domingo, 15 de janeiro de 2023
A guerrilha de extrema direita desafia o governo
O governo Lula atribui ao governo de Brasília o ônus sobre a falha e/ou omissão na contenção dos golpistas em 8 de janeiro. Permanece a dúvida se o governo Lula não podia ter previsto que o governo de Brasília era cúmplice do golpe. O serviço de inteligência desde cedo no domingo avisou que a Praça dos Três Poderes e os prédios públicos seriam atacados. E o Planalto não checou qual defesa estava efetivamente sendo organizada. Poderia exigir do governador uma contenção à altura. Caso contrário, por motivos óbvios, decretaria a intervenção federal preventiva na segurança, antes da invasão, e a teria impedido.
Hábito de psicanalista é notar incoerências em narrativas, mesmo fora do divã (psicanálise aplicada). Com efeito, perguntado se “o governo federal não confiou demais nas informações do governo do DF”, o interventor federal em Brasília — aliás um sujeito sério e competente —, Ricardo Capelli, respondeu:
— Você desconfia quando te dão motivos para desconfiar... As relações interfederativas se pautam pela confiança. A gente jamais imaginou que haveria uma operação desmonte da Secretaria de Segurança Pública. O que nos chegava eram informações dizendo que estava tudo bem, tudo certo, que a manifestação seria tranquila, que as tropas iriam garantir.
Ok. Mas isso em condições normais de temperatura e pressão, pois não? Sua explicação entra em contradição com o que o ministro Flávio Dino vem afirmando: que estamos vivendo um período excepcional, no qual as próprias instituições, inclusive militares, estão divididas e atravessadas por ideologias pessoais interferindo na atuação profissional dos funcionários públicos e militares.
Em tempo, nada contra Capelli, que está fazendo um excelente trabalho. E nada especificamente contra o governo recém-empossado, que ainda luta para se organizar. Aliás, o PT, por motivos políticos, é ruim de autocrítica, e ainda não fez um cálculo correto sobre o que lhe é mais danoso: reconhecer erros ou negá-los. O partido ainda deve à sociedade a diminuição de sua taxa de paranoia. Mas o governo não pode se permitir ter o mesmo sintoma, convém aceitar críticas — e aprender com a experiência, sem se sentir atacado e ameaçado por elas.
Não é preciso listar exemplos da guerrilha de extrema direita que atuou durante a ditadura militar, com uma série de violentos atentados, especialmente contra a cultura, cometidos por integrantes das próprias Forças Armadas. Deste subterrâneo emergiu o capitão Bolsonaro —ele próprio suspeito de planejar um atentado terrorista nos idos da década de 1980 — a pretexto de defender aumento dos soldos militares — e que veio a se eleger presidente da República, responsável por intimidações e ataques à democracia, e por milhares de mortes ao se omitir no combate à pandemia.
A sociedade brasileira permanece gravemente dividida após as eleições nas quais as forças democráticas venceram o obscurantismo. Dessa divisão, entre os inconformados do lado perdedor, há um braço estratégico e armado — civil e militar — disposto a prejudicar e derrubar o governo Lula e a democracia. Sua tática não será a guerra convencional, linear, anunciada. Nada de tanques ou sublevação de quartéis, mas uma guerra assimétrica. O elemento surpresa, como vimos no desmonte da defesa de Brasília, usará a tática de guerrilha, com cúmplices ocultos nas instituições oficiais e ataques inesperados e sorrateiros de toda espécie. O objetivo será tumultuar a vida dos cidadãos e aterrorizar toda a sociedade, prejudicar ainda mais a economia, criar o caos, para ensejar, agora sim, no fim da linha, uma intervenção militar.
O cenário descrito acima faz parte de conjeturas que usam elementos presentes em nossa História recente e calcula probabilidades lógicas. É suficiente para alertar as forças democráticas e advertir o governo para se preparar para uma guerra não convencional, assimétrica — uma guerra de guerrilha de extrema direita.
Hábito de psicanalista é notar incoerências em narrativas, mesmo fora do divã (psicanálise aplicada). Com efeito, perguntado se “o governo federal não confiou demais nas informações do governo do DF”, o interventor federal em Brasília — aliás um sujeito sério e competente —, Ricardo Capelli, respondeu:
— Você desconfia quando te dão motivos para desconfiar... As relações interfederativas se pautam pela confiança. A gente jamais imaginou que haveria uma operação desmonte da Secretaria de Segurança Pública. O que nos chegava eram informações dizendo que estava tudo bem, tudo certo, que a manifestação seria tranquila, que as tropas iriam garantir.
