segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

No rastro da barbárie

Foi uma semana macabra. Não tenho notícia de tanta violência num espaço fechado. O caminho dos policiais que entraram no presídio era marcado por pedaços de corpos, colocados como aviso. Na porta de um dos pavilhões, uma barricada de pernas, braços e cabeças. Vim para Manaus mais uma vez para aprender alguma coisa, mesmo que me traga tristeza pelo que ouviria e pelo baque na imagem externa do Brasil.

Recentemente, escrevi um artigo sobre o nosso sistema penitenciário, que me parece uma bomba-relógio. Lamentava um pouco o desinteresse com que o tema sempre era recebido, mas alertava que infelizmente os presídios falam por si próprios. No artigo, chamava a atenção para o fato de que, apesar da necessária discussão sobre as condições da cadeia, havia um fato mais recente que era o poder das organizações criminosas no interior dos presídios. O que vi agora foi uma demonstração disso. Em vez de serem neutralizadas, as organizações criminosas de uma certa forma são legitimadas dentro das cadeias.

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Aqui no Amazonas, a legitimação passou por várias etapas. A Família do Norte, que hoje esquarteja e faz coreografia com pedaços humanos, na eleição de 2014 foi contatada por um membro do governo para discutir apoio. O áudio vazou, o alto funcionário da segurança caiu. Quando a Polícia Federal fez uma grande e bem-sucedida campanha contra a organização, surgiram nomes de uma desembargadora e de um juiz que seriam aliados dos criminosos.

Precisei ouvir a empresa terceirizada que administra o presídio. Não a encontrei além dos humildes funcionários uniformizados. Ela se chama Umanizzare, recebe cerca de R$ 4,6 mil por preso, quase três vezes o custo no Sudeste. A empresa figura também como doadora de campanha política.

Os fatores locais, no entanto, não obscurecem a crise que o sistema vive em todo o país. Aqui em Manaus, uma organização do Norte quer esmagar o que considera invasores do Sul. Em Pedrinhas, no Maranhão, o conflito é de grupos da capital contra os do interior. E os conflitos, às vezes, repercutem nas ruas, na forma de sabotagem e queima de ônibus.

Além dos necessários investimentos que resolvam problemas elementares como a superlotação e a decadência das instalações, é preciso pensar no novo problema. Como recuperar o controle dos presídios e estabelecer a lei lá dentro? Sempre vi nesta questão uma das chaves para desarmar a bomba-relógio. Tenho insistido que o instrumento básico em qualquer projeto de controle é desenvolver o trabalho de inteligência nos presídios. O esquecimento da sociedade brasileira em relação ao problema é compreensível porque muitos acham que, uma vez presos, os criminosos deixam de ser um problema.

Na Inglaterra houve experiência de trabalho de inteligência que reduziu o crime dentro da cadeia. Aqui no Brasil, na década de 1990, cheguei a formular uma proposta para reduzir motins. Ela consistia apenas numa central de análise que receberia informes diários da situação do presídio. Muitos motins são previsíveis e evitáveis. Infelizmente não foi o caso do Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Havia uma previsão de motim, ainda assim ela se mostrou inevitável. As medidas de segurança foram afrouxadas na passagem de ano: as mulheres dos presos poderiam pernoitar e bastava apenas uma carteira de identidade para entrar. O governo federal nem sequer foi informado da situação de risco no presídio. Num esquema conectado isso seria impossível.

Não adianta trabalho de inteligência quando não se extraem os dados. Mais cabeças trabalhando com eles aumentam a chance de êxito. Ao encerrar meu programa de TV aqui em Manaus, escolhi como fundo a Cadeia Pública, um prédio de 1805 que estava destinado a ser um museu. Para ela foram trazidos os prisioneiros que precisavam ser retirados do presídio Anísio Jobim. Foi uma solução improvisada que dramatiza a decadência do sistema no Brasil. Voltar a 1805 é um alívio. Nas circunstâncias, significa um progresso. Em que época estavam aqueles corpos esquartejados e amontoados numa caçamba? Um esforço nacional para reconstruir o sistema penitenciário, por mais que existam divergências pontuais, é uma das mais importantes frentes contra a barbárie.

Há quem ache que os bandidos devam morrer mesmo e que esse caos provoca uma espécie de limpeza, através dos massacres. Falei com uma estudante universitária diante do Instituto Médico Legal. Ela procurava o irmão. Desejei que não estivesse lá, entre os mortos. Ela respondeu: eu preferia que estivesse. Os que falam apenas por opinião deveriam examinar o quadro no conjunto: alegram-se com 56 mortos e se esquecem dos 180 que fugiam no mesmo momento.

