segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Pensamento do Dia

 


A direita explosiva quis voltar

As delinquências confessadas por George Washington de Oliveira Sousa, gerente de um posto de gasolina no Pará, militante acampado diante do Quartel General do Exército, em Brasília, mostram que ele pretendia praticar um ato terrorista na capital. Pelo plano, explodiriam um caminhão de combustível nas proximidades do aeroporto. Outra bomba interromperia o fornecimento de energia de Taguatinga. Assim, dariam “início ao caos que levaria à decretação do estado de sítio”.

Bomba num pátio, corte de energia, caos... Mark Twain já ensinou: A História não se repete, mas rima.

Oliveira Sousa está preso e revelou ter articulado o crime com pelo menos três pessoas. Esse atentado, impedido pela ação da polícia civil de Brasília, bem como inúmeras ameaças, injetaram tensão na festa da posse do presidente Lula.



Nos anos 60 e 70 do século passado, o país teve um terrorismo de esquerda, com o sequestro de quatro diplomatas estrangeiros e a morte de dezenas de pessoas. Foram executados um empresário, um delegado, um capitão do exército americano e um major alemão, confundido com um capitão boliviano. A ditadura enfrentou esse surto com desproporcional violência. A tortura tomou-se política de Estado e foi seguida por uma diretriz de extermínio.

Em 1981, extinto o surto terrorista e dois anos depois da anistia, explodiu uma bomba no colo de um sargento do DOI do I Exército (atual Comando Militar do Leste). Ele acompanhava um capitão, seu superior. Era o atentado do Riocentro. Se as coisas corressem como se supõe que havia sido planejado, aquela bomba explodiria no estacionamento enquanto outra, jogada na estação de energia, cortaria a luz do show que se realizava no pavilhão. O episódio do Riocentro provocaria um caos e, quem sabe, levaria à decretação de medidas de emergência.

(A bomba que explodiu no colo do sargento matou-o, ferindo o capitão. A da estação de energia falhou.)

Passaram-se 41 anos, o capitão foi para a reserva como coronel. Na cena da bomba atirada contra a casa de força estava o coronel da reserva Freddie Perdigão Pereira, lotado no Serviço Nacional de Informações. Na tarde de 31 de março de 1964, o então tenente Perdigão foi mandado ao Palácio das Laranjeiras com um tanque, para proteger o presidente João Goulart. Ele morreu em 1996 durante uma cirurgia. Até hoje prevalece a versão de que nenhum militar tinha a ver com as explosões.

A “Explosiva” detonou a direita

A prisão de Oliveira e Sousa e sua confissão recomendam que se revisite o terrorismo de direita. Ele foi beneficiado pela impunidade, mas foi revelado, à fartura, por alguns de seus personagens. Nada melhor que a leitura de “A Direita Explosiva no Brasil”, de José Argolo, Kátia Ribeiro e Luiz Alberto Fortunato. Publicado em 1996, contém uma coleção de depoimentos, com o coronel Alberto Fortunato como um de seus principais personagens.

Fortunato esteve em inúmeros episódios da anarquia militar da segunda metade do século XX. Na década de 1960 ele participou de cerca de 30 atentados. Articulava-se com colegas, empresários e políticos.

Em 1962, Fortunato preparou uma bomba com dez bananas de dinamite, deixadas no pavilhão de São Cristóvão, onde havia uma exposição de produtos da União Soviética. Militares que souberam do plano temeram que morresse gente e avisaram ao governo do Rio. Seis anos depois, o coronel atirou uma bomba na porta do Teatro Glaucio Gil, em Copacabana. Nele realizavam-se assembleias de artistas.

A essa altura Fortunato ligara-se a oficiais que serviam no Centro de Informações do Exército, o CIE, e a Hilário Corrales, um comerciante de madeira do Estácio, que se tornaria um bom amigo do major Freddie Perdigão, então lotado no CIE.

Durante o ano de 1968, antes da decretação do Ato Institucional nº 5, o grupo em que estavam oficiais do CIE explodiu 20 bombas no Rio.

O coronel Luiz Helvécio da Silveira Leite, do CIE, recordou o atentado contra o teatro Opinião:

“Foi tentado deixar uma bomba de retardo dentro do teatro, para explodir após a sessão. Eles estavam com uma vigilância muito aguçada sobre nossos agentes, que nem podiam se mexer. Optou-se então pela destruição total. Numa madrugada de chuva, com algumas cargas ocas e coquetéis molotovs, destruímos o teatro.”

