sábado, 1 de abril de 2023

Brasil continua desprovido de uma referência na educação

Passam-se os anos, os governos e os palpites e o Brasil continua desprovido de uma referência consistente na definição do que deve ser a educação brasileira. Desde que valores estranhos ao que é propriamente formativo foram afastados das referências de nossa concepção de educação, educar é cada vez mais difícil.

Estamos de novo em face de justos questionamentos a respeito dos rumos de nossa educação, as novas gerações inquietas com uma concepção de educação que separa a sala de aula da vida com ela é e como vai ser.

O Brasil é um país em que todos somos especialistas em tudo, também em educação. A escola concebida como oficina de formatação da mente para os modos de pensar de uma sociedade reduzida ao falso pressuposto da lógica da eficiência e do lucro como nortes da vida. E também o falso pressuposto de que o futuro das novas gerações está no empreendedorismo.


O que é estranho. Aqui a imensíssima maioria do povo não vive de lucro, vive de trabalho. E tampouco é um país eficiente, ineficiente em quase tudo que é. Aqui marcamos encontros e compromissos mais ou menos para tal hora. Diferentemente da Inglaterra, em que os ônibus têm horário de passagem por determinado ponto exatamente a tal hora e tantos minutos. Cuja precisão serve para os passageiros acertarem seus relógios. Empreendedorismo também falso. Porque, se fôssemos um país de empreendedores, o capitalismo brasileiro seria um capitalismo autêntico e eficiente. E não um capitalismo de exclusões sociais e desemprego, dependente de subsídios e favorecimentos, um capitalismo de precipício.

De ensino, quem entende mesmo é aquele professor que ensina aprendendo. São completamente falsos os pressupostos da educação brasileira, de que o professor sabe tudo e o aluno não sabe. A diversidade social e cultural deste país faz do aluno o portador de conhecimentos que o professor não tem, pois socializado em situações sociais outras e diferentes. A suposição de que o modo de viver e de pensar da classe média, que norteia as fabulações educativas de nossa educação burocratizada, é a referência apropriada para modernizar a educação brasileira, é antieducacional.

Embora não tão sofisticada nem tão “metida”, o Brasil já teve uma educação consistente e formativa, pensada por educadores, os conhecedores da educação na perspectiva dos elos e das conexões dela com a vida. A do professor com formação sociológica e antropológica para compreender o aluno como membro de uma sociedade diversificada, caracteristicamente transicional. A de uma população de milhões de pessoas vivendo em situações sociais de duplicidade e marginalidade cultural que lhes pedem o conhecimento dos códigos de referência desencontrados das várias sociedades que somos e das várias personalidades que somos obrigados a personificar.

Se a educação brasileira fosse pensada para trazer para a sala de aula a informação científica que permitisse explicar e decifrar esse Brasil, seria um país fascinante para o professor e o aluno! Justamente por essa diversidade de mundos que atravessa nosso cotidiano e nossos horizontes.

Em linha oposta à dessa realidade, nossa educação tende cada vez mais na direção da formação de personalidades homogêneas e vazias, sem desafios de criatividade, perdidas numa concepção retilínea da vida, quadrada, horizontal e sem graça, sem os desafios da rugosidade do mundo, de montanhas e abismos.

Nunca serão educativas as aventuras educacionais que fazem do estudante cobaia de um docente que é ensinador mas não professor, sem formação sociológica e antropológica. Seus alunos nunca terão condições de ter o conhecimento formativo que lhes permitirá desenvolver o que o sociólogo alemão Hans Freyer definia como autoconsciência científica da sociedade.

Único modo para se defenderem de um senso comum idiotizado e manipulado, um conhecimento minimizador da condição humana, cada vez mais difundido, cada vez mais inimigo da escola e do saber. A educação só o será se for uma educação emancipadora, que dê ao aluno a maturidade responsável de viver e agir como membro da sociedade e não como seu inimigo.

A educação brasileira não conseguiu se propor a questão mais importante no mundo de hoje, a da descoisificação dos seres humanos. Independentemente da classe social das famílias dos alunos, eles são cada vez mais vítimas das incertezas e das falsas alegrias de sua coisificação.

A educação que torna adolescentes em adultos precoces, que treina profissionalmente para empregos que não existem ou que vão deixar de existir na semana seguinte à da formatura, que ensina sem educar, abre para os alunos o futuro de descartáveis das incertezas do mercado de trabalho.

Dois golpes, com e sem ódio

Entre as muitas imagens do quebra-quebra dos bolsonaristas no dia 8 de janeiro, em Brasília, há uma sequência que me intriga sempre que a vejo. Começa pelo vagabundo que joga ao chão e destroça o relógio de dom João 6º, depois derruba o móvel e, dando-se por flagrado, atira os extintores contra a câmera no teto. Há nesse elemento um visgo de ódio contra algo que não sabe o que é, mas, para glória maior de seu líder, ele sente que precisa destruir. Equivale ao outro vândalo que estripou a tela de Di Cavalcanti —o mesmo rancor contra um objeto apenas porque ele não faz parte do seu mundo.