Ok. Mas isso em condições normais de temperatura e pressão, pois não? Sua explicação entra em contradição com o que o ministro Flávio Dino vem afirmando: que estamos vivendo um período excepcional, no qual as próprias instituições, inclusive militares, estão divididas e atravessadas por ideologias pessoais interferindo na atuação profissional dos funcionários públicos e militares.
Em tempo, nada contra Capelli, que está fazendo um excelente trabalho. E nada especificamente contra o governo recém-empossado, que ainda luta para se organizar. Aliás, o PT, por motivos políticos, é ruim de autocrítica, e ainda não fez um cálculo correto sobre o que lhe é mais danoso: reconhecer erros ou negá-los. O partido ainda deve à sociedade a diminuição de sua taxa de paranoia. Mas o governo não pode se permitir ter o mesmo sintoma, convém aceitar críticas — e aprender com a experiência, sem se sentir atacado e ameaçado por elas.
Não é preciso listar exemplos da guerrilha de extrema direita que atuou durante a ditadura militar, com uma série de violentos atentados, especialmente contra a cultura, cometidos por integrantes das próprias Forças Armadas. Deste subterrâneo emergiu o capitão Bolsonaro —ele próprio suspeito de planejar um atentado terrorista nos idos da década de 1980 — a pretexto de defender aumento dos soldos militares — e que veio a se eleger presidente da República, responsável por intimidações e ataques à democracia, e por milhares de mortes ao se omitir no combate à pandemia.
A sociedade brasileira permanece gravemente dividida após as eleições nas quais as forças democráticas venceram o obscurantismo. Dessa divisão, entre os inconformados do lado perdedor, há um braço estratégico e armado — civil e militar — disposto a prejudicar e derrubar o governo Lula e a democracia. Sua tática não será a guerra convencional, linear, anunciada. Nada de tanques ou sublevação de quartéis, mas uma guerra assimétrica. O elemento surpresa, como vimos no desmonte da defesa de Brasília, usará a tática de guerrilha, com cúmplices ocultos nas instituições oficiais e ataques inesperados e sorrateiros de toda espécie. O objetivo será tumultuar a vida dos cidadãos e aterrorizar toda a sociedade, prejudicar ainda mais a economia, criar o caos, para ensejar, agora sim, no fim da linha, uma intervenção militar.
O cenário descrito acima faz parte de conjeturas que usam elementos presentes em nossa História recente e calcula probabilidades lógicas. É suficiente para alertar as forças democráticas e advertir o governo para se preparar para uma guerra não convencional, assimétrica — uma guerra de guerrilha de extrema direita.
Bolsonarismo e estética do suicídio
Em seus dias de dor causam-me os homens
Tal pena, que nem posso atormentá-los
Johann Wolfgang von Goethe, "Fausto".
Todos nós vimos, durante a pandemia, um aspecto do bolsonarismo que não pode ser classificado de outra coisa senão de suicida. Ao militar pela liberdade irrestrita – uma distopia sem respaldo no real –, o séquito militava pelo seu direito de morrer. Semelhante ocorreu no 08 de janeiro, uma pulsão niilista pela morte, a destruição tornada estética. E isso não é coincidência.
A essa altura, poucos discordam das aproximações do bolsonarismo com o nazi-fascismo. Caso não no plano programático, ao menos no estético. Entre vários elementos em comum, um se destaca: a tanatofilia. São movimentos que têm, em seu âmago, uma pulsão pela morte. E isso se aplica não apenas aos inimigos desumanizados, mas até mesmo à sua própria seita. A morte se torna tão estetizada quanto a política em si, desejável, um passo natural para alcançar o imaginário clássico do guerreiro mítico. Uma morte em favor do que é visto como um bem maior, o que aparece no lema dos Squadristi, “Me ne frego” ou, em tradução livre, “Não me importo”; ou, ainda mais, no dos falangistas “Viva la muerte!”.
Em sua doutrina, publicada dez anos depois da Marcha Sobre Roma, Benito Mussolini diz com todas as palavras que morrer pela Itália é um mal necessário para levá-la à grandeza. O belicismo é tão fundamental ao regime que afirma que a paz “é hostil ao fascismo”.