Essas bombas quando estouram atingem a todos, não importa o que você pense. Por isso é uma tarefa nacional renovar o sistema penitenciário.

Fernando Gabeira

Paisagem brasileira

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Georges Wambach

Pequenas grandes coisas

Num estudo incluído na coletânea “New Global Frontier: Urbanization, Poverty and Environment in the 21st. Century”, Luis Mora examina aspectos contraditórios da vida urbana com relação às mulheres.

Mora parte do óbvio: o ambiente urbano é o espaço por excelência para a reconstrução ou remodelagem das relações entre os sexos. Em plano geral, todo processo de urbanização traz vantagens e desvantagens no que diz respeito à busca da igualdade entre os sexos e ao fortalecimento da mulher.

Tais vantagens e desvantagens podem ser esquadrinhadas no que diz respeito à presença feminina no mercado de trabalho, às condições de vida da mulher, à sua família e à sua participação social.

Mas, como pano de fundo ou contexto geral, é preciso sublinhar que o planejamento urbano não prima por levar em consideração as necessidades das mulheres, especialmente no tocante à oferta de serviços públicos.

arte na rua:
Podemos ver isso no aspecto da mobilidade, por exemplo, fundamental para “a inserção social e econômica em ambientes urbanos”.

O planejamento urbano não costuma levar em conta as relações entre mulher e transporte. Ou, mais precisamente, entre classe social, mulher e transporte. E Mora lembra que estatisticamente, em países pobres ou “em desenvolvimento”, mais mulheres do que homens andam a pé – e mais mulheres do que homens dependem do transporte público.

No entanto, quase nunca vejo a mínima sombra de atenção para isso da parte do poder público. Atua-se como se as situações de homens e de mulheres fossem absolutamente idênticas, ignorando-se totalmente a realidade objetiva da vida citadina.

Por isso mesmo, quero aplaudir aqui – e citá-la como exemplo a ser adotado nas grandes cidades brasileiras – a lei municipal 16.490, aprovada e já regulamentada desde outubro, em São Paulo.

A lei garante, a mulheres e idosos, que os ônibus parem fora do ponto, especialmente para eles, entre as 22 h e as 5h. A razão é simples: protegê-los da violência que domina nossos centros urbanos. Protegê-los de assaltos, estupros, etc.

Isto nos mostra, mais uma vez, que podemos lidar com as cidades não apenas na dimensão macro, com grandes obras urbanísticas. Mas igualmente – e com eficácia – em escala menor, que envolve diretamente as pessoas.

E acho justo privilegiar mulheres e idosos. É claro que a violência não atinge somente eles. Mas um idoso, que vá ao chão num assalto, pode não se recuperar mais. E não tenho notícia de que marmanjos sejam currados com frequência em nossas ruas.

Um estranho fruto

Cantar na cerimônia de tomada de posse de um presidente americano costuma ser visto como um privilégio. Barack Obama, por exemplo, teve de fazer um complexo exercício de prestidigitação para acomodar os muitos artistas que o apoiaram durante a sua última campanha eleitoral, em 2013, e insistiram depois em participar na festa da vitória: Beyoncé cantou o hino nacional antes do juramento; Kelly Clarkson e James Taylor a seguir, e pelo meio ainda houve tempo para escutar Alicia Keys, Marc Anthony e Brad Paisley, entre outros. Mesmo os inimigos de Obama aplaudiram o show.

Este ano, contudo, ninguém quer cantar para Donald Trump. O empresário e novo presidente americano tem recebido recusas umas atrás das outras. Tantas que virou piada. A mais original, mais sarcástica e mais inteligente de todas estas recusas terá sido a da cantora britânica, de ascendência jamaicana, Rebecca Ferguson, a qual anunciou que sim, que aceitaria atuar na tomada de posse de Trump, mas apenas na condição de interpretar “Strange fruit”.

“Strange fruit” foi escrita por Abel Meeropol, um judeu comunista, que adotou os filhos de Julius e Ethel Rosenberg depois que estes foram executados sob acusação de espionagem a favor da União Soviética. Meeropol escreveu “Strange fruit”, no final da década de 30 do século passado, em homenagem a todos os negros linchados nos Estados Unidos. A canção tornou-se imensamente popular na voz de Billie Holiday. Mais tarde Nina Simone deu-lhe um novo fôlego — e que fôlego! — transformando-a numa espécie de hino do movimento pelos direitos cívicos.


