quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Bolsonaro sequestra Dia da Independência para salvar sua pele

O presidente Jair Bolsonaro parou de governar há muito tempo. Em três anos, sua gestão inaugurou alguns projetos locais de infraestrutura e flexibilizou normas sobre armamentos, provocando um forte aumento das compras de armas em um país já notoriamente violento. Fora disso, Bolsonaro representa a destruição da floresta amazônica, a gestão criminosa da pandemia que deixou até agora quase 600 mil mortos, a polarização da sociedade e os ataques mais graves à democracia do Brasil desde a Constituição de 1988.

Mas o que faz alguém que não tem nada a mostrar além de desastres? Sua aprovação nas pesquisas está caindo, pois os brasileiros estão sentindo na pele que a pobreza está crescendo, que os preços estão aumentando e que o real vale cada vez menos. A resposta de Bolsonaro é: procurar desculpas, desviar a atenção, mentir e culpar os outros.


Bolsonaro havia anunciado, com antecedência, que esse dia, o Dia da Independência do Brasil, seria o dia decisivo para ele e seu governo – e, indiretamente, ameaçou dar um golpe. Se um número grande de pessoas comparecesse, ele disse, seria um sinal claro de apoio do povo. E seria também um voto de desconfiança no Supremo Tribunal Federal, contra o qual ele está em conflito pois alguns ministros supostamente não o deixariam governar. Ele teria então um mandato das ruas, na sua interpretação, para ignorar o Supremo e o Congresso.

Bolsonaro não somente abusou do Dia da Independência do Brasil, que pertence a todos os brasileiros, mas também submeteu o Brasil a um teste de estresse por razões egomaníacas. O fato de milhares de brasileiros terem ido às ruas nesse feriado para pedir um golpe é insuperável como má ironia, e mostra o delírio coletivo que tomou conta do Brasil.

Para Bolsonaro, todo esse circo se trata, principalmente, de imagens e aparências. Assim como as "motociatas" sem sentido que ele vem organizando nas cidades do país há semanas – é realmente preciso se perguntar o que o presidente do Brasil faz com o seu tempo – as manifestações desta terça também foram realizadas para mostrar o suposto grande apoio do povo a Bolsonaro. Com base nas fotos de Bolsonaro no meio de milhares de apoiadores, ele pode afirmar, por exemplo, que as pesquisas com resultados negativos para ele são falsas, e que seu governo só perderá as eleições no ano que vem se houver fraude eleitoral.

Também é possível imaginar que essas manifestações se tornaram uma certa necessidade emocional para Bolsonaro. Quem não preferiria ser celebrado constantemente por seus apoiadores em vez de ler documentos e conduzir negociações difíceis, como faz a maioria dos outros chefes de governo no mundo.

O que é marcante em tudo isso é a compreensão distorcida do bolsonarismo sobre a democracia. Esse movimento a interpreta não como um equilíbrio entre os três Poderes, mas como a autocracia de Bolsonaro, ao qual tanto o Legislativo quanto o Judiciário teriam que se submeter. O próprio Bolsonaro ameaçou os ministros no Dia da Independência, que eles teriam que jogar dentro das quatro linhas da Constituição ou algo aconteceria – embora seja ele mesmo quem repetidamente se coloca fora do campo do jogo. Mas não é seu papel, de forma alguma, dar ultimatos a nenhum outro órgão constitucional. Pelo contrário, é o inverso. O presidente é fiscalizado pelo Judiciário e pelo Congresso. Dessa forma, ainda que tarde, um processo de impeachment deveria ser iniciado contra o presidente, pois há motivos mais do que suficientes.

É difícil avaliar o quão forte ainda é o bolsonarismo. O que é certo é que aqueles que ainda o apoiam são fanáticos. Como se fosse uma oração, eles repetem que são a favor de Deus, da nação e da família tradicional (e contra o comunismo, onde quer que ele esteja escondido). No Dia da Independência também ouviu-se a tríade bolsonarista de forma incessante. Deus, família, nação. Mas tanto Deus como família e nação não são projetos políticos, mas conceitos em aberto. A tragédia do Brasil é que eles foram sequestrados pelo bolsonarismo, que os utiliza para dividir a sociedade.

Isso ajuda o presidente a desviar a atenção da sua péssima performance e que ele realize seu verdadeiro objetivo: manter o poder e a proteção contra processos judiciais. Não se deve esquecer que o gatilho para a raiva de Bolsonaro foi a ação do Supremo contra políticos e youtubers que estavam incitando a violência. Além disso, o Judiciário está investigando os filhos de Bolsonaro por anos de corrupção, e as provas contra eles são avassaladoras. O próprio Bolsonaro também provavelmente será alvo do Ministério Público em algum momento. Pode-se assumir que suas constantes ameaças contra o Supremo são também uma tentativa de proteger seu clã político do Judiciário.

