"Minha mãe me mandou um vídeo que recebeu em grupos — de pessoas correndo, caindo, parecia vídeo de ataque de zumbi. Nem era na China. A gente está sendo bombardeado de fake news", desabafa Kyoshima, de 30 anos, sobre informações falsas sobre a China e o surto atual de coronavírus.
"É fácil divulgar vídeo da China sem conhecer o país. No mundo é normal isso: o chinês é tratado como uma invasão. Estou muito cansado disso e bravo com esse preconceito", diz o arquiteto, que é descendente de japoneses, à BBC News Brasil.
O relato de Kyoshima se junta a outros pelo mundo de reações preconceituosas contra pessoas associadas à China — seja por sua nacionalidade, ascendência familiar ou aparência física.
Na França, por exemplo, relatos de hostilidades vividas por estas pessoas no transporte público, em escolas e em unidades de saúde estão sendo reunidos pela hashtag #JeNeSuisPasUnVirus (#NãoSouUmVírus).
A Associação de Jovens Chineses na França publicou em suas redes sociais estar recebendo pedidos de ajuda psicológica por vítimas de discriminação desde o surgimento do novo tipo de coronavírus — não só de pessoas de origem chinesa, mas também coreana, cambojana, vietnamita e filipina.
Na Coreia do Sul, mais de 500 mil pessoas assinaram uma petição na plataforma online Blue House (criada pelo governo para receber petições dos cidadãos) exigindo que visitantes chineses sejam impedidos de entrar no país — apesar de restrições a viagens de pessoas de um país inteiro irem contra normas internacionais, o que foi endossado no último dia 27 em comunicado da Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmando que a entidade "não recomenda a aplicação de qualquer restrição no tráfico internacional, de acordo com as evidências existentes até agora".
Pesquisadores consultados pela BBC News Brasil apontam que preconceitos, como em relação a comidas consideradas exóticas consumidas na China ou a turistas saudáveis vindos de países asiáticos, podem mascarar problemas concretos e até atrapalhar a tomada de decisões em relação a eles — como uma vigilância sanitária eficiente em mercados que vendem alimentos de origem animal ou a transparência na circulação de passageiros por aeroportos.
"Segundo o Regulamento Sanitário Internacional, nenhum país pode tomar medidas consideradas extremas que não tenham evidências que as sustentem — por exemplo banimento de voos, fechamento de fronteiras. Essa proteção existe para evitar impedimentos ou restrições não justificáveis de viagem e comércio. Lutamos contra isso durante a pandemia de influenza em 2009, que alguns lugares estavam chamando de 'gripe mexicana'", explicou à BBC News Brasil o médico sanitarista e epidemiologista brasileiro Jarbas Barbosa, atualmente diretor-assistente da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), braço regional nas Américas da OMS.
"Em 2015, havia três países com transmissão de ebola na África — mas outros países estavam inclinados a considerar como caso suspeito qualquer pessoa que vinha do continente africano, mesmo que 5 mil km longe dos locais de transmissão."
"Esse tipo de medida (restritiva) é excessiva, não protege nenhum país de importar casos e, pelo contrário, termina incitando as pessoas a não agirem com transparência — e nem os países que precisam comunicar os dados. Além de ser ética e moralmente desaconselhável, porque induz à xenofobia", diz Barbosa, indicando que em crises como a atual, a atuação nos aeroportos deve ser mais vigilante na saída de passageiros de locais com transmissão (como Wuhan, por exemplo) e, no mundo todo, deve fazer desses locais meios de divulgação de informações sobre sintomas e locais de atendimento.
Para cientistas sociais que vêm estudando especificamente a contaminação de questões de saúde por preconceitos culturais, o episódio do novo coronavírus não é novo: é uma atualização de antigos preconceitos associados à China e à Ásia que já apareceram desde em uma epidemia de peste bubônica no século 19 ao surto mundial da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) no início dos anos 2000.