A letra foi publicada pela “The New Masses” (revista marxista, muito próxima do Partido Comunista dos Estados Unidos), antes mesmo de ser musicada. Não se pense, contudo, que Meeropol escreveu um texto panfletário. Longe disso. “Strange fruit” é um poema de uma ironia triste e discreto desespero, que, por vezes, quase parece conformar-se com o próprio horror que denuncia. Passaram-se décadas e os versos de Meeropol (“Strange fruit hanging from the poplar trees / Pastoral scene of the gallant south”) não perderam nem um pouco do seu poder perturbador e da sua estranha luz.

Sinceramente, eu pagaria para ver a expressão na grande cara cor de laranja de Trump, ouvindo Rebecca Ferguson cantar “Strange fruit”. Por outro lado, talvez ele nem percebesse a ironia. Steve Bannon, esse sim, iria se retorcer na cadeira, incomodado. Trump podia até aplaudir. Nunca se sabe. O melhor de Trump é a imprevisibilidade. O pior também. A reação dele a todo este episódio de rejeição em série por parte da classe artística foi de puro deboche: fez notar que Hillary Clinton contou com o apoio de todos os artistas, e ainda assim perdeu.

Custa-me reconhecer, mas Trump tem razão. A sua vitória representou a derrota do mundo das artes e do pensamento. Fãs podem ser levados a comprar uma determinada marca de sapatos se a virem nos pés do seu cantor ou ator preferido, mas isso não significa que comprem também as suas ideias. As pessoas querem as canções dos seus artistas favoritos (e, vá lá, os seus sapatos, os seus cigarros, as suas calcinhas), mas não o seu pensamento. Os escritores são ainda menos relevantes. Nem sequer vendem sapatos.

Ingenuamente acreditei que a literatura seria um caso particular. Afinal de contas, quem compra um livro, compra ideias. Os livros teriam um poder transformador, que outras obras de arte dificilmente alcançam. A vitória de Trump tem-me feito reavaliar esta e outras certezas antigas. Os livros mudam o mundo? Sim, claro, alguns mudam — estão mudando. Basta pensar na Bíblia, no Corão, n’ “A origem das espécies”, n’ “O Manifesto Comunista”, em “Lolita”, n’ “Os versos satânicos” ou em “Dona Benta — Comer bem”. Mas mudar, infelizmente, não significa melhorar. Dos livros citados acima nem todos trouxeram paz e prosperidade ao planeta — muito pelo contrário. Não que sejam intrinsecamente maus. Acontece que muitas pessoas olham para os livros como para espelhos: não estão interessados em ver os outros neles (que é o melhor que um livro nos pode dar), mas apenas a si mesmas; não procuram o confronto de ideias, querem encontrar nos livros a confirmação dos seus próprios preconceitos.

No próximo dia 20, quando Donald Trump tomar posse, será uma loirinha de apenas 16 anos, Jackie Evancho, a cantar o hino nacional. Os restantes convidados incluem um coral mórmon, o Coral da Universidade do Missouri e uma companhia de dança de cabaré chamada The Rockettes. Prevê-se, pois, um festival de branquitude — e de decrepitude também. Se esta é a grande América triunfante de Trump, eu realmente prefiro a que perdeu.

José Eduardo Agualusa

Bem-vindo 2017

Nada temerei. Nada me apavorará. Dormirei, a cada noite, o sono dos justos. Acordarei disposto a sempre tentar: errarei e acertarei. Pois viver é experimentar, correr riscos. Disposto a aprender nos sucessos e fracassos. Aprenderei novas lições de vida. Serei desafiado por frustrações, que sempre virão. É a dor do crescimento. Inevitável. Quero amadurecer a cada dia, o sofrimento tem que ser transmutado em sabedoria. Terei alegrias. Que eu as deguste, intensa e profundamente.

Injetam entusiasmo e fé na vida. Passarão, mas me alimentarão para seguir a luta. Boa luta, pois, a cada dia, sua agonia. Tudo passa, fazemos história, a nossa história. Posso dar um tom de drama, tragédia, terror.

Mas adoro colorir e assim prefiro o romance. Continuarei a sonhar soluções, pois ver problemas é um vício. Cada vez reflito mais, falo menos. Pessoas querem ser ouvidas. Sonham por um ombro amigo, um colo, um cafuné de alma.



Quero ter tempo. Para meditar, observar, aprender. A natureza me instiga a ser curioso. Buscarei relaxar, pois essa é a porta para gerar prazer e alegria.

Desconectado já sou, mas aos poucos entendo a diferença de usar um meio não como fim.

Quero amar meu próximo como a mim mesmo. Em tempos de valorização das diferenças, busco o que tenho em comum com o outro.