O presidente disse, literalmente, que é o salvador do Brasil enviado por Deus. Um presidente capaz de tais ilusões é também capaz de explorar o Dia da Independência em seu próprio benefício pessoal. O Brasil só pode esperar que Bolsonaro não cause mais danos ao país durante o resto do seu mandato. Ou que seja deposto o mais rápido possível.

O golpe começou

Quem conhece a história do fascismo italiano sabe a quantidade inumerável de vezes que Mussolini, em sua ascensão ao poder, foi dado como politicamente morto, isolado, acuado, fragilizado. No entanto, apesar das finas análises de comentaristas da vida política italiana, apesar das sutis leituras que pareciam ser capazes de pegar as mais inusitadas nuances, Mussolini, o bronco Mussolini chegou onde queria chegar. Isso ao menos deveria servir para lembrarmos da existência de três erros que levam qualquer um a perder uma guerra, a saber, subestimar a dedicação de seu oponente, subestimar sua força e, por fim, sua capacidade de pensar estrategicamente.


O mínimo que se pode dizer é que a oposição brasileira é exímia em praticar os três erros contra Bolsonaro e seus adeptos. Ela parece animada pela capacidade de tomar seus desejos por realidade, de justificar sua paralisia como se fosse a mais madura de todas as astúcias. Agora, a isso ela acrescentou uma patologia que, nos antigos manuais de psiquiatria, chamava-se “escotomização”, ou seja, a capacidade de simplesmente não ver um fenômeno que ocorre na sua frente. Mesmo tendo 600.000 mortes nas costas por negligencia de seu governo em relação à pandemia, Bolsonaro conseguiu um 7 de setembro para chamar de seu, com mais de 100.000 pessoas na Paulista e quantidade semelhante na Esplanada dos Ministérios.

Ele se colocou como o líder inconteste de uma singular sublevação do governo contra o estado, afirmando que não reconhece mais a autoridade do STF. Ou seja, ele assumiu para o mundo que está em rota de colisão com o que restou da institucionalidade da vida política brasileira. Seus apoiadores saíram desse dia com sua identificação reforçada e compreendendo-se como protagonistas de uma insurreição popular que de fato está a ocorrer, mesmo que com sinais trocados. Uma insurreição que mostra a força do fascismo brasileiro.

De nada adianta falar que essa manifestação “flopou”, que estavam presentes apenas 6% do esperado. Uma insurreição nunca precisou da maioria da população para impor sua vontade. Ela precisa de uma minoria substantiva, aguerrida, unificada e intimidadora, pois potencialmente armada. Bolsonaro tem as quatro condições, além do apoio inconteste das Polícias Militares e das Forças Armadas, que por nada nesse mundo, mas absolutamente nada irá deixar um governo que lhe promete salários de até 126.000 reais.

Aqueles que se comprazem acreditando que o verdadeiro apoio de Bolsonaro é 12% são os que normalmente fazem de tudo para que nós não façamos nada. Mas para quem quiser de fato encarar o que está a ocorrer no Brasil, não há nada mais a dizer do que “o golpe começou”. A manifestação do 7 de setembro marcou uma clara ruptura no interior do governo Bolsonaro. De fato, acerta quem diz que o governo acabou. Mas isso significa apenas que Bolsonaro pode agora abandonar a máscara de governo e assumir a céu aberto o que esse “governo” sempre foi, desde seu primeiro dia, a saber, um movimento, uma dinâmica de ruptura que se serve da estrutura do governo para ampliar-se e ganhar força.

Assim, ele pode fortalecer seu núcleo duro, transformar eleitores em fieis seguidores sem precisar ter entregue nada que um governo normalmente entregaria, sequer a proteção contra a morte violenta produzida por uma pandemia descontrolada. Nunca um presidente falou ao povo, em seu momento de maior tensão, que partilhava abertamente o desejo de romper e ignorar uma institucionalidade que é simplesmente a representação dos clássicos interesses oligárquicos das elites brasileiras.

Infelizmente, que o “povo” em questão era a massa dos que sonham com intervenções militares, que amam torturadores, que abraçam a bandeira nacional para esconder sua história infame de racismos e genocídios, isso era algo que poucos poderiam imaginar. Por outro lado, por mais que certos setores do empresariado nacional simulem desconforto com sua presença, o que realmente conta é que Bolsonaro entrega a eles tudo o que promete, sabe preservar seus ganhos como ninguém, luta por aprofundar a espoliação da classe trabalhadora sem temer o que quer que seja.