Em 1970, o núcleo terrorista onde estava Fortunato pôs duas bombas na casa onde funcionava a redação do semanário O Pasquim e depois disso adormeceu.

Acordaram em 1976. Sequestraram um bispo, explodiram bancas de jornais, puseram uma bomba na porta da CNBB e outra na casa do jornalista Roberto Marinho, dono das Organizações Globo.

Em 1980, uma carta-bomba matou a secretária do presidente da OAB e, no DOI, alguém teve a ideia de explodir a casa de força do Riocentro. O oficial que chefiava a seção de operações do destacamento vetou o projeto.

Em abril de 1981, a ideia renasceu e, segundo o coronel Fortunato, Hilário Corrales fez a bomba que explodiria no colo do sargento.

Corrales fugiu para São Paulo, voltou ao Rio e morreu em julho do ano seguinte. Seu caixão foi levado por dois generais reformados e um oficial fez um inflamado discurso à beira do túmulo. No fim da vida, Corrales foi assistido pelo coronel Freddie Perdigão

O livro “A Direita Explosiva no Brasil” lista 32 atentados praticados entre 1968 e 1980 pelos grupos do coronel Fortunato e dos oficiais do CIE. Com o do Riocentro, são 33.

Nenhum desses atentados teve a autoria desvendada, mas tratava-se de um segredo de Polichinelo. Em três meses, o detetive particular Bechara Jalkh identificou a origem do explosivo e os autores do atentado à casa de Roberto Marinho. Comandantes militares da época e generais do Palácio do Planalto sabiam quem fazia o que. Uns achavam que lhes convinha, outros acreditavam que aquilo passaria, pois era coisa de “radicais sinceros”. (Uma carta identificando o automóvel do qual saiu o cidadão que explodiu uma banca de jornais foi engavetada.)

As bombas do Riocentro abalaram o regime e a disciplina das Forças Armadas. Foram necessárias décadas para recolocar a imagem dos militares no devido lugar.

Se o primeiro atentado da “Direita Explosiva” tivesse sido investigado e seus autores punidos na letra da lei e dos regulamentos, o Brasil, a Justiça e as Forças Armadas teriam lucrado.

2023

Depois de quatro anos de tensões inúteis e administração errática, o Brasil vive hoje a festa da democracia com a posse do presidente eleito.

A qualidade de um governo só se avalia quando ele começa a funcionar. Como ensina o professor Delfim Netto:

“Hoje começa a lua de mel do novo presidente com o poder. Amanhã, segunda-feira, ele terá que abrir a quitanda às nove da manhã com berinjelas para vender a preço razoável e troco na caixa para atender a freguesia.

Pelos próximos quatro anos a rotina essencial será a mesma: abrir a quitanda, com berinjelas e troco.

Todos os desastres da economia brasileira deram-se quando deixou-se de prestar atenção na economia da loja.”

De que serve a bondade

De que serve a bondade

Quando os bondosos são logo abatidos, ou são abatidos
Aqueles para quem foram bondosos?

De que serve a liberdade
Quando os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Quando só a sem-razão arranja a comida de que cada um precisa?

Em vez de serdes só bondosos, esforçai-vos
Por criar uma situação que torne possível a bondade, e melhor;
A faça supérflua!

Em vez de serdes só livres, esforçai-vos
Por criar uma situação que a todos liberte
E também o amor da liberdade
Faça supérfluo!

Em vez de serdes só razoáveis, esforçai-vos
Por criar uma situação que faça da sem-razão dos indivíduos
Um mau negócio!
Bertold Brecht

A despedida inglória do capitão fracassado

Uma fascinante obra-prima renascentista pintada há mais de 500 anos pelo holandês Hieronymus Bosch mora no segundo andar da ala Richelieu do Museu do Louvre, em Paris. Batizado de “Nau dos insensatos”, o quadro a óleo sobre madeira é parte original de um tríptico que acabou separado ao longo dos séculos. Dizem os estudiosos que a “Nau” de Bosch foi inspirada na pena satírica de um humanista alemão do mesmo período, Sebastian Brant, que escrevera em verso uma paródia da Arca de Noé. Na alegoria de Brant, o mundo era a nau, e seus habitantes/viajantes não se importavam para onde eram levados. Agiam desprovidos de razão, inclusive o capitão — se é que havia um a bordo.