Isso é comunhão, comunicação, comunidade. O que nos une, é ser humano. A humanidade é um conjunto de iguais. Sofro com os desvalidos, os que lutam pela vida. Em meio a guerras, pobreza, sem lar. Meus heróis anônimos. Anjos que partem numa nuvem de pólvora.

Mães que lutam até o fim descansarão, eternamente. Há uma justiça invisível e divina. Longe dos homens, da doença do poder e da ganância. Paz e serenidade me embalam, muito além de minhas imperfeições, pecados, fraquezas. Sei que morrerei incompleto, anônimo, falho. Aqui é uma morada para evoluir. Ou não. Um aprendizado em meio à beleza da natureza e à poluição civilizatória.

Olhar em torno e construir a cada dia minha realidade. Da pior à mais divina, afinal, o mundo é seu arbítrio. Nós vemos o que escolhemos ver. Do mais belo ao mais sórdido. Na minha janela da alma, a paisagem interage comigo. Sou solar, adoro cores. Colore minha experiência de viver. Meu horizonte busca o mar, a serra, o céu, a mata.

Sou roceiro, mateiro, neto do Zé Cocão do sertão mineiro. Cada vez preciso de menos, um dia bastará a simplicidade de nada querer, e, só então, serei provido.

Viajo sem pressa, sem peso, sem dor. Por enquanto caminho, mas sonho voar. Ver o mundo de cima, a Terra como um ser uno, uma célula de Deus.

Então, na minha desimportância, discretamente repousarei na morte, convicto de ser eterno. E habitarei a verdade. Por melhor ou pior que seja.

Colherei o que merecer. Não há nada a temer, essa é uma história que não tem começo nem fim. Tudo sempre existiu, só não sabíamos.Bendito o dia em que a parte descobre ser o todo.

Como disse, bem-vindo o novo ano que um dia envelhecerá. E renascerá, com número diferente. Vida e morte, começo e fim.

Tudo, absolutamente tudo, é uma ilusão.

Não se apegue, pois somos passageiros da transitoriedade.

Imagem do Dia

Hallstatt, Austria // Jacob Riglin:
Hallstatt (Áustria), Jacob Riglin

Que futuro nos aguarda

Interessa-me o futuro porque é o lugar onde vou passar o resto da minha vida
Woody Allen

Um prodígio, o presidente Michel Temer e seu time de auxiliares. Empenhados em marcar distância de mais uma erupção da bestial violência que há décadas abala o apodrecido sistema carcerário brasileiro, eles conseguiram com espantosa facilidade justamente o contrário.

Ninguém de bom senso ligaria o governo atual ao que aconteceu no Amazonas e em Roraima. Então o governo meteu com gosto o dedo na tomada.

Primeiro foi Temer, que chamou de “acidente pavoroso” a morte e o esquartejamento de 57 presos numa penitenciária próxima de Manaus. Acidente é um fato casual.

Num país onde mais de 60 mil pessoas são mortas a cada ano e 11 Estados registraram decapitações desde a rebelião do presídio de Pedrinhas, em São Luís, em 2013, acidente pode ter sido a ascensão de Temer à presidência – não a chacina de Manaus.

Não se atribua o que ele disse a uma mera infelicidade na escolha das palavras. Temer é um homem culto, prudente e pensa muito antes de falar.

Ao taxar um massacre de “acontecimento pavoroso”, quis isentar seu governo de qualquer responsabilidade e minimizar o acontecido. Foi duro, insensível, desastroso. Deixou-se levar pelo cálculo político mesquinho.


Depois de Temer, foi o ministro da Justiça. Além de apresentar um arremedo de plano para reformar o sistema carcerário sem dotação orçamentária e sem metas, negou que tivesse recusado ajuda ao governo de Roraima onde 30 presos foram decapitados ainda vivos e alguns tiveram corações e olhos arrancados.

O ministro mentiu. E mentiu de novo ao garantir que a situação dos presídios está sob controle. Controle de quem?

O caminhar voluntário do governo para o cadafalso na semana passada culminou com a intervenção do Secretário Nacional da Juventude que se apresentou como “um coxinha”, elogiou o “acidente” em Manaus e defendeu novas matanças.

Foi o único a ser demitido depois de incensado nas redes sociais. Mais de 50% dos brasileiros pensam como ele. E é aqui que reside o maior problema.

O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, estimada em 640 mil indivíduos. A maioria dela é negra (60%), jovem e só tem o ensino fundamental completo (75%).

Cerca de 40% dos detentos aguardam julgamento. Por inocente, um terço será libertado. A taxa de aprisionamento cresceu 67% entre 2004 e 2014. Anualmente, um preso custa ao Estado R$ 30 mil reais - 13 vezes mais do que um estudante.

A saída?

