segunda-feira, 20 de setembro de 2021
Bolsonaro desperdiça verba pública para envergonhar os brasileiros na ONU
Sejamos claros: A viagem de Bolsonaro a Nova York, para discursar pela terceira vez na abertura da Assembleia Geral da ONU, é uma inutilidade a serviço da desmoralização do Brasil. Ele desembarcou na cidade no domingo. Por determinação do serviço secreto americano, teve de entrar no hotel pela porta dos fundos para evitar contato com manifestantes que gritavam na entrada: "Fora, Bolsonaro." Saiu para comer à noite. Foi obrigado a mastigar pizza com auxiliares na calçada, pois apenas os vacinados têm acesso aos restaurantes nova-iorquinos.
Sejamos diretos: Sob Bolsonaro, a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão no qual se misturam o vexame sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental —não necessariamente nessa ordem. Bolsonaro realizou o pesadelo que frequentava os sonhos de Ernesto Araújo. O ex-chanceler dizia que se a atuação do governo bolsonarista faz do Brasil "um pária internacional, então que sejamos esse pária."
Por último, sejamos didáticos: Até aqui, em matéria de diplomacia, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Conseguiu desfazer a boa imagem do Brasil no estrangeiro. Para começar a refazer o que desfez, o presidente teria de conciliar duas necessidades conflitantes: ser Bolsonaro e preservar minimamente o interesse nacional. Mas as manifestações prévias reforçam a suspeita de que Bolsonaro e interesse nacional são mesmo dois elementos inconciliáveis.
O capitão já avisou que defenderá na ONU o chamado marco temporal, que limita a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas pelos índios em 1988. Ele alega que fala em nome do agronegócio. Na verdade, ecoa os interesses do ogronegócio, aquele pedaço de lavoura arcaico que invade, desmata e queima. Voar até Nova York para expor numa vitrine planetária posições retrógradas, que afugentam o capital estrangeiro, é uma variante nova do velho hábito de jogar dinheiro público pela janela. O brasileiro paga para passar vexame.
Sejamos diretos: Sob Bolsonaro, a imagem do Brasil no estrangeiro tornou-se um borrão no qual se misturam o vexame sanitário, os arroubos antidemocráticos, a estagnação econômica e a destruição ambiental —não necessariamente nessa ordem. Bolsonaro realizou o pesadelo que frequentava os sonhos de Ernesto Araújo. O ex-chanceler dizia que se a atuação do governo bolsonarista faz do Brasil "um pária internacional, então que sejamos esse pária."
Por último, sejamos didáticos: Até aqui, em matéria de diplomacia, Bolsonaro fez o pior o melhor que pôde. Conseguiu desfazer a boa imagem do Brasil no estrangeiro. Para começar a refazer o que desfez, o presidente teria de conciliar duas necessidades conflitantes: ser Bolsonaro e preservar minimamente o interesse nacional. Mas as manifestações prévias reforçam a suspeita de que Bolsonaro e interesse nacional são mesmo dois elementos inconciliáveis.
O capitão já avisou que defenderá na ONU o chamado marco temporal, que limita a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas pelos índios em 1988. Ele alega que fala em nome do agronegócio. Na verdade, ecoa os interesses do ogronegócio, aquele pedaço de lavoura arcaico que invade, desmata e queima. Voar até Nova York para expor numa vitrine planetária posições retrógradas, que afugentam o capital estrangeiro, é uma variante nova do velho hábito de jogar dinheiro público pela janela. O brasileiro paga para passar vexame.
Eu mi(n)to
“Mentiram-me. Mentiram-me ontem e hoje mentem novamente/Mentem de corpo e alma, completamente/E mentem de maneira tão pungente/que acho que mentem sinceramente”. Poema de Affonso Romano de Sant’Anna, A implosão da Mentira (Ed. Global, 2007).
Atualíssimo. A mentira é um pecado que cometemos diariamente. Pequenas, grandes, convenientes, analógicas, digitais. Segundo Otto von Bismarck, “Nunca se mente tanto como na véspera das eleições, durante a guerra e depois da caça”.
Há uma exceção à regra: o líder político elevado à categoria de mito. Ele mente autenticamente; diz o que pensa; no imaginário dos fanáticos seguidores é a encarnação da verdade absoluta.
Assim é o Presidente Bolsonaro. Um golpista confesso. Não mentiu para os brasileiros nem botou a máscara de democrata. Delimitou o quadrado de três lados quando definiu o espaço de sua relação com o poder: só largaria “morto, preso e com a vitória”. Eliminou uma das regras de ouro da democracia: a alternância pacífica do poder para os que perdem a eleição.