Na tela de Bosch há dez passageiros amontoados numa embarcação à deriva, além de dois outros já náufragos. Ninguém parece fazer coisa com coisa: uma freira toca alaúde, um beberrão vomita, outro rema com uma concha de cozinha, uma mulher golpeia um quase afogado com uma jarra. Pendurada na vela mestra, vê-se uma suculenta ave assada, e o mastro em forma de árvore abriga uma coruja, símbolo de maus augúrios na Idade Média. O desenho de uma lua crescente na bandeira da embarcação parece remeter à raiz latina da palavra lunático. Como um todo, a tela exprime o comentário social de Bosch sobre o viver de sua época. Ao retratar um grupo de loucos de esgar atormentado, perdidos no mar da vida, sem freios morais nem rumo, o quadro também poderia ilustrar os bolsões de brasileiros agarrados a pneus e mitos. Como não comparar a “Nau dos insensatos” aos últimos suspiros do governo Jair Bolsonaro?

A última live do presidente, poucas horas antes de sua fuga oficial rumo a Orlando em avião da Força Aérea Brasileira, foi patética. Mas bem ensaiada. Em 52 minutos, ele mentiu quanto quis e omitiu o que pôde. Voltou a questionar o sistema eleitoral e falou em “derrota parcial”. Acovardado pelo cerco judicial que se estreita contra ele e sua família, procurou desvencilhar-se de atos terroristas praticados em seu nome. Justificou o sumiço e a falta de apoio público à nau disposta a abraçar qualquer sinal de golpe militar; e qualificou os apoiadores radicalizados de “pacíficos” e “ordeiros”.

O procurador-geral da República, Augusto Aras, talvez definisse o teor da derradeira live do presidente em fuga como “momento de cognição incompleta”. Os seguidores mais extremistas do “mito” o tacharam de frouxo, enquanto outros tantos simplesmente inventaram nova teoria conspiratória: na ausência do capitão, o cavernoso general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, assumiria o golpe. Numa outra nau de insanidade bolsonarista, o hasteamento a meio pau da bandeira nacional, decretado como parte do luto nacional pela morte de Pelé, chegou a ser festejado como sinal de que o ansiado golpe militar estava finalmente em marcha. Tristes trópicos.

Para quem, em 1974, assistiu à humilhante partida da Casa Branca do presidente americano, Richard Nixon, obrigado a renunciar para evitar o impeachment, a saída à francesa de Bolsonaro entrará para a História como mais degradante ainda, por comezinha. Nixon teve a hombridade de encarar presencialmente a imprensa que o derrubou e permitiu que a História registrasse seu amargo embarque rumo ao exílio do poder. Bolsonaro, sendo quem é, manda dizer a seus 58 milhões de eleitores que vai dar um tempo — gozará um período sabático no estado trumpista da Flórida. “Sabático” é termo de uso frequente no mundo acadêmico para designar uma pausa no trabalho. É comum aproveitar essa suspensão da rotina para ampliar o conhecimento, engatar novos projetos ou simplesmente pensar melhor. Difícil imaginar que algo de produtivo ao bem comum brote na mente de Jair, agora cidadão comum, durante esse “sabático”. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, em 1.460 dias de mandato presidencial, Bolsonaro trabalhou 73 apenas meio período, participou de 63 motociatas e deu-se o direito de 15 períodos de férias ou feriadões fora de Brasília. Sem falar no abandono das funções por dois meses a partir da derrota eleitoral mal digerida.

É provável que, pelos cânones da necropolítica aplicada por Bolsonaro no Brasil democrático, a perda de poder seja por ele sentida quase como uma condenação à morte. Isso porque o presidente em fuga jamais compreendeu que a política não é uma profissão — ela deveria ser, no mundo ideal, a dedicação temporária de alguém a sua comunidade. Em missas fúnebres celebradas por igrejas cristãs, réquiem é sempre a primeira palavra do ritual dedicado ao repouso da alma de quem partiu. Não houve e não deverá haver réquiem na despedida inglória desse capitão fracassado. Ele deverá, primeiro, acertar suas dívidas com a nação que desmantelou para que o Brasil readquira, a partir deste domingo 1º de janeiro de 2023, o direito de trazer para o presente o futuro a que tem direito.

Posse de Lula simbolizou o resgate do poder civil

A cerimônia de posse de um presidente da República é um rito de passagem, que simboliza na democracia a ideia de um governo do povo para o povo. O papel das percepções sociais e das expectativas tem importância muito grande, porque o poder não deriva apenas da posse e do uso dos recursos do Estado, assegurados no plano institucional. A imagem social do governo exerce influência sobre o poder real. Há muitas leituras possíveis sobre a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem. Podemos enumerar as principais, sem grandes dificuldades.