Mas a cena a que me refiro é a que se segue ao destruidor do relógio. Estamos agora no salão de um dos palácios sob ataque e vemos um homem que passa por uma mesa de tampo de vidro. Ele constata a existência da mesa e aplica-lhe um golpe de picareta que estilhaça o vidro. É um golpe rijo, desferido contra um objeto do inimigo —e, até aí, faz sentido. É o ódio. Mas o homem continua andando e, agora sem sequer olhar para a mesa, desfere-lhe mecanicamente mais um golpe.

Não sei o que havia naquela mesa. Imagino que objetos ou documentos preciosos sobre alguma passagem da história do Brasil, merecedores de exposição, mas frágeis ou valiosos a ponto de exigir a proteção de um vidro. O depredador bolsonarista, no entanto, é indiferente ao conteúdo da mesa. Vibra-lhe o segundo golpe já sem ódio e vai em frente. É destruir por destruir.

Fico a fantasiar como seria se Bolsonaro, antes de fugir para os EUA, tivesse se esquecido de recolher suas joias sauditas, seus Rolexes incrustados de diamantes, seus anéis, canetas e abotoaduras de ouro, e os deixado em algum recôndito móvel ou vitrine no Planalto.

Quase posso ver aquele depredador espatifando-os a martelo, burocraticamente, sem ódio, sem olhar, sem saber a quem pertenciam, só porque estavam no seu caminho.

1º de abril



Brasil, país do futuro
Stefan Zweig

'Stuart, o boi voador'

Chico Buarque de Holanda descreveu minha mãe como “ferida de morte e rindo”.

Sim, em meio à tragédia, enrolada aos panos pretos de seu luto ostensivo, Zuzu Angel soltava uma gargalhada. Não era desvario, era a disposição emuladora para a luta, que não a deixava sucumbir.

A cada nova escaramuça bem sucedida, ela vibrava em suas duas frentes de batalha.

A primeira, na busca do corpo de seu filho, de quartel em quartel, de porta em porta das autoridades, de nomes da imprensa, de qualquer pessoa que a quisesse escutar.

A outra frente era a de denúncia, no exterior, dos horrores praticados nos porões da ditadura brasileira.

Para isso, não havia limites. Desde se vestir de turista americana e conseguir chegar ao inatingível Henry Kissinger, no hotel Sheraton Rio, onde o Secretário de Estado americano era cercado por segurança máxima, a realizar um inédito desfile, até então no mundo da moda, de uma coleção de vestidos de protesto e denúncia política, em casa do cônsul-geral do Brasil em Nova York, Mario Soutello Alves, com presença de representantes das agencias de noticias mais importantes do mundo, Reuters, Associated Press, Tass e outras.

Quando retornava ao Rio de Janeiro, Zuzu elencava os troféus conquistados em sua guerra solitária para denunciar a morte de Stuart e que se parasse de torturar e matar jovens, nos cárceres militares do Brasil. E ria.

Assim como ria, quando chegava à sua loja glamurosa, e participava às clientes – “estou voltando das injeções para apagar as veias das pernas, porque, quando os gorilas me prenderem, das minhas varizes eles não vão rir”. Seria cômico se não fosse trágico.

Em meio ao sofrimento, Zuzu fazia as modelos, Elke Maravilha entre elas, desfilarem suas roupas alegres no ateliê, ao som do “Boi voador”, do Chico, e cantarolava junto “Quem foi, quem foi / Que falou no boi / Manda prender esse boi / Seja esse boi o que for”.

Era um deboche dos militares, chamados por ela de “milicos”, que proibiam ‘bois voadores’ de voar, imaginária e incontrolável manada, em que ela se incluía.

Mas, se, por um lado, com a repercussão de suas ações, Zuzu Angel conseguiu derrubar o Ministro da Aeronáutica da época, o Comandante da Força Aérea e o torturador de seu filho, o brigadeiro Burnier, logrando evitar novas mortes no Galeão e em outras instalações militares no Rio de Janeiro, minha mãe coragem não conseguiu a confirmação oficial do assassinato do filho, em 15 maio de 1971, do qual havia como evidência apenas uma carta do preso Alex Polari d’Alverga.

Assim, entre sucessivas negativas dos militares, chegando ao requinte de hipocrisia de julgarem Stuart à revelia, depois de morto, como se vivo estivesse, minha mãe morreu com uma esperança, mesmo recôndita, fugidia, de que tudo fosse um grande engano, de que Stuart permanecia vivo, foragido, em paradeiro não sabido, e apareceria à sua porta. Ah, como sonhou com isso!