Tentou liquidar a eleição, outra regra de ouro da democracia, quando, em manobra diversionista, ocupou o espaço do debate político, ao arguir preventivamente a fraude das urnas eletrônicas. Seguiu o fracassado exemplo de do seu inspirador, Donald Trump.
Enquanto os brasileiros sofrem com a agonia de cada dia, o Presidente continua sua marcha obsessiva em continuar no poder, ultrapassando limites das regras do jogo e apostando no ambiente da radicalização e fragmentação das oposições.
O campo das oposições busca uma forma de se livrar de Bolsonaro. A solução é simples: a democracia aponta o caminho das eleições de 2022. O governo tem data marcada para acabar. As lideranças e grande parte da sociedade brasileira, espremidas pelo barulho das extremas, não discutem nem se articulam para construir um projeto estratégico capaz de enfrentar os problemas concretos das pessoas e, ao mesmo tempo, encarar os grandes desafios de um mundo em acelerada transformação.
Se, ao longo do percurso, houver um agravamento da crise institucional e se caracterizarem pressupostos jurídicos e políticos, a democracia, também, aponta a solução: o impedimento de Sua Excelência.
Os prejuízos do desgoverno afetam a sociedade. Para não ser repetitivo quanto à gravidade da situação, basta atentar para o que disse, em recente entrevista, o competente economista Pérsio Arida: “Os investidores veem o Brasil como um pária”.
Parafraseando Manuel Bandeira: “Cavalinhos andando. Cavalões comendo. O Brasil politicando”. O povo empobrecendo e muita gente morrendo.
Atualíssimo. A mentira é um pecado que cometemos diariamente. Pequenas, grandes, convenientes, analógicas, digitais. Segundo Otto von Bismarck, “Nunca se mente tanto como na véspera das eleições, durante a guerra e depois da caça”.
Há uma exceção à regra: o líder político elevado à categoria de mito. Ele mente autenticamente; diz o que pensa; no imaginário dos fanáticos seguidores é a encarnação da verdade absoluta.
Assim é o Presidente Bolsonaro. Um golpista confesso. Não mentiu para os brasileiros nem botou a máscara de democrata. Delimitou o quadrado de três lados quando definiu o espaço de sua relação com o poder: só largaria “morto, preso e com a vitória”. Eliminou uma das regras de ouro da democracia: a alternância pacífica do poder para os que perdem a eleição.
Tentou liquidar a eleição, outra regra de ouro da democracia, quando, em manobra diversionista, ocupou o espaço do debate político, ao arguir preventivamente a fraude das urnas eletrônicas. Seguiu o fracassado exemplo de do seu inspirador, Donald Trump.
Enquanto os brasileiros sofrem com a agonia de cada dia, o Presidente continua sua marcha obsessiva em continuar no poder, ultrapassando limites das regras do jogo e apostando no ambiente da radicalização e fragmentação das oposições.
O campo das oposições busca uma forma de se livrar de Bolsonaro. A solução é simples: a democracia aponta o caminho das eleições de 2022. O governo tem data marcada para acabar. As lideranças e grande parte da sociedade brasileira, espremidas pelo barulho das extremas, não discutem nem se articulam para construir um projeto estratégico capaz de enfrentar os problemas concretos das pessoas e, ao mesmo tempo, encarar os grandes desafios de um mundo em acelerada transformação.
Se, ao longo do percurso, houver um agravamento da crise institucional e se caracterizarem pressupostos jurídicos e políticos, a democracia, também, aponta a solução: o impedimento de Sua Excelência.
Os prejuízos do desgoverno afetam a sociedade. Para não ser repetitivo quanto à gravidade da situação, basta atentar para o que disse, em recente entrevista, o competente economista Pérsio Arida: “Os investidores veem o Brasil como um pária”.
Parafraseando Manuel Bandeira: “Cavalinhos andando. Cavalões comendo. O Brasil politicando”. O povo empobrecendo e muita gente morrendo.
Uma pausa para a emergência
Neste momento em que a confusão política é menos intensa, observo que, nos grupos que sigo nas redes sociais, há um sério debate sobre o futuro do país. Sinto não participar ativamente por falta de tempo e, às vezes, boa conexão.
Não tem mais validade aquele verso de Drummond: “Ao telefone perdeste muito tempo de semear”. As pessoas estão semeando ideias, e espero que um dia sejam levadas à prática, embora a mediação do mundo político real tenda a neutralizá-las.