Assim como o bolsonarismo, o nazi-fascismo surgiu como uma religião capaz de mobilizar um séquito, mobilizado por um ressentimento melancólico, ao suicídio coletivo. O líder, como um messias – coincidência fortuita e sintomática este ser o segundo nome de Jair – atua contra o vácuo e fornece um sentido, uma causa em comum, uma explicação para frustrações e ressentimentos. Grupos específicos, aquilo que Hannah Arendt denominou “inimigos objetivos”, são escolhidos como culpados para as frustrações dessa massa de ressentidos, que se tornam progressivamente agressivos e dogmáticos. Não importa o inimigo – podem ser judeus, comunistas, LGBTQ+ –, importa apenas que existam, que se tenha um alvo para mobilizar paixões e ódio. Tanto pior se houver uma crise econômica e um desejo de retorno a um passado idealizado.
O nazi-fascismo não somente não encontra seu fim junto de Hitler e Mussolini, como evolui para novas vestes e se mantém, ainda que enfraquecido, mesmo na era da democracia liberal do pós-guerra. E aflora quando as condições se mostram favoráveis. Adorno e seu grupo de pesquisa já haviam percebido e tratado disso no livro Personalidade autoritária, quando apontaram que “fascismo não era um episódio isolado, mas estava presente de forma latente em amostras da população norte-americana”. Como um animal preso em uma coleira, que reage agressivamente quando solto. Ou, como diz Rob Riemen, o “filho bárbaro da democracia de massas”.
Mesmo o maior dos autoritários sempre se afirmará democrata. Qualquer trabalho que lide com pessoas e se relacione com democracia, como se sabe, deve evitar questões diretas sobre apoio a democracia. A parcela de antidemocratas assumidos é ínfima, quando comparada aos com uma personalidade autoritária adormecida, capazes de aderir ao autoritarismo se as condições se mostrarem favoráveis.
Por mais que explicitamente autoritários para nós, os bolsonaristas que invadiram Brasília no último dia 08 de janeiro se veem como os verdadeiros defensores da democracia. É paradoxal, e certamente demagógico, mas Jair Bolsonaro e seus súditos se enxergam não como autoritários em si, mas como paladinos responsáveis por resgatar uma democracia tomada por forças autoritárias e degeneradas. Um autoritarismo para acabar com o autoritarismo, portanto. A violência do real, contra uma violência do ficcional. Para isso, o messias, que se afirma perseguido, desloca seus soldados para marchar ao som de “Viva la muerte!”. Dos falangistas a Benito Mussolini, o bolsonarismo evidenciou ser herdeiro direto de uma tradição política messiânica e suicida.
Em 1938, os integralistas, enxergando o Estado Novo como traição, organizaram um levante contra Getúlio Vargas. Plínio Salgado afirmou, pelo resto de sua vida, não ter sido responsável pela manifestação. Acusou o movimento de ter sido contaminado e infiltrado por parcelas da esquerda. Permaneceu submisso ao Estado Novo, mesmo depois de preso e de seu autoexílio. Da mesma forma, os Bolsonaro negam qualquer participação, e chegam ao ápice de apontar, sem provas, uma suposta infiltração da esquerda. Enquanto os peões se movem para o abate, o pastor permanece em sua torre, em segurança, negando qualquer responsabilidade sobre suas ovelhas, mesmo após soltá-las e alimentá-las.
Terrorismo é crime bárbaro, não ato político
Os invasores das sedes dos três poderes republicanos no domingo 8 de janeiro não podem ser tratados por seus defensores no parlamento, no Supremo Tribunal Federal (STF) ou nas mídias clássicas de comunicação ou da internet como manifestantes em protesto. Todos os que participaram da barbárie de 2023, inédita na história das democracias no mundo inteiro, são reles terroristas, praticantes de crimes comuns contra as instituições e a cidadania. Com a autoridade de quem julgou crimes da Máfia italiana, cujo histórico revelou no livro Máfia, Poder e Antimáfia, premiado no Jabuti deste ano, o desembargador aposentado de São Paulo Walter Maierovski escreveu artigo em sua coluna no UOL desmascarando os quadrilheiros que tentam esconder-se nas togas da Justiça da própria democracia, que tentaram e ainda não desistiram de derrubar, para se dizerem mártires da agressão à liberdade de expressão, o que não tem nenhuma razão de ser. São marginais a essa lei e têm de ser tratados com direito de defesa, mas com rigor, para não continuarem disseminando ódio, terror e desídia.
