quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Pensamento do Dia

 


O brasileiro sabe que nosso racismo é uma vergonha

Na semana passada a Folha de São Paulo publicou uma pesquisa sobre o racismo no Brasil, realizada pelo Instituto Peregum e pelo Projeto Seta, em parceria com o Ipec. O resumo: o país é racista para 81% dos brasileiros, mas apenas 11% afirmaram ter discriminado. Admite-se o preconceito racial coletivo, mas jamais o próprio. Racista é sempre o outro.

Mais alguns resultados: 66% já presenciaram violência verbal, 42% tratamento desigual (42%), 39% violência física; 17% dos entrevistados disseram ter sido alvo de situações desse tipo. 65% acreditam ser justo o racismo ser crime.

O que não surpreende é comparar esses dados com uma pesquisa do Datafolha de junho de 1995. 89% dos brasileiros afirmaram existir preconceito de cor contra negros no Brasil, mas só 10% admitiram ter pouco ou muito preconceito. O grande achado deste trabalho foi oferecer aos entrevistados algumas frases e perguntas. De forma indireta, 87% revelaram algum preconceito.


Hoje elas são defenestradas pelo espaço público, mas ainda residem em nosso imaginário e práticas. Alguns exemplos: “as únicas coisas que os negros sabem fazer bem são música e esportes”; “se um filho ou uma filha sua se casasse com uma pessoa negra, você não se importaria; ficaria contrariado, mas procuraria aceitar; ou não aceitaria o casamento?”, “na sua opinião, existem diferenças de inteligência entre brancos e negros?”

Evidentemente, muito mudou nesses últimos vinte e oito anos, graças aos esforços dos movimentos sociais, que derrubaram muitas portas trancadas e ocuparam espaços proibidos. Ainda que o resultado da pesquisa seja desanimador, o racismo é amplamente discutido na sociedade. O termo “racismo estrutural” é quase pop. Se a discussão cresceu, as desigualdades, porém, não se movem. Os espaços ocupados são escassos.

Outra grande diferença é o crescimento dos estudos sobre a branquitude, sua normatização e as estratégias para a manutenção de seus privilégios. Eco de precursoras como Cida Bento e seu trabalho sobre o pacto da narcísico da branquitude, publicado no início do século 20.

Há um medo de falar sobre racismo. Há um medo de falar sobre branquitude. É cutucar as entranhas de nossa identidade nacional cruel e escravocrata. É questionar as estruturas política e econômica através da história. É perceber que o Brasil é um espelho partido em que poucos querem encarar os afiados pedaços.

Letramento racial deveria estar na cesta básica, fazer parte do plano de saúde, ser pergunta na entrevista de emprego. Como ampliar essa discussão em um país que tem como política pública a formação de analfabetos funcionais. A luta antirracista continua, intrépida. Quem sabe teremos melhores notícias na próxima pesquisa.

Tarcísio, um governador extremamente satisfeito com 14 mortes

Você ficaria “extremamente satisfeito” se seu filho se formasse como primeiro da turma. E não consideraria “um excesso” se para isso ele atravessasse noites insones, a estudar. Era assim no meu tempo para quem pretendia ser aprovado no vestibular.

Dei sorte, estudei pouco, mas tirei nota máxima no quesito redação da prova de português, 10 na prova de história do Brasil, onde o forte eram perguntas sobre a invasão do país pelos holandeses, e eu havia pouco antes feito uma reportagem sobre o assunto.

Não lembro quanto tirei nas provas de história geral, geografia e francês. Mas lembro que a primeira foi sobre a 2ª Guerra Mundial (leio tudo a respeito até hoje). Fui um bom aluno de geografia e francês. Para minha surpresa, passei em segundo lugar.

O capitão e atual governador Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) formou-se em engenharia civil pelo Instituto Militar de Engenharia, tendo obtido a maior média histórica no curso da instituição. Isso deve tê-lo deixado “extremamente satisfeito”.


É de supor, porém, que não se destacou na área de ciências humanas. Do contrário, jamais diria ter ficado “extremamente satisfeito” com as 14 mortes provocadas pela Polícia Militar de São Paulo ao invadir por vingança uma favela no Guarujá.

Jamais diria também que o número de mortes não configura um “excesso”, e que as mortes foram “danos colaterais”, de vez que era preciso combater os traficantes de drogas. Em que lugar do mundo matar traficantes acabou com o comércio ilegal de drogas?

Traficantes não costumam enfrentar a polícia – tentam fugir para voltar quando ela vai embora. Se não voltam, se estabelecem em outras áreas. O Rio de Janeiro, onde Tarcísio nasceu, tem áreas permanentemente ocupadas por facções criminosas.

São Paulo, não. Guarujá fica pertinho de Santos, uma das cidades mais seguras e tranquilas do país. Em Santos, fica o maior porto do Brasil. É isso o que importa aos traficantes: eles querem paz para contrabandear drogas nos navios que saem de Santos.