De minha parte, se pudesse contribuir agora, tentaria levar mais diretamente ao mundo político a ideia de uma emergência ambiental. Não há trégua nesse campo. Bolsonaro pode, apesar da relutância, aceitar a vacinação, atenuar suas frases no cercadinho, esquecer, momentaneamente, o voto impresso. Mas seu projeto de devastação dos recursos naturais é diuturno, não para nos feriados, nem com bloqueio de caminhoneiros.
Agora, as cidades do Oeste de Santa Catarina decretaram emergência por causa da seca, o reservatório de Ilha Solteira, em São Paulo, está no nível mínimo, e a Chapada dos Veadeiros arde em Goiás.
Não se trata de abordar a emergência apenas pelo ângulo planetário com base nos dramáticos relatórios da ONU. É possível partir daqui de dentro para o mundo. O Brasil está secando, perdermos 15,8% de nossa água doce em três décadas. Os incêndios no Pantanal mataram 17 milhões de animais.
E essa matança pelo fogo se completa com as balas. Como diz um morador da Serra da Bodoquena, agora que as armas são mais acessíveis:
— Morrem onças porque comem o gado; queixadas e catetos, porque comem o milho; antas e pacas, porque a carne é boa.
No momento em que acabo de concluir uma série de programas para uma temporada, sinto-me atraído pela possibilidade de documentar a crise hídrica, que considero histórica. Não no sentido comum, pela simples comparação de níveis dos rios e reservatórios e intensidade de chuva, uma espécie de variação dentro de um fenômeno regular.
Considero a crise histórica porque representa um momento de inflexão. Nunca mais seremos o país com riqueza de matas e abundância de água como costumamos nos imaginar. Todos os grandes biomas brasileiros estão sob ataque.
Não tenho outro caminho, exceto documentar essa perda. Nem há exílio possível. Conheci as asperezas do exílio, estudei o tema mais amplamente no livro de Maria José de Queiroz “Os males da ausência — Ou a literatura do exílio”. Pessoalmente, encontrei exilados que eram órfãos de um Estado, como os palestinos, os eritreus.
Mas é difícil imaginar o exílio de um país que deixou de existir, não como unidade política, mas como entidade física, sem a beleza e a exuberância que não só encantam o mundo, mas nos ligam a ele.
Ainda haveria tempo de buscar o desmatamento zero na Amazônia, de recuperar as principais bacias hidrográficas, de estancar a matança no Pantanal, a destruição do Cerrado, a liquidação do que restou da Mata Atlântica. Isso podia suscitar também uma grande cooperação internacional.
Mas o que predomina hoje no governo e, infelizmente, entre os militares, é uma certa noção de progresso e uma grande desconfiança em relação ao mundo. O Brasil vai se tornar um espelho de seu universo mental.
Pelo menos, é possível documentar a tragédia, à espera de uma tomada de consciência, algo que os eventos extremos já estão provocando no mundo.
A emergência ambiental figura no topo da agenda de alguns líderes mundiais. A preservação da Amazônia é uma aspiração da maioria do nosso povo. Vamos esperar que, por algum milagre, isso seja um tema nas eleições de 2022 e que funcione como mais uma pedra no sapato de Bolsonaro.
O Brasil pode se tornar a imagem da extrema direita, mas será tão árida quanto a alma dessa corrente política.
Não tem mais validade aquele verso de Drummond: “Ao telefone perdeste muito tempo de semear”. As pessoas estão semeando ideias, e espero que um dia sejam levadas à prática, embora a mediação do mundo político real tenda a neutralizá-las.
De minha parte, se pudesse contribuir agora, tentaria levar mais diretamente ao mundo político a ideia de uma emergência ambiental. Não há trégua nesse campo. Bolsonaro pode, apesar da relutância, aceitar a vacinação, atenuar suas frases no cercadinho, esquecer, momentaneamente, o voto impresso. Mas seu projeto de devastação dos recursos naturais é diuturno, não para nos feriados, nem com bloqueio de caminhoneiros.
Na sua cabeça, não é uma política destrutiva. Pensa na riqueza material, num conceito de progresso. Possivelmente, assim pensava a elite capixaba quando arrasou a Mata Atlântica, processo magistralmente descrito por Warren Dean no livro “A ferro e fogo — A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira”.
Agora, as cidades do Oeste de Santa Catarina decretaram emergência por causa da seca, o reservatório de Ilha Solteira, em São Paulo, está no nível mínimo, e a Chapada dos Veadeiros arde em Goiás.