Nesse aspecto, subliminarmente, caracterizou-se uma ruptura entre o governo Bolsonaro, que projetava a tutela das Forças Armadas sobre as instituições da democracia, e o restabelecimento pleno da ordem democrática, com a reencarnação do poder civil pela Presidência. Foram muitas as simbologias. O fato de ter desfilado em carro aberto ao lado da primeira-dama Janja e do vice Geraldo Alckmin, acompanhado da mulher Lu Alckmin, contrariou os que defendiam que fizesse o trajeto da Catedral de Brasília ao Congresso num carro blindado, Lula não renunciou ao calor humano da grande massa de militantes petistas que ocupou a Esplanada.

Venceu o medo de que houvesse um atentado, disseminado pelos bolsonaristas radicais, desde o frustrado atentado a bomba num caminhão tanque cheio de gasolina de aviação, nas imediações do Aeroporto de Brasília. Confiou no planejamento de segurança adotado em sua posse, na qual o Comando Militar do Planalto teve um papel fundamental. Entretanto, a escolta de Lula não foi feita por agentes do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), mas pela Polícia Federal. Os batedores que abriram o cortejo presidencial eram motociclistas da Polícia Militar do Distrito Federal, e não do Batalhão de Guarda Presidencial ou do Corpo de Fuzileiros Navais.

No Plenário da Câmara, Lula reafirmou o compromisso com o combate às desigualdades e foi muito claro em demarcar terreno entre o seu governo, que simboliza o resgate do poder civil e a plenitude da democracia, e o projeto autoritário de Bolsonaro, que tinha a simpatia dos seus comandantes militares. Significativa foi ausência dos canhões da histórica Bateria Caiena, na cerimônia de passagem em vista dos destacamentos da Marinha, Exército e Aeronáutica. Os tradicionais tiros de canhão, que abrilhantavam a posse, supostamente não ocorreram para não assustar a cadela Resistência, adotada por Janja durante a vigília feita pelos petistas em Curitiba, em solidariedade a Lula quando estava preso.


Resistência subiu a rampa do Palácio do Planalto com Lula, ao lado de representantes dos movimentos identitários e populares. Mas quem roubou a cena foi o velho cacique kayapó Raoni Metuktire, desafeto de Bolsonaro e reverenciado internacionalmente. A imagem do presidente ao lado do maior líder indígena do país deve correr mundo, destacada pelos jornais e telejornais internacionais. Depois da nomeação de Marina Silva para o Ministério do Meio Ambiente, nada é mais simbólico do compromisso de Lula com a questão ambiental do que a aliança com Raoni.

Além do cacique, mais sete representantes de movimentos sociais subiram a rampa, como a catadora Aline Sousa, que pôs a faixa presidencial em Lula, e o menino negro Francisco, de 10 anos. Aline trabalha recolhendo resíduos para reciclagem desde os 14 anos e é da terceira geração de catadores da família. Foi o momento mais emocionante da posse.

Um capítulo à parte foi o longo discurso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Confrontado com o discurso de Lula, ambos foram convergentes, mas estabeleceu uma agenda para o Congresso que servirá de balizamento para as relações do novo governo com o Parlamento. Sem dúvida, a principal linha de resistência do presidente à oposição é a base do governo no Senado.

Enquanto Pacheco assume a posição de aliado principal, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é um adversário à espreita, que pode inviabilizar o governo se Lula errar a mão na relação com o Centrão. Lira não conseguiu emplacar o deputado Elmar Nascimento (União-BA) no Ministério da Integração Nacional e tentou emparedar Lula na votação da PEC da Transição, mas acabou enfraquecido pela decisão do Supremo Tribunal Federal, que acabou com o chamado orçamento secreto. A presidente do STF, Rosa Weber, esbanjou sorrisos na posse, ao contrário do procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro.

Ontem mesmo, Lula começou a usar a caneta cheia de tinta que ganhou de um petista do Piauí, na campanha eleitoral de 1989. Logo após tomar posse, revogou o decreto que permitia o garimpo em áreas indígenas e de proteção ambiental; suspendeu os sigilos sobre informações e documentos da administração pública na gestão Bolsonaro; e determinou a retirada do processo de privatização de estatais empresas — Empresa Brasil de Comunicação, Correios e Petrobras.

Também adotou medidas de caráter administrativo, como a nova organização da Presidência da República e dos ministérios; a ampliação do pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil (que volta a se chamar Bolsa Família) para as famílias mais pobres; a prorrogação da desoneração sobre os combustíveis; o restabelecimento do Fundo Amazônia e o combate ao desmatamento; e a garantia de inclusão à educação.