quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Brasil das maravilhas

 


O segundo governo Bolsonaro

O primeiro governo Bolsonaro tinha alguns traços marcantes, relacionados a sua trajetória e a sua campanha rumo à Presidência. Na economia, um estilo inicial agressivamente liberal que foi progressivamente estancado, via impasses nas reformas e lenta privatização de ativos. No social, uma pauta centrada nos costumes, de corte conservador, e pouco investimento em programas sociais.

Na política a chamada “antipolítica” e o combate à corrupção, cujo núcleo era a renúncia ao “presidencialismo de coalizão”. Nesse último caso, a solução aventada para o dilema de como levar o Congresso a aprovar o programa do governo, sem o usual recurso à troca de apoios partidários por cargos no Executivo, foi o “presidencialismo de colisão”. Neste, buscava-se o confronto e a pressão sobre o parlamento, mas também sobre o Judiciário, mediante o recurso à espada, isto é, às Forças Armadas, que teoricamente estariam ao seu lado, como atestavam as falas dos militares em cargos ministeriais.

De forma complementar, a pressão das “massas” – estas entendidas como seguidores organizados do Presidente. Essa estratégia foi sendo seguidamente derrotada até chegar à exaustão. No que respeita ao Parlamento, pela liderança inconteste na reforma da previdência e sucessivas derrotas do governo, como na suspensão de decretos (caso das armas), derrubada de vetos e medidas provisórias.

Porém