Não se trata de abordar a emergência apenas pelo ângulo planetário com base nos dramáticos relatórios da ONU. É possível partir daqui de dentro para o mundo. O Brasil está secando, perdermos 15,8% de nossa água doce em três décadas. Os incêndios no Pantanal mataram 17 milhões de animais.
E essa matança pelo fogo se completa com as balas. Como diz um morador da Serra da Bodoquena, agora que as armas são mais acessíveis:
— Morrem onças porque comem o gado; queixadas e catetos, porque comem o milho; antas e pacas, porque a carne é boa.
No momento em que acabo de concluir uma série de programas para uma temporada, sinto-me atraído pela possibilidade de documentar a crise hídrica, que considero histórica. Não no sentido comum, pela simples comparação de níveis dos rios e reservatórios e intensidade de chuva, uma espécie de variação dentro de um fenômeno regular.
Considero a crise histórica porque representa um momento de inflexão. Nunca mais seremos o país com riqueza de matas e abundância de água como costumamos nos imaginar. Todos os grandes biomas brasileiros estão sob ataque.
Não tenho outro caminho, exceto documentar essa perda. Nem há exílio possível. Conheci as asperezas do exílio, estudei o tema mais amplamente no livro de Maria José de Queiroz “Os males da ausência — Ou a literatura do exílio”. Pessoalmente, encontrei exilados que eram órfãos de um Estado, como os palestinos, os eritreus.
Mas é difícil imaginar o exílio de um país que deixou de existir, não como unidade política, mas como entidade física, sem a beleza e a exuberância que não só encantam o mundo, mas nos ligam a ele.
Ainda haveria tempo de buscar o desmatamento zero na Amazônia, de recuperar as principais bacias hidrográficas, de estancar a matança no Pantanal, a destruição do Cerrado, a liquidação do que restou da Mata Atlântica. Isso podia suscitar também uma grande cooperação internacional.
Mas o que predomina hoje no governo e, infelizmente, entre os militares, é uma certa noção de progresso e uma grande desconfiança em relação ao mundo. O Brasil vai se tornar um espelho de seu universo mental.
Pelo menos, é possível documentar a tragédia, à espera de uma tomada de consciência, algo que os eventos extremos já estão provocando no mundo.
A emergência ambiental figura no topo da agenda de alguns líderes mundiais. A preservação da Amazônia é uma aspiração da maioria do nosso povo. Vamos esperar que, por algum milagre, isso seja um tema nas eleições de 2022 e que funcione como mais uma pedra no sapato de Bolsonaro.
O Brasil pode se tornar a imagem da extrema direita, mas será tão árida quanto a alma dessa corrente política.
A conspiração da ignorância
A realidade não nos tem dado sossego. O mundo avança por caminhos imprevistos. Há muito tempo que a energia motriz das nossas sociedades não é o petróleo, o carvão ou, mesmo, a eletricidade. O combustível com que atestamos a cabeça e o ânimo é a informação. É ela que nos põe em movimento. Com inúmeras formas, a informação chega de todos os lados, catalisada pela internet, multiplicada por mil. Talvez essa avalanche de perspetivas e interpretações, ajude a explicar esta situação. Talvez as extremas guinadas da atualidade noticiosa contribuam para a ideia de que tudo é possível.
Uma pandemia mundial, quem poderia imaginar? Para lá da quantidade considerável de epidemiologistas, tanto profissionais, como amadores, duvido que alguém conseguisse prever o que temos atravessado desde o início de 2020. Perante tal surpresa, não admira que haja quem duvide. Os já famosos negacionistas são gente com uma grande confiança nos seus sentidos, na sua experiência pessoal e nas suas fontes informativas.
Com ou sem pontuação, com ou sem maiúsculas, exprimem-se nas redes sociais e, às vezes, na rádio ou na televisão, naqueles programas que recebem telefonemas do público. Manifestam-se de peito feito, desafiantes, destemidos perante nenhuma ameaça percetível. Quando dizem eles referem-se ao mundo inteiro. Quando expõem ideias sobre a pandemia, o principal argumento que apresentam é de que não viram e não conhecem ninguém que tenha visto.
Suponho que não tenham amigos entre a comunidade de trabalhadores das análises clínicas. Para além desse detalhe, aquilo que me parece mais interessante é esta forma extravagante de analisar e avaliar o mundo: apenas existe aquilo que já se viu e experimentou. Consideremos por um instante a imensa quantidade de assuntos que nunca vimos à nossa frente, mas que acreditamos existir, contamos com eles na nossa conceção da existência.