Não por outra razão, seu 7 de setembro foi precedido por manifestos de empresários defendendo a “liberdade”: nova senha para o “direito” de intimidação e de ameaça. Enquanto isso, a oposição brasileira acha que ainda estamos no terreno dos embates políticos. Ela prepara-se para eleições, finge sonhar com frentes amplas esquecendo que, desde o fim da ditadura, sempre fomos governados por frentes amplas e vejam onde chegamos. Todos os governos eram alianças “da esquerda à direita”. Não foi por falta de frente ampla que estamos nessa situação. O cálculo simplesmente não é este. A esquerda precisa entender de uma vez por todas a natureza do embate, ouvir aqueles mais dispostos ao confronto, esses que não tiveram medo de ir para a rua hoje, e assumir uma lógica de polarização. Isso implica que ela precisa mobilizar a partir da sua própria noção de ruptura, em alto e bom som. Uma ruptura contra outra. Não há mais nada a salvar ou a preservar nesse país. Ele acabou. Um país cuja data de sua independência é comemorada dessa forma simplesmente acabou. Se for para lutar, que não seja para salvá-lo, mas para criar outro.
Vladimir Safatle

Quem manda aqui sou eu

A querida colega Hildegard Angel do 247 tem razão. Não se viu ontem nas manifestações um soldado marchando, nem um evangélico cantando hino religioso. É uma constatação importante que vem a se juntar à minha reflexão. Bolsonaro está isolado e toda a sua pauta é individualista e sem propósito. O que ele defende? Nada coletivo.

Aliás, como ele mesmo prometeu, só defende a destruição. O discurso é todo feito no EU, jamais no NÓS. Não há projeto para o país, nem mesmo o econômico que era o que juntava alhos com bugalhos, ou seja, o mito com o Paulo Guedes e o Mercado. Acabou tudo. Pensando bem, de coletivo o projeto neoliberal não tem nada.

A população que ainda segue o mito (calculam em 20%) também pensa assim. Eles são aquele grupo que espera a atitude do salvador, do indivíduo, do deus, do mito, do guerreiro até do príncipe que vem salvar a população do monstro malvado. É o salvador de um lado e o demônio, mais justo ao estilo, do outro. O bem contra o mal. Deus e o diabo. O certo e o errado, o branco e o preto. Pátria e família. Tudo absoluto, nada relativo. Ele particulariza tudo para poder dar uma solução também particular. Não passa pela cabeça dessa gente nenhuma solução coletiva.

Eles acabaram com os sindicatos, com as ONGs, com as instituições culturais com qualquer projeto que pense na solução para muitos. Não se fala em fome, em pobreza, em trabalho. Nada que envolva mais de meia dúzia de pessoas. Não se fala em cultura, em saúde, em educação, nada que encha uma sala de aula, um museu ou um hospital. Nada. A pandemia não existe mais, a cultura também não, e a escola precisa ser reduzida a um colégio militar que ensina a disciplina, individualmente, cada um por si, obedecendo ao superior e não contestando suas ordens.



O que se viu ontem foi isso e as pesquisas mostram hoje no Globo o tipo de população que estava na Paulista. Classe média, ensino médio, de cor branca e maioria de homens. Nada mais médio. Nada mais individualista e sem ambições coletivas. A característica da classe média mais explorada pelo governo Bolsonaro é justamente a do cada um por si. Nada de se juntar ao vizinho. Melhor passar por cima dele querendo, por mérito próprio, chegar acima, o que quase nunca vai acontecer, do que se juntar a ele e juntos lutarem por algo melhor. Nada disso. Não há uma palavra de ordem coletiva e construtiva de alguma coisa. É só destruição e catarse a favor de um capitão marrento que grita exatamente o que o sujeito na rua quer ouvir. Não há nem confraternização entre os que ouvem. Um abraço, um sorriso. Nada. Só entre bandidos condenados. Selfies com o Queiróz têm para eles mais importância do que um programa de governo que vise melhorar a vida de todos. Eu sou amigo do bandido, do espertalhão, do transgressor. Eu prefiro avançar o sinal vermelho, não respeitar o radar de velocidade e não obedecer ao Supremo do que seguir as leis da sociedade, as decisões da justiça ou até mesmo os caminhos do Congresso.

O país deles é o país da não- política, da meritocracia, da segregação da malandragem e da esperteza. Nada que a democracia use em seus princípios. Bolsonaro não é um político incompetente, ele é um fascista perverso e é preciso que a imprensa oficial diga isso. A Globo, a CNN e os jornais ficam criticando o presidente como se ele fosse um político conservador que comete muitos erros, mas pode se redimir. Cada vez menos, é verdade, mas eles são incapazes de enquadrar o mito onde ele sempre esteve desde o começo e nós sabíamos. Ele sempre foi um militar medíocre que deu um jeito esperto e aliado a cúmplices inescrupulosos e outros inocentes acabou seu elegendo. Mas ele não quer nada com a política. Ele não sabe e não gosta. É preciso que ele seja chamado de tirano e fascista como sempre foi e tiranos fascistas não gostam de soluções coletivas. Gostam de aparecer cavalgando, andando de moto, discursando impropérios e debochando de tudo que é progresso social. Repete o “quem manda aqui sou eu” ignorando as regras do país que governa. Quem o aplaude também pensa assim. Nada é perfeito. Eles existem e Freud e Marx se juntam para explicar. Nada a esperar de Bolsonaro e quanto mais cedo a sociedade se convença disso, mais cedo voltamos a ser uma democracia.