"A expressão 'perigo amarelo' (usada no Ocidente como designação preconceituosa contra o Leste asiático a partir do século 19) pode parecer datada, mas definitivamente vemos que algumas narrativas tradicionais contra os chineses continuam hoje — em particular na forma com que eles são estimatizados como bodes expiatórios em questões médicas", apontou em entrevista à BBC News Brasil o historiador Sören Urbansky, especialista em Rússia e China do Instituto Alemão de História em Washington, EUA.
"Na situação de agora (do coronavírus), algumas representações na mídia e falas de políticos ou pessoas comuns certamente têm paralelos no passado", diz Urbansky, citando como exemplo um cartum publicado por um jornal dinamarquês em que uma bandeira chinesa é formada por partículas representado o coronavírus.
"O mais preocupante em conteúdos como esse é a xenofobia que podem estimular entre pessoas comuns. Nas redes sociais, você pode encontrar muitas postagens e tuítes com avisos para que não se coma comida chinesa ou pedidos de proibição de viagens."
Urbansky é organizador do livro Yellow perils: China narratives in the contemporary world ("Perigo amarelo: Narrativas sobre a China no mundo contemporâneo", em tradução livre), lançado em 2018, ao lado do antropólogo Franck Billé, da Universidade da Califórnia em Berkeley.
Na introdução do livro, Billé destaca que há muito a Ásia representa culturalmente "o outro" para os europeus, o que é perpetuado na cultura ocidental também contemporaneamente pela preponderância dos EUA — como em papéis estereotipados nos filmes de Hollywood, cujo poder de influência é global.
Os chineses, por sua vez, foram muitas vezes representantes de estigmatizações relacionadas à Ásia como um todo. Mas, como os estudos da cultura não são uma ciência exata, o autor destaca que os ocidentais não têm "monopólio" dessas discriminações — elas variam de local para local e, inclusive, acontecem dentro das fronteiras da própria Ásia e China.
O livro traz capítulos de diversos autores, entre eles Christos Lynteris, antropólogo da medicina e professor na Universidade St. Andrews, no Reino Unido. Ele estuda especificamente aspectos sociais de epidemias e escreveu um capítulo sobre como, ao longo da história, surtos e doenças contribuíram para a estigmatização dos chineses.
"O surto do novo coronavírus trouxe de volta à tona a sinofobia (xenofobia contra a China) em formas veladas ou abertas. A mais nociva, talvez, como no caso anterior de Sars, seja o ódio digital e a difamação dos hábitos alimentares dos chineses", escreveu Lynteris à BBC News Brasil por email.
Um símbolo disso, diz o antropólogo, são os chamados wet markets ("mercados molhados"), usualmente caracterizados por vender animais vivos e abatidos no local — "um termo que não ajuda, porque abrange vários tipos de mercados", explica o antropólogo.
No início de janeiro, a própria China informou à OMS que os primeiros casos de coronavírus podiam ter ligação com um mercado de frutos do mar na cidade de Wuhan.
Lynteris critica o habitual retrato desses variados mercados na mídia ocidental, com imagens "destinadas a chocar o público" de animais apresentados como exóticos; que misturam capturas de diferentes mercados ao redor da China apesar das diferenças locais e culturais; e que excluem "a maior parte das atividades desses mercados, que seriam absolutamente familiares (aos ocidentais)".
"Essa é uma forma sutil, mas perniciosa, através da qual até a mídia mais esclarecida estimula a sinofobia: retratando os hábitos chineses de alimentação e consumo como em descompasso com a modernidade; como resquícios irracionais, nojentos e patogênicos de um passado obscuro", afirma, apontando que essa estigmatização contribui para uma pressão internacional pelo banimento desses mercados.
"O que é preciso é uma regulação melhor, mais intensa e baseada em evidências desses mercados, e não levá-los para a ilegalidade", diz.
O consumo de animais como cachorros, cobras e ratos atende a diferentes habitos culturais locais na China e podem ter finalidades tanto alimentícias quanto místicas. Estudiosos, porém, são cautelosos quanto ao alcance deste tipo de alimentação no país.
Nas redes sociais, inclusive no Brasil, circularam fotos e vídeos do que seriam sopas de morcegos consumidas em Wuhan — apontadas, nos boatos, como possível origem do novo coronavírus. Checagens profissionais posteriores mostraram, por exemplo, que uma dessas imagens era antiga e feita em outro país; tampouco foi encontrada comprovação de que alguma das imagens de sopa de morcego fosse verdadeira.
