “indevida intromissão na devida intimidade e privacidade” de Flávio.



O Coaf monitora atividades financeiras consideradas suspeitas. Foi com base num relatório seu que o Ministério Público do Rio denunciou Flávio por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Um esquema que lhe rendeu 6 milhões de reais.

O mutirão para tirar Flávio do sufoco envolveu muita gente dos três Poderes da República. A saída de Moro do governo deveu-se à interferência de Bolsonaro na Polícia Federal, segundo o ex-ministro. A Agência Brasileira de Inteligência deu uma mão.

A Receita Federal foi pressionada para que não criasse problemas. O Conselho de Ética do Senado ficou desativado para não ter que examinar pedidos de abertura de processos contra Flávio por quebra de decoro. Até o Supremo Tribunal Federal ajudou.

Em setembro próximo, com a aposentadoria de Marco Aurélio Mello, será aberta uma vaga de ministro no Supremo. Noronha sonha com ela, mas também Mendonça, Augusto Aras, Procurador-Geral da República, e outros nomes menos cotados.

Aras já tem quem o substitua na Procuradoria-Geral: Lindôra Araújo, a procuradora que com muito orgulho não esconde os telefonemas que recebe de Bolsonaro. Ela liderou a investigação que resultou na queda de Wilson Witzel, governador do Rio.

O Superior Tribunal de Justiça voltará a julgar a partir da próxima terça-feira novas ações movidas pela defesa de Flávio. A tendência é aceitar todas. E assim será posto um ponto final no suplício de dois anos vivido com galhardia pela família presidencial brasileira.

Senhoras e senhores, eis Arthur Lira

Arthur Lira, réu por corrupção no STF, inimigo de Sergio Moro e da Lava Jato, entusiasta da lei de abuso de autoridade, maestro do Centrão, poderia começar sua gestão à frente da Câmara de maneira diferente?

Ele ganhou de lavada do candidato de Rodrigo Maia, prometendo ser “o presidente da Câmara”, “o presidente dos deputados”. Durante a campanha, iniciada dois, três anos atrás, fez questão de olhar nos olhos de cada um dos colegas e se vender como “homem de palavra”.


Tentando se contrapor a Maia, seu principal adversário político em Brasília, disse inúmeras vezes que não teria “preconceito” com pauta alguma e “tudo será decidido com o colégio de líderes” — era uma forma de fugir dos questionamentos sobre se colocaria para votar, por exemplo, o projeto do fim dos supersalários e a da prisão em segunda instância.

No topo da Câmara, onde sempre quis chegar, Lira, de cara, tirou os jornalistas de perto do plenário para instalar ali um novo e amplo gabinete para si, voltado para o gramado em frente ao Congresso e longe do batalhão de repórteres.

Agora, após posar de sereno na condução do caso Daniel Silveira, tenta enfiar goela abaixo da sociedade, com o apoio da maior parte dos líderes partidários, uma PEC que, se aprovada, como noticiamos, ampliará como nunca a imunidade parlamentar.

Veja só: Lira não somente começou seu mandato ignorando a PEC do fim do foro privilegiado, que está prontíssima para ser levada ao plenário, como inventou um projeto a toque de caixa — sem análise em comissão — que pode ampliar e fortalecer o foro privilegiado.

Senhoras e senhores, eis Arthur Lira, o candidato de Jair Bolsonaro. É só o começo.