A mais simples, cara e destinada ao fracasso é a construção de presídios. O governo promete mais cinco até 2018. O crime agradece. Se a multiplicação de presídios bastasse, o planeta seria uma beleza.

Serão mais cinco fortalezas para abrigar com relativa segurança os principais líderes das 27 facções que lutam pelo comando do crime organizado no país. Serão mais cinco escolas para a formação de novos líderes.

O sistema penitenciário virou uma máquina de moer pobres e de produzir criminosos. Pagamos para que o Estado mantenha preso quem nos ameaça.

E como não ligamos para o que ocorre nas masmorras, pagamos outra vez quando de dentro delas partem as ordens que tornam nosso mundo cá fora cada vez mais violento.

No Rio Janeiro, cerca de dois milhões de pessoas vivem em áreas dominadas pelo tráfico de drogas e pelas milícias. Sob estado de exceção, portanto.

Enquanto não formos capazes de refletir e de chegar a um acordo sobre como proceder em relação à criminalidade, nosso futuro, o dos nossos filhos e dos filhos deles será cada vez mais incerto.

Ocupa Brasil

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Há 25 facções criminosas no Brasil, segundo o Estadão, no mesmo território ocupado por 35 partidos políticos

Porões da democracia

A cabeça humana, ao contrário da de tantos animais que a portam na horizontal, à frente do corpo, não precisa de um pescoço musculoso para sustentá-la. Nossa postura de bípedes permite que a carreguemos com leveza no alto da espinha dorsal. Mas isso nos tornou troféus mais fáceis de ser abatidos do que leões ou cervos, como registra a antropóloga britânica Frances Larson em “Severed: A History of Heads Lost and Heads Found” ( Decapitados: Uma história de cabeças perdidas e cabeças achadas).

O livro de Larson soma ciência e psicologia para historiar o espetáculo de degolas humanas através dos séculos — inclusive o ressurgimento da prática neste milênio, através das execuções perpetradas pelos jihadistas do Estado Islâmico, transmitidas online e minuciosamente coreografadas.

Da obra publicada na Inglaterra há mais de dois anos constam toda sorte de considerações sobre os motivos que levam alguém a decepar uma cabeça humana a título de troféu. Difícil saber a que conclusão a autora chegaria se visse o açougue humano no qual se transformou o sistema carcerário brasileiro, onde detentos adotam a decapitação como linguagem, resultante da inércia do aparelho do Estado e da indiferença da sociedade.

Ou, como já disse em 2015 o ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, no julgamento de uma ação proposta pelo PSOL declarando a inconstitucionalidade do sistema penitenciário brasileiro por violar os direitos fundamentais dos detentos, um “hiato de legalidade permite qualificar o próprio Estado como marginal no ordenamento jurídico, agente transgressor à legalidade”.


Três anos atrás, em 7 de janeiro de 2013, o jornal “Folha de S.Paulo” divulgou um vídeo de dois minutos e 32 segundos feito por detentos amotinados de Pedrinhas, a principal rede de presídios do Maranhão, que registrara 62 assassinatos entre presos nos 12 meses anteriores.

O filmete mostrava a comemoração do grupo com seus troféus de guerra intestina mais recente: três cabeças decepadas e seus corpos horrendamente torturados. Em off, ouvia-se alguém recomendar a quem segurava a câmera: “Tem que ajeitar o foco”.

À época, a governadora Roseana Sarney emitiu uma nota na qual considerou a divulgação do vídeo “repudiante”. “Ela fere todos os preceitos de direitos humanos e as leis de proteção aos cidadãos e à família (dos detentos mortos)...”, dizia a nota. Roseana, que estava na chefia do Executivo havia cinco anos, talvez preferisse que o inferno chamado Pedrinhas, sob sua custódia, permanecesse longe do noticiário.

Nova matança ocorreu entre domingo e segunda-feira passados, desta vez no Complexo Penitenciário Anísio Jobim e na Unidade Prisional do Puraquequara, de Manaus: 60 detentos mortos. Mais decapitações.

Diante de um país atônito e culpado, após cinco dias de silêncio sepulcral, o presidente da República, Michel Temer, se materializou mais cavernoso do que nunca: “Quero mais uma vez solidarizar-me com as famílias que tiveram seus presos vitimados nesse acidente pavoroso”, arranhou, junto com a tentativa de empurrar a responsabilidade pelas mortes à empresa que gerencia, a peso de ouro, os presídios no Amazonas.

E o anúncio de um novo Plano Nacional de Segurança, é claro. Mas antes que este fosse delineado pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, em Brasília, um solavanco já no dia seguinte, em Roraima. As primeiras informações da madrugada de sexta feira falavam de pelo menos 33 presos mortos na maior penitenciária do estado — 30 deles decapitados e alguns teriam tido o coração arrancado.