Inclusive, nada menos do que 35 cientistas, a maioria da China, publicaram nesta semana um artigo no Lancet, um dos periódicos de medicina mais importantes do mundo. No trabalho, eles frisam que não havia venda ou presença de morcegos no mercado de Huanan.
Estes animais entram, sim, na hipótese dos acadêmicos para a origem do coronavírus — comparando a sequência genética do vírus encontrado em humanos com uma "biblioteca" de vírus já sequenciados, os cientistas encontraram compatibilidade de 88% com coronavírus encontrados em morcegos.
No entanto, estes seriam hospedeiros do vírus, por sua vez possivelmente transmitido por algum outro animal ainda indeterminado e vendido no mercado de Wuhan.
Sobre a época do surto de Sars, Lynteris e Sören citam relatos de queda no comércio de imigrantes chineses em metrópoles ocidentais, como em Toronto, no Canadá (o país teve o maior número de casos fora da Ásia, com mais de 40 mortes).
Também houve casos de consumidores chineses saudáveis sendo impedidos de comprar ou se hospedar em acomodações pelo mundo; ou ainda a ilustração de reportagens sobre a síndrome com uma enxurrada de fotos de Chinatowns (bairros com muitos imigrantes chineses) e pessoas com traços asiáticos, ainda que estas não tivessem infecções.
A síndrome surgiu em 2002 na Província chinesa de Guangdong, ficando por meses desconhecida da comunidade internacional, o que motiva críticas à transparência do governo chinês até hoje. Com ápice em 2003, ela chegou a mais de 26 países e matou quase 800 pessoas ao redor do mundo.
Lynteris destaca que questões de saúde recentes como essa vão ao encontro de uma noção de crescimento, populacional e econômico, descontrolado da China. Outros estudos no livro Yellow perils: China narratives in the contemporary world apontam para uma "ansiedade" quanto ao poder da China, perceptível também na recorrência de palavras como "ameaça" em publicações científicas e leigas.
Mas, no passado, doenças e infecções eram associadas a uma outra imagem da China: a de decadência, aponta Lynteris.
No fim do século 19, uma terceira epidemia de peste bubônica teve início em Hong Kong (quando era parte do Império Britânico; hoje, ela é uma Região Administrativa Especial da China).
De acordo com o antropólogo, uma extensa bibliografia já mostrou como, nesse período, publicações da imprensa e relatos de médicos britânicos contribuíram para associar a doença às casas e aglomerações chinesas — inclusive em comunidades de imigrantes no exterior.
Somaram-se a isso pressões internas e externas contra a última dinastia imperial da China, a era Qing, vista por médicos coloniais como resistente à vacinação e associada a uma ideia de decadência da civilização chinesa e sua suposta resistência a se adaptar à modernidade.
Nas Chinatowns dos EUA, por exemplo, além de serem encarados pelos americanos como competidores em negócios e postos de trabalho, os imigrantes asiáticos passaram a ser relacionados a doenças.
"Estudo a história de várias comunidades da diáspora chinesa no Pacífico. Na virada do século 20, os imigrantes chineses eram vistos como mais perigosos do que outros grupos de imigrantes — não apenas na Califórnia, mas também em lugares como o Extremo Oriente russo", aponta Sören.
"Por exemplo, quando um surto (de peste bubônica) eclodiu em São Francisco em 1900, apenas os chineses foram colocados em quarentena. Naquela época, era bastante normal descrever os migrantes chineses como uma ameaça à segurança física da maioria (branca) da população."
"O que as pessoas daquela época ignoravam completamente eram vários fatores estruturais que eram as principais causas da miséria: os residentes chineses eram forçados a viver em certos guetos étnicos que muitas vezes eram negligenciados pelas autoridades."
"Penso que o perigo hoje é que as pessoas também tendem a ignorar problemas estruturais que certamente são diferentes daqueles do passado e, ao negligenciá-los, estigmatizam completamente o povo chinês."