À noite, ela balbuciava “Tuti, Tuti”, e eu, no meu quarto, que se comunicava com o dela, ouvia o lamento, sem poder confortá-la.

Na madrugada de 14 de abril de 1976, Zuzu Angel foi eliminada, numa emboscada comandada por um agente do governo brasileiro, coronel Freddy Perdigão, a partir de ordem dada diretamente pelo gabinete de Ernesto Geisel, segundo depoimento do agente do DOPS Claudio Guerra.

Exatamente 20 dias antes daquela data, em 29 de março de 1976, o oficial da Aeronáutica, Marco Aurélio Carvalho, lavrava num cartório em Caxias, no Rio de Janeiro, uma Declaração em que confirmava a captura, o interrogatório, as torturas e a consequente morte de meu irmão, Stuart Edgar Angel Jones, que ele próprio testemunhara e de que participara.

Apenas 52 anos depois, este documento seria revelado, na noite da última quinta-feira, 23 de março de 2023, quando fui alertada pela jornalista Chris Ajuz e pelo editor José Mario Pereira, dono da Topbooks, de que o leiloeiro Alberto Lopes anunciava, entre os lotes que iriam a pregão na internet no próximo 5 de abril, este documento histórico da maior gravidade.

Acessei o catálogo do leilão, sem conseguir coragem para ler a Declaração, o que não me impediu de agir.

Procurei a promotora Eugenia Gonzaga, casada com o jornalista Luiz Nassif, que me orientou sobre a necessidade de um mandado de busca e apreensão.

Enviei um What’sApp ao meu amigo advogado Carlos Roberto de Siqueira Castro, que eu julgava estar no exterior, e telefonei para o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro – Kakay, também pedindo seu auxilio.

Ambos acordaram que o melhor a fazer seria entrar em contato com o leiloeiro, como fez Kakay, e em seguida com o colecionador, que, sensibilizado, retirou o lote do leilão, dispondo-se a encaminhá-lo a nós. A compaixão existe.

Só na tarde de sexta-feira consegui forças para ler o documento. Revi meu irmão, na sua cortesia e doçura, deixar-se prender sem reação e, com sua firmeza e legitimidade, deixar-se torturar e matar, sem trair suas convicções políticas e seus ideais. Sobretudo, sem trair seus companheiros do MR-8, que confiaram a ele, apenas a ele, a missão de saber o endereço onde se refugiava Carlos Lamarca.

Não houve afogamento, choque elétrico, pau de arara, cadeira de dragão que o convencessem a trair a confiança de seus companheiros.

Não houve fumaça de óleo diesel que o fizesse falar. Queimando por dentro, com os pulmões assados, Stuart morreu sem pedir clemência. Pediu água, bateu asas e voou. Como um angel, como um boi voador.

O que fazer com Jair Bolsonaro?

Num mundo regido por uma ideia de Justiça platônica, Jair Bolsonaro teria sofrido impeachment pelos vários crimes de responsabilidade que cometeu e estaria na cadeia pelas múltiplas infrações penais comuns. Só que não vivemos neste mundo ideal; vivemos no Brasil mesmo. Nossa tarefa primordial agora é renormalizar a democracia. Demos o primeiro passo para isso ao negar, pelo voto, um segundo mandato a Bolsonaro, mas a tarefa está longe de concluída e ela é suficientemente complexa para gerar demandas contraditórias.

Para uma democracia funcionar, é preciso que o custo de deixar o poder não seja alto para os agentes políticos. Se o governante acha que ele será morto, preso ou comerá o pão que o diabo amassou depois de perder o cargo, fará tudo a seu alcance para que isso jamais aconteça. Na versão forte, isso significa dar golpes de Estado e recorrer a outras formas de violência; na light, violar as normas escritas e não escritas de condução de governo e de comportamento eleitoral para aferrar-se ao poder.


A contrapartida do baixo custo de o governante deixar o cargo é que, quando o ocupa, também tenha limitado seu poder de fazer o que bem entenda. A possibilidade de retorno, pelo voto, deve valer tanto para grupos como para programas políticos. O segredo sujo da democracia (leiam Adam Przeworski) é que, para ela dar certo, não pode promover mudanças muito radicais, daquelas que não tenham volta. É paradoxal, mas faz sentido.

Meter Bolsonaro no xadrez violaria o princípio do baixo custo, admito. Mas eu acredito que estejamos encalacrados numa fase anterior à da plena normalidade democrática. Precisamos deixar claro de uma vez por todas que assumir o poder não significa receber um cheque em branco. Se Bolsonaro não for punido pelos inúmeros abusos e delitos que cometeu, estaremos sinalizando para os políticos que, para ficar no poder, vale mais ou menos tudo.