Dois meses antes, a mesma penitenciária — cuja capacidade é para 700 pessoas mas abriga 1.700 — já havia sido palco de um confronto que resultou em 11 mortes. Também com decapitações. E corpos incinerados.

Os dados desse retrato bruegeliano todos conhecem: uma pessoa é assassinada por dia em prisões do país. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás dos Estados Unidos, China e Rússia. No Brasil 42% dos presos são “provisórios”, ainda não foram julgados, enquanto a média nos países desenvolvidos é de 8%. E em Manaus, onde esse índice atinge 53% dos detentos, o repórter Thiago Herdy constatou que o Poder Judiciário segue um horário de expediente de seis horas diárias. Lei adquirida.

Desde a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito do Sistema Carcerário, de 2008, em que o colegiado visitou 82 presídios de 18 estados e concluiu que o sistema prisional estava falido, pretende-se estabelecer normas de separação de presos por tipo de delito e pena, inspeções mensais às carceragens, priorizar penas alternativas, acelerar a legislação processual.

A segunda, instalada em 2015, tinha objetivos quase idênticos, acrescida de um alerta à sociedade. Tampouco avançou, como se vê.

Quando o reluzente Alexandre de Moraes proclama “Vamos tentar algo diferente, vamos ousar”, como fez esta semana, ao anunciar que nos próximos seis meses serão informatizados todos os dados sobre os presídios, junto com as informações pessoais dos detentos e de seus processos criminais, soou um pouco como o secretário estadual de Justiça e Administração Penitenciária de Roseana Sarney em 2013.

Em meio à tempestade da matança em Pedrinhas, Uchoa anunciara que o governo estadual investiria R$ 131 milhões no aparelhamento do sistema maranhense e ergueria seis presídios em seis meses.

Os porões da democracia liberal estão revoltosos.

Dorrit Harazim

Um louco trio

Diana Krall, Willie Nelson e Elvis Costello 

Falta privatizar as Forças Armadas

Fica difícil informar quando começou a privatização das penitenciárias. Possivelmente no governo Fernando Henrique Cardoso, ainda que tudo viesse cercado de sigilo e só se concretizasse nas mãos de Aécio Neves em Minas. A iniciativa não contava com a simpatia da opinião pública, sempre cheirou a perigo, para não falar de corrupção. Assim o sociólogo recomendou silêncio, seguido pelo Lula e Dilma. Agora, a bomba estourou nas mãos de Temer, ainda que contra a sua vontade.


Isso porque a operação cheira mal desde o início. Grupos econômicos empenhados em faturar o máximo e oferecer o mínimo têm lucrado centenas de milhões. Por certo que separando vultosos percentuais nos períodos eleitorais, financiando mais de um candidato a governador nos Estados de onde tiram quantias milionárias. Até os meios de comunicação omitiram a lambança, só agora forçados pela natureza das coisas a expor as operações celeradas.

Trata-se de uma das maiores distorções do capitalismo. Ganhar dinheiro com a desgraça alheia, no caso das prisões, só perde para a prática de certos laboratórios farmacêuticos que carregam no preço dos remédios. Mesmo assim, os resultados se equivalem. A privatização das cadeias determinou o crescimento das quadrilhas envolvidas com o tráfico de drogas, além da transformação dos presos em animais. Também os remédios em alta permanente de preços terão levado muitos cidadãos à morte prematura por impossibilidade de adquiri-los.

Nos Estados Unidos, essa moda está em extinção, ainda mais porque o criminoso rico transforma sua cela em hotel de luxo, mediante pagamento extra às empresas encarregadas de administrar o conjunto. Aliás, aqui também, porque os chefes dos diversos grupos que vivem do tráfico oferecem churrascos, feijoadas e bailes de arromba a seus protegidos, em alas privilegiadas das prisões.

Seria o caso de o poder público cancelar todas as privatizações e terceirizações, ainda que depois dos recentes massacres seus dirigentes tenham começado a reagir, alegando que os governos não têm recursos para sustentar as prisões estatais. Só que é mentira, pois os Estados destinam horrores para a privataria tornar-se a verdadeira controladora das penitenciárias.

Em suma, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Caberia ao Congresso antecipar-se ao jamais concretizado Plano Nacional de Segurança. Proibir o ingresso da iniciativa privada na gestão dos estabelecimentos penais e ainda investigar o roubo nos contratos celebrados no país inteiro, para as devidas punições e o ressarcimento.