No entanto, não é possível dizer apenas que não. Sempre que se nega alguma coisa, está implicitamente a afirmar-se o contrário ou uma variação daquilo que se nega. Quando avaliados a partir de outro ângulo, os negacionistas são muito mais afirmacionistas do que se poderia julgar numa primeira e apressada leitura.
Por espantosa ironia, os mesmos indivíduos que nos encorajam a desdenhar daquilo que não testemunhámos, pedem-nos para acreditar em conspirações secretas internacionais, em extraterrestres que ocuparam o planeta e se fazem passar por seres humanos, em seitas satânicas que controlam as elites mundiais, que praticam a pedofilia e se alimentam de sangue para rejuvenescer. Nenhum deles testemunhou realmente estes terríveis factos, apenas os encontraram descritos na internet por alguém que viu, foram-lhes enviados numa corrente anónima de mensagens nas redes sociais.
Ou seja, chegámos ao ponto em que, abertamente e sem pudor, se escolhe aquilo em que se acredita. Basta que exista um fluxo contínuo de “informação” a abastecer e a desenvolver essas ideias e, também, que exista uma comunidade disposta a acolher quem chega, a tratá-lo como um dos seus. Dá um certo conforto acreditar em conjunto, independentemente da crença em causa.
Antes, estas pessoas já existiam. Eram o maluco da aldeia, o excêntrico rancoroso. Agora, a tecnologia deu-lhes a oportunidade de comunicarem, de alimentarem em conjunto a sua mania, criaram associações e federações. E há muitas aldeias no mundo, mesmo muitas, cada uma com o seu maluco.
Uma pandemia mundial, quem poderia imaginar? Para lá da quantidade considerável de epidemiologistas, tanto profissionais, como amadores, duvido que alguém conseguisse prever o que temos atravessado desde o início de 2020. Perante tal surpresa, não admira que haja quem duvide. Os já famosos negacionistas são gente com uma grande confiança nos seus sentidos, na sua experiência pessoal e nas suas fontes informativas.
Com ou sem pontuação, com ou sem maiúsculas, exprimem-se nas redes sociais e, às vezes, na rádio ou na televisão, naqueles programas que recebem telefonemas do público. Manifestam-se de peito feito, desafiantes, destemidos perante nenhuma ameaça percetível. Quando dizem eles referem-se ao mundo inteiro. Quando expõem ideias sobre a pandemia, o principal argumento que apresentam é de que não viram e não conhecem ninguém que tenha visto.
Suponho que não tenham amigos entre a comunidade de trabalhadores das análises clínicas. Para além desse detalhe, aquilo que me parece mais interessante é esta forma extravagante de analisar e avaliar o mundo: apenas existe aquilo que já se viu e experimentou. Consideremos por um instante a imensa quantidade de assuntos que nunca vimos à nossa frente, mas que acreditamos existir, contamos com eles na nossa conceção da existência.
No entanto, não é possível dizer apenas que não. Sempre que se nega alguma coisa, está implicitamente a afirmar-se o contrário ou uma variação daquilo que se nega. Quando avaliados a partir de outro ângulo, os negacionistas são muito mais afirmacionistas do que se poderia julgar numa primeira e apressada leitura.
Por espantosa ironia, os mesmos indivíduos que nos encorajam a desdenhar daquilo que não testemunhámos, pedem-nos para acreditar em conspirações secretas internacionais, em extraterrestres que ocuparam o planeta e se fazem passar por seres humanos, em seitas satânicas que controlam as elites mundiais, que praticam a pedofilia e se alimentam de sangue para rejuvenescer. Nenhum deles testemunhou realmente estes terríveis factos, apenas os encontraram descritos na internet por alguém que viu, foram-lhes enviados numa corrente anónima de mensagens nas redes sociais.
Ou seja, chegámos ao ponto em que, abertamente e sem pudor, se escolhe aquilo em que se acredita. Basta que exista um fluxo contínuo de “informação” a abastecer e a desenvolver essas ideias e, também, que exista uma comunidade disposta a acolher quem chega, a tratá-lo como um dos seus. Dá um certo conforto acreditar em conjunto, independentemente da crença em causa.
Antes, estas pessoas já existiam. Eram o maluco da aldeia, o excêntrico rancoroso. Agora, a tecnologia deu-lhes a oportunidade de comunicarem, de alimentarem em conjunto a sua mania, criaram associações e federações. E há muitas aldeias no mundo, mesmo muitas, cada uma com o seu maluco.
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