O então e sempre capitão Jair Messias Bolsonaro é uma espécie de falso santo padroeiro dessa desordem bárbara. Em 1986, publicou artigo na revista semanal Veja reclamando dos baixos soldos constantes das folhas de pagamento do nada glorioso Exército Nacional. Em seguida, procurou a repórter Cássia Maria, intermediária na publicação do texto, para dar conta de um atentado que planejava conjuntamente com o capitão Fábio Passos plantando bombas em quartéis e num aqueduto do Guandu, pelo qual o Rio de Janeiro é abastecido de água potável para a população. A revista publicou a história com os nomes dos candidatos a seguidores de Netchaiev. Como relata no excelente livro O Cadete e o Capitão, o grande jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, mesmo tendo o atentado sido frustrado pelas autoridades militares, o ex-presidente, condenado a 30 anos de prisão no quartel, terminou absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) com oito votos egressos da ditadura o inocentando ao aceitarem o argumento de que uma perícia teve dúvidas sobre a autoria dos croquis dos atentados, embora outro laudo a confirmasse. O acórdão surrealista da Justiça Militar lhe permitiu seguir carreira política por 30 anos como vereador e deputado federal por município e Estado do Rio. Chegou à Presidência da República, na qual passou quatro anos, prazo durante o qual trocou a denúncia da baixa remuneração pela pregação mentirosa da falsidade das contagens de votos das eleições democráticas pelas urnas eletrônicas.
A dois dias da posse da chapa vitoriosa da aliança PT-PSD, fugiu para a Flórida para escapar de possíveis implicações suas no atentado contra a lei e a ordem praticado por extremistas de direita fascinados por seu discurso e suas decisões toscas, a que se convencionou chamar de “bolsonaristas”. Antes disso, faltou ao expediente no Palácio do Planalto em prazo considerado mais do que suficiente para ser enquadrado pelos comandos militares no crime de deserção, conforme depoimento reiterado de seu ex-secetário de seu governo, o general Santos Cruz. Que também se lembrou da caracterização do abandono de serviço de qualquer emprego privado, justificando no caso demissão por justa causa.
Ainda livre do alcance da lei, na companhia de seu ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, observa ações similares à que não conseguiu realizar com o colega Fábio Passos na invasão bárbara, escatológica e injustificável do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e da sede do STF. Enquanto usa o visto de entrada nos Estados Unidos pela falta de atitude do democrata Joe Biden e de iniciativa do Itamaraty sob nova administração, arrisca a chance de que algum atentado mafioso como o do dia 8 dê resultado positivo, já que o malogro deste ainda não resultou em pena pesada para seus financiadores, participantes e propagadores de sua canalhice, tratada como manifestação heroica de liberdade de seus sequazes. No mínimo, ao seu lado, Torres, já condenado à prisão por nove dos onze ministros do STF, ainda se beneficia da atitude de cautela excessiva do presidente Lula e de seus ministros José Múcio Monteiro, da Defesa, e Flávio Dino, da Justiça e da Segurança Pública. Sem falar na omissão indisciplinada do comandante das tropas do Exército, encarregadas de protegerem os próprios do alto poder republicano, general Gonçalves Dias, que do poeta romântico só tem mesmo a repetição do sobrenome.
A ainda tíbia, embora suficiente para abortar o golpe propriamente dito, reação do governo eleito, diplomado e empossado pelo TSE, sob o comando felizmente firme e corajoso do ministro do STF Alexandre de Moraes, deixa no ar impressões preocupantes. A demora em assumir atitude sobre os foragidos na Flórida autoriza quem defende o “sem anistia” para eles a não contar com o processamento legal da responsabilidade de ambos do malogrado pronunciamiento. A Polícia Federal encontrou um projeto de consequências golpistas lavrado em português e forma jurídica deficientes e basbaques. Seu estilo porco, sem culpar os suínos por suas loucuras, utilizado na destruição das sedes dos poderes da República, não nos deve convencer que tudo não passou de uma aventura de terroristas alucinados, sujos e malvados. O documento se insere na tradição de destruição do aparelho estatal, praticada de forma infame em ministérios fundamentais, como os da Saúde e Educação, que pode ser investigada com um mínimo de capacidade operacional para se chegar aos autores com meros exames grafológicos de melhor qualidade do que os empregados pelo STM no fim do século passado.