Como estamos no Brasil, ninguém se espante caso o governo Michel Temer dê início à privatização das Forças Armadas. Que tal o PCC financiar o Exército, o CV, a Marinha, e a Família, a Aeronáutica?

A origem do mal

As barbáries ocorridas na virada do ano em presídio de Manaus (AM), que se repetiram em Boa Vista (RR), depois de apenas cinco dias, não acontecem num país mediamente civilizado. O atraso do Brasil em termos civilizatórios se escancarou para o mundo com mais de 80 corpos mutilados, enterrados em covas rasas.

Não se tratou apenas de matar membros de facção adversária; o requinte de crueldade e o sadismo, como esquartejar, arrancar cabeça e coração dos executados, sinalizam as falhas civilizatórias que diferenciam o Brasil. Isso não acontece na Europa, no Japão, nos Estados Unidos, não existem condições para insanas explosões de crueldade.

O fenômeno não resulta apenas das condições atípicas de duas capitais da bacia amazônica brasileira, não é “acidente” isolado, como acenou o presidente Michel Temer, antes que o segundo extermínio confirmasse em Roraima a extensão do mal.

A monstruosidade explode num contexto coletivo degradado, estressado, falido, que fincou os alicerces da barbárie pela ausência de cuidados e de ações voltadas à atenuação das causas.


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Ficaram esculpidas neste começo de ano a insuficiência e a falência do mísero sistema social brasileiro, que relega expressivo contingente de indivíduos à miséria material e espiritual, sem oferecer perspectiva de progresso ou de vida minimamente decente.

Por que aqui, e não em outro país? Exatamente por existirem causas não enfrentadas, e talvez, mais ainda, pela falta de um despertar coletivo, dificultado enormemente pelo desrespeito das elites governantes com seus governados.

Embora o volume de reclusos já fosse gigantesco em 2004, com cerca de 330 mil indivíduos, até o ano de 2016 essa população carcerária dobrou para quase 700 mil. O Brasil ocupa, dessa forma, o quarto lugar no ranking mundial de reclusão, agravado pela superlotação, superior a 100% da capacidade oficial.

Os presídios daqui não são certamente modelos de recuperação dos condenados, não correspondem ao fim pontual de mitigação da criminalidade. Apenas a multiplicam e amplificam. São quase irrelevantes face ao contingente total. Cito um exemplo próximo: em minha empresa ocupamos durante oito horas 20 reclusos em trabalhos braçais remunerados, com os salários destinados às respectivas famílias; é pouco, mas ajuda a minorar sofrimentos.

Os dados compilados pelo ICPS (Centro Internacional para Estudos Prisionais, na sigla em inglês) descrevem um aumento de 100% dos detentos até 2030. Quer dizer, 1,5 milhão de indivíduos, com um custo unitário anual de cerca de R$ 70 mil. O Brasil gastará, assim, mais de R$ 100 bilhões para segregar a população condenada, uma quantia superior ao que a União destina à saúde pública.

Esses dados são pavorosos, considerando-se que apenas um em cada 15 criminosos vai para trás das grades; se for verdade como imagino, a banda da delinquência conta hoje com mais de 10 milhões indivíduos, ou 5% da população. Disso vem a escalada da criminalidade, que faz do cidadão um recluso dentro de sua casa para evitar os riscos de assaltos e violências.

Nesse desastre nacional podemos identificar duas colunas no portal de acesso ao crime: o baixo e insatisfatório nível de educação, não só escolar como familiar; o insuficiente desenvolvimento econômico, que redunda no desemprego. Com isso, na ausência de trabalho, que dignifica o homem nesta terra, conjugada ainda com as falhas educacionais, temos um fenômeno explosivo comparável ao estopim num barril de pólvora.

Pesaram também a migração de multidões da área rural e seu adensamento em ambiente urbano de baixa qualidade e sem estruturação. Os aglomerados periféricos, castigados por péssimos serviços públicos, foram embrutecidos pelo tráfico de drogas, e, na ausência de atitudes socializantes, a juventude é facilmente atraída e atingida pela violência e criminalidade.

Não existem vagas minimamente suficientes nas creches, que possibilitem às crianças as garantias alimentares, o preparo comportamental que as preserve de estragos que já em tenra idade as condenam ao analfabetismo funcional.

Mais ainda, não se encontram espaços de convivência sadia e de prática de exercícios físicos, de esportes, de acesso à cultura e a cursos profissionalizantes. A qualidade de vida das periferias é assombrosa.

O sistema carcerário não pode ser somente torturador, muitos dos crimes puníveis com a detenção deveriam ser limitados e direcionados ao serviço social, ao trabalho comunitário, à prestação de serviços que custam caro à sociedade. Não se justifica, como ocorreu na penitenciária terceirizada de Manaus, que R$ 5.800 por mês por recluso sejam miseravelmente desperdiçados.