Eleito governador do Rio em 2018 prometendo combater a corrupção e o tráfico de drogas, o ex-juiz Wilson Witzel (PSC) autorizou o abate de bandidos que usavam fuzis:

“A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo… Para não ter erro”.

À época, o Rio registrava 16 assassinatos por dia. A política de Witzel adiantou? Coisa alguma. Acusado de corrupção, ele se tornou o primeiro governador a ser afastado definitivamente do cargo por processo de impeachment na história do Brasil.

Tarcísio é mais um líder político a apelar para o discurso mentiroso de que são inimigos da polícia os que condenam a matança de inocentes geralmente pobres, negros e moradores de favelas. Quem mais consome drogas é quem pode pagar por elas.

Tarcísio paga o preço de nunca ter morado em São Paulo e de nunca ter disputado eleição nem para síndico de prédio. Elegeu-se governador graças a Bolsonaro. Quer herdar os votos dele para se reeleger e, mais tarde, candidatar-se a presidente.

Se necessário, um dia ainda poderá dizer que bandido bom é bandido morto.

Guarujá é o novo Jacarezinho

Ainda não se sabe quantas pessoas morreram no final de semana passado no Guarujá, durante a Operação Escudo. Depois do assassinato de Patrick Bastos Reis, soldado da Rota, na quinta-feira, centenas de policiais passaram os dias seguintes na cidade em busca dos responsáveis.

Mas, já na segunda-feira, havia uma pessoa bem satisfeita com os resultados da intervenção policial: "Eu estou extremamente satisfeito com a ação da polícia", disse o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, numa coletiva de imprensa em 31 de julho.

Naquela entrevista, Tarcísio falou de oito óbitos durante a operação, que o governador chamou de "profissional". Nas suas palavras, "nós temos uma polícia treinada e que segue à risca a regra de engajamento".


A defesa das ações policiais pelo governador soava absurdamente prematura, tendo em vista que a Ouvidoria da própria polícia tenha ouvido vários relatos de abusos dos policiais, de torturas e de execuções. O Ministério Público já está investigando os casos.

Como o governador podia, portanto, ter tanta segurança de afirmar o profissionalismo da sua tropa? Como podia ter certeza de que não havia "excessos", sem conhecer os resultados das investigações?

Na terça-feira, Tarcísio já falava em 14 mortes, enquanto o número de até 19 mortos circulava na imprensa. Parecia que Tarcísio teve que recuar frente às alegações, pelo menos um pouco. "Se houver excessos, vamos punir os responsáveis", prometeu o governador. Mas logo acrescentou que até agora não tinha chegado a ele nenhuma informação de que houve excessos. Mas, sim, efeitos colaterais: "Não existe combate ao crime sem efeito colateral".

Tarcisio já soa como Cláudio Castro, o governador do Rio de Janeiro, que chamou as 27 pessoas mortas pela polícia em maio de 2021, no Jacarezinho, de "vagabundos". Como no Guarujá, a polícia entrou na comunidade, naquele dia em 2021, depois de um policial ter sido morto por bandidos. E, aparentemente, com sede de vingança.

É da natureza humana um sentimento de vingança pela morte de um companheiro. Mas o estado e seus representantes não podem se deixar levar por tais sentimentos. Eles precisam agir de forma cautelosa e respeitar o direito de cada cidadão de ser considerado inocente até provar o contrário.

Sabemos que os policiais enfrentam, muitas vezes, bandidos altamente armados, e que os policiais têm todo o direito de se defender. Mas não são justiceiros, e sim profissionais, agentes do estado. Precisam ser um exemplo de civilidade em meio ao caos que reina infelizmente em muitos cantos deste país.

É ainda mais problemático que tanto Tarcísio como Castro aparentemente festejam as mortes dos "suspeitos". Igual ao ex-governador Wilson Witzel, que em 2019 celebrava a morte de um sequestrador com pulos no ar. Parecem torcedores da morte, esses homens que se apresentam como "quadros técnicos" e tanto falam em Deus.

O caminho do combate ao crime organizado não pode ser de se igualar ou até superar a brutalidade dos próprios bandidos. Mas de agir com uso de procedimentos de inteligência. No caso de São Paulo, com o uso das câmeras portáteis nos uniformes dos policiais, houve uma redução das mortes causadas pela polícia entre 2019 e 2022, de 697 mortes para 260.

Até que Tarcísio de Freitas veio do Rio para São Paulo com um discurso de tirar as câmeras novamente. Desde que ele assumiu o governo paulista, em janeiro, o número de pessoas mortas pela polícia aumentou, de 123 pessoas no primeiro semestre de 2022 para 155 no primeiro semestre deste ano.

Vamos torcer para que o carioca Tarcísio, que costumava andar na garupa de Bolsonaro, não traga maiores índices de letalidade policial para São Paulo. No Rio, a polícia matou, no ano passado, 1.327 pessoas. Em comparação, a letalidade policial no Rio tem sido 20 vezes maior que em São Paulo.