A gentalha que transformou a republiqueta num chiqueiro fedorento e infestado de miasmas e micróbios deve ser apenada. Tudo precisa, pelo menos deveria, ser saneado com a competência e a ousadia de Oswaldo Cruz e com a transformação de Lula da Silva num novo Pereira Passos e num Rodrigues Alves revivido. Alguém que saiba ler neste governo precisa tomar conhecimento imediato da primorosa biografia do ex-presidente paulista, escrita pelo gênio do mineiro Afonso Arinos de Melo Franco. Li-a na adolescência e a considero um autêntico vade mecum da boa gestão pública e da competente e republicana utilização da política do povo, pelo povo, para o povo e com o povo.
O então e sempre capitão Jair Messias Bolsonaro é uma espécie de falso santo padroeiro dessa desordem bárbara. Em 1986, publicou artigo na revista semanal Veja reclamando dos baixos soldos constantes das folhas de pagamento do nada glorioso Exército Nacional. Em seguida, procurou a repórter Cássia Maria, intermediária na publicação do texto, para dar conta de um atentado que planejava conjuntamente com o capitão Fábio Passos plantando bombas em quartéis e num aqueduto do Guandu, pelo qual o Rio de Janeiro é abastecido de água potável para a população. A revista publicou a história com os nomes dos candidatos a seguidores de Netchaiev. Como relata no excelente livro O Cadete e o Capitão, o grande jornalista Luiz Maklouf de Carvalho, mesmo tendo o atentado sido frustrado pelas autoridades militares, o ex-presidente, condenado a 30 anos de prisão no quartel, terminou absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) com oito votos egressos da ditadura o inocentando ao aceitarem o argumento de que uma perícia teve dúvidas sobre a autoria dos croquis dos atentados, embora outro laudo a confirmasse. O acórdão surrealista da Justiça Militar lhe permitiu seguir carreira política por 30 anos como vereador e deputado federal por município e Estado do Rio. Chegou à Presidência da República, na qual passou quatro anos, prazo durante o qual trocou a denúncia da baixa remuneração pela pregação mentirosa da falsidade das contagens de votos das eleições democráticas pelas urnas eletrônicas.
A dois dias da posse da chapa vitoriosa da aliança PT-PSD, fugiu para a Flórida para escapar de possíveis implicações suas no atentado contra a lei e a ordem praticado por extremistas de direita fascinados por seu discurso e suas decisões toscas, a que se convencionou chamar de “bolsonaristas”. Antes disso, faltou ao expediente no Palácio do Planalto em prazo considerado mais do que suficiente para ser enquadrado pelos comandos militares no crime de deserção, conforme depoimento reiterado de seu ex-secetário de seu governo, o general Santos Cruz. Que também se lembrou da caracterização do abandono de serviço de qualquer emprego privado, justificando no caso demissão por justa causa.
Ainda livre do alcance da lei, na companhia de seu ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, observa ações similares à que não conseguiu realizar com o colega Fábio Passos na invasão bárbara, escatológica e injustificável do Palácio do Planalto, do Congresso Nacional e da sede do STF. Enquanto usa o visto de entrada nos Estados Unidos pela falta de atitude do democrata Joe Biden e de iniciativa do Itamaraty sob nova administração, arrisca a chance de que algum atentado mafioso como o do dia 8 dê resultado positivo, já que o malogro deste ainda não resultou em pena pesada para seus financiadores, participantes e propagadores de sua canalhice, tratada como manifestação heroica de liberdade de seus sequazes. No mínimo, ao seu lado, Torres, já condenado à prisão por nove dos onze ministros do STF, ainda se beneficia da atitude de cautela excessiva do presidente Lula e de seus ministros José Múcio Monteiro, da Defesa, e Flávio Dino, da Justiça e da Segurança Pública. Sem falar na omissão indisciplinada do comandante das tropas do Exército, encarregadas de protegerem os próprios do alto poder republicano, general Gonçalves Dias, que do poeta romântico só tem mesmo a repetição do sobrenome.
A ainda tíbia, embora suficiente para abortar o golpe propriamente dito, reação do governo eleito, diplomado e empossado pelo TSE, sob o comando felizmente firme e corajoso do ministro do STF Alexandre de Moraes, deixa no ar impressões preocupantes. A demora em assumir atitude sobre os foragidos na Flórida autoriza quem defende o “sem anistia” para eles a não contar com o processamento legal da responsabilidade de ambos do malogrado pronunciamiento. A Polícia Federal encontrou um projeto de consequências golpistas lavrado em português e forma jurídica deficientes e basbaques. Seu estilo porco, sem culpar os suínos por suas loucuras, utilizado na destruição das sedes dos poderes da República, não nos deve convencer que tudo não passou de uma aventura de terroristas alucinados, sujos e malvados. O documento se insere na tradição de destruição do aparelho estatal, praticada de forma infame em ministérios fundamentais, como os da Saúde e Educação, que pode ser investigada com um mínimo de capacidade operacional para se chegar aos autores com meros exames grafológicos de melhor qualidade do que os empregados pelo STM no fim do século passado.
A gentalha que transformou a republiqueta num chiqueiro fedorento e infestado de miasmas e micróbios deve ser apenada. Tudo precisa, pelo menos deveria, ser saneado com a competência e a ousadia de Oswaldo Cruz e com a transformação de Lula da Silva num novo Pereira Passos e num Rodrigues Alves revivido. Alguém que saiba ler neste governo precisa tomar conhecimento imediato da primorosa biografia do ex-presidente paulista, escrita pelo gênio do mineiro Afonso Arinos de Melo Franco. Li-a na adolescência e a considero um autêntico vade mecum da boa gestão pública e da competente e republicana utilização da política do povo, pelo povo, para o povo e com o povo.
A patologia brasileira e seus remédios
Sem doutrina, sem partido e com aversão à política, aí está o fascismo à brasileira dando as caras nesse infausto 8 de janeiro com seus personagens decaídos, vindos de acampamentos nas proximidades de quartéis militares confiando que contariam com sua adesão ao seu movimento. Convictos em suas crenças mágicas, acreditavam que a promoção do caos com a tomada pela força da praça dos Três Poderes e das instalações físicas do poder republicano bastariam, mesmo que sem plano, aos seus propósitos de instalar um governo de exceção, que lhes cairia nas mãos por efeitos do jogo de dominó em que o caos se difundiria irresistivelmente até a ascensão ao poder do personagem a quem atribuíam qualidades míticas, que, aliás, não deu as caras nesse levante de pátio dos milagres.
Tais eventos, inéditos aqui e em toda parte do mundo conhecido, não duraram mais que poucas horas, contidos os tresloucados, homens e mulheres de todas as idades, vindos de todos os cantos do território nacional, conduzidos à prisão sem maiores resistências, mas deixando em seus rastros uma ação destrutiva que segue doendo na autoestima dos brasileiros com a profanação de obras da sua cultura e da sua civilização.
Resta desse desastre humano um patrimônio a ser penosamente reconstruído, e bem mais que isso, identificar as raízes imediatas e as profundas a que se prendem a fim de remover a insânia e as marcas e do mal que se abriga em nossa sociedade que ainda conserva as marcas quasímodas da nossa formação a partir da grande propriedade rural escravista. Os acontecimentos extraordinários que nos abalaram, e ainda abalam, devem ser estudados pela ciência social, brasileira e estrangeira, para o que se conta não só com abundante material, mas também por uma detida investigação nas motivações dos autores, boa parte nas prisões, que se enredaram em suas práticas.
Como se diz, não se deve passar um pano nesse tétrico episódio e seguir adiante. A história do país doravante, para seguir seu curso ou decifra corretamente o que acaba de lhe ocorrer ou sucumbirá as flores do mal que germinam em seu ventre. Apuração implacável de suas causas, responsabilização dos que insuflam por palavras e atos a pregação fascista e a recusa da democracia como projeto de país, deve ser o compromisso inegociável de todos os que se opõem à barbárie que ronda a nossa vida em comum.
As altas cortes do Judiciário têm dado respostas adequadas aos crimes que foram praticados, mas isso não basta, somente da política podem proceder as ações que tenham em mira o ovo da serpente que se esconde numa sociedade de massas fragmentária, desorganizada e com seus integrantes isolados uns dos outros. A ênfase na questão social que tem caracterizado os inicios do governo Lula- Alkmin certamente é positiva, mas não pode, como se tem reparado até aqui, permanecer restrita a intenções reparadoras do Estado diante de uma sociedade absenteísta, esperando de cima que seus direitos lhe sejam concedidos. Sem partidos que a representem, sem sindicatos e movimentos sociais ativos, sem lugar e meios por onde possa experimentar seus atos de fala, arriscamo-nos a reiterar o perverso itinerário que foi a base de partida para a tragédia política que ora temos de superar.