Cegueira coletiva

Antes de conquistar Berlim, na Segunda Guerra, as tropas aliadas já conheciam o Holocausto, socorrendo nos campos de concentração milhares de judeus destinados ao fogo ou ao gás. Os oficiais da matança disseram apenas cumprir ordens. Mas o que mais espantou os aliados foi ouvir dos civis alemães que desconheciam aquilo.

Não, não tinham visto o transporte em massa de judeus. Não, nada tinham ouvido dos milhares de soldados dos campos de concentração, que, nas suas licenças, iam para suas casas em toda a Alemanha. Se algo o povo tinha visto ou ouvido sobre tais matanças, não acreditara ou não dera importância: afinal, Hitler era um gênio e teria lá suas razões.

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Felipe Lima 
O mesmo pensavam os brasileiros que, durante a ditadura militar, desculpavam as prisões, as torturas, exílios e assassinatos. Os militares tinham livrado o Brasil do comunismo e isso lhes dava salvo-conduto para fazer o que bem ou mal entendessem. Mas a ficha caiu: se em 1964 multidões foram às ruas nas Marchas com Deus pela Liberdade, que deram legitimidade civil ao golpe militar, em 1974 a maioria do eleitorado votou no partido de oposição, o então honrado MDB, assim começando a decadência da ditadura.

A mesma cegueira ideológica faz brasileiros – que, porém, se julgam honrados – desculparem ou negarem o que Dilma chamou de “malfeitos”, mensalão, petrolão e suas metástases sistêmicas. Roubaram? Mas foi para o partido, e os fins justificam os meios, conforme Lenin. Em nome dos trabalhadores, aliaram-se à escória moral do empresariado? Ah, outros partidos sempre fizeram isso, então os “guerreiros do povo brasileiro” merecem perdão automático. O desgoverno da esquerda gerou a crise que levou ao impichamento? Foi trama da direita golpista!

Para quem defende que a moral não é relativa nem flexível, é deprimente ver antigos companheiros de luta contra a ditadura, ainda ciosos e orgulhosos de serem “de esquerda”, compactuarem com quadrilhagem e crime organizado. É tragicômico defenderem o desgoverno corrupto que gerou 12 milhões de desempregados com o argumento de que tirou milhões da miséria.

Foi preciso que os julgamentos de Nuremberg expusessem a matança nazista para que os alemães de bem renegassem o nazismo na prática, com uma democracia respeitosa de todas as crenças e etnias. Mas se, conforme o poeta, de tudo fica um pouco, os neonazistas continuam a negar o Holocausto, preferindo acreditar e propagar que é invenção, golpe de ficção. Como há quem aqui vá para as passeatas pedindo a volta do regime militar, cegos a ponto de nem verem que nossos militares pegaram ojeriza de governar civis.

No fundo dessa alucinação coletiva, há o fato de que o poder cega quem nele está ou por ele luta. Quem não almeja o poder não se envolve com política, embora muitos nem por isso abdiquem de melhorar o mundo, participando de associações, cooperativas, voluntariado, num número talvez maior que o dos que orbitam os partidos e seus líderes.

No cerne da profissão (não da vocação) política estão o sentimento de se achar melhor que os outros e a visão de que os outros devem ser ajudados pelo político, que assim se sacrificará nos seus penosos mandatos cercado de mordomias, por isso merecendo mais que salariozinhos de vereador a senador.

Os países desenvolvidos se desenvolveram baseados numa maioria honesta de população e eleitorado, capaz de exigir Estado enxuto e produtivo, social sem populismo e com liberdade sem privilégios. Essa é a meta dos cidadãos de bem.

Os cegos ideológicos pensam estar na direita ou na esquerda, mas não: estão é por fora do processo político. Se tirassem as vendas da ideologia, veriam a falta que fazem no coro social que vê a crise como oportunidade, enfim, para as reformas indispensáveis e sempre postergadas pelos que chegam ao poder, porque não querem reformar para não perder o poder.

Mas é agora ou sabe Deus quando. Com a falência do atual sistema, enterrado na votação das leis populares contra a corrupção, a nação só conta com a cidadania para recuperação da democracia. Mas essa gigantesca tarefa não é vista pelos que, na esquerda, enxergam a democracia como atalho para o socialismo, ou os que, na direita, a vislumbram como evidência para a volta da monarquia ou da ditadura, ambos não conseguindo ver além do que é conveniente para seus projetos de poder, rale-se a nação.
As ideologias são doenças coletivas.