Durante quatro anos, dia a dia, fomos testemunhas de ações liberticidas que intencionavam abater quaisquer laços orgânicos em nossa vida comum, negando-se realidade fática à existência dessa coisa chamada de sociedade. O fascismo e sua pregação neoliberal das hostes bolsonaristas só admitiam o indivíduo isolado, mônada de interesses privados somente postos em ordem pela intervenção mítica do chefe da nação. Nesse sentido, havia algo de misticismo no chienlit brasileiro de 8 de janeiro, em que uma massa de indivíduos ignaros, à falta física do seu chefe, tentou baixar o seu espírito como num culto religioso a fim de realizar a obra que lhe cabia no sentimento de todos. Bolsonaro encarnou, assim em unção mística, a depredação em que cada manifestante em êxtase destruía um ícone nacional.
Os alemães, depois de 1945, solenemente prometeram que sua tragédia nacional não mais se repetiria, e conseguiram. Seremos capazes do mesmo?
Tais eventos, inéditos aqui e em toda parte do mundo conhecido, não duraram mais que poucas horas, contidos os tresloucados, homens e mulheres de todas as idades, vindos de todos os cantos do território nacional, conduzidos à prisão sem maiores resistências, mas deixando em seus rastros uma ação destrutiva que segue doendo na autoestima dos brasileiros com a profanação de obras da sua cultura e da sua civilização.
Tjeerd Royaards (Holanda) |
Resta desse desastre humano um patrimônio a ser penosamente reconstruído, e bem mais que isso, identificar as raízes imediatas e as profundas a que se prendem a fim de remover a insânia e as marcas e do mal que se abriga em nossa sociedade que ainda conserva as marcas quasímodas da nossa formação a partir da grande propriedade rural escravista. Os acontecimentos extraordinários que nos abalaram, e ainda abalam, devem ser estudados pela ciência social, brasileira e estrangeira, para o que se conta não só com abundante material, mas também por uma detida investigação nas motivações dos autores, boa parte nas prisões, que se enredaram em suas práticas.
Como se diz, não se deve passar um pano nesse tétrico episódio e seguir adiante. A história do país doravante, para seguir seu curso ou decifra corretamente o que acaba de lhe ocorrer ou sucumbirá as flores do mal que germinam em seu ventre. Apuração implacável de suas causas, responsabilização dos que insuflam por palavras e atos a pregação fascista e a recusa da democracia como projeto de país, deve ser o compromisso inegociável de todos os que se opõem à barbárie que ronda a nossa vida em comum.
As altas cortes do Judiciário têm dado respostas adequadas aos crimes que foram praticados, mas isso não basta, somente da política podem proceder as ações que tenham em mira o ovo da serpente que se esconde numa sociedade de massas fragmentária, desorganizada e com seus integrantes isolados uns dos outros. A ênfase na questão social que tem caracterizado os inicios do governo Lula- Alkmin certamente é positiva, mas não pode, como se tem reparado até aqui, permanecer restrita a intenções reparadoras do Estado diante de uma sociedade absenteísta, esperando de cima que seus direitos lhe sejam concedidos. Sem partidos que a representem, sem sindicatos e movimentos sociais ativos, sem lugar e meios por onde possa experimentar seus atos de fala, arriscamo-nos a reiterar o perverso itinerário que foi a base de partida para a tragédia política que ora temos de superar.
Durante quatro anos, dia a dia, fomos testemunhas de ações liberticidas que intencionavam abater quaisquer laços orgânicos em nossa vida comum, negando-se realidade fática à existência dessa coisa chamada de sociedade. O fascismo e sua pregação neoliberal das hostes bolsonaristas só admitiam o indivíduo isolado, mônada de interesses privados somente postos em ordem pela intervenção mítica do chefe da nação. Nesse sentido, havia algo de misticismo no chienlit brasileiro de 8 de janeiro, em que uma massa de indivíduos ignaros, à falta física do seu chefe, tentou baixar o seu espírito como num culto religioso a fim de realizar a obra que lhe cabia no sentimento de todos. Bolsonaro encarnou, assim em unção mística, a depredação em que cada manifestante em êxtase destruía um ícone nacional.
Os alemães, depois de 1945, solenemente prometeram que sua tragédia nacional não mais se repetiria, e conseguiram. Seremos capazes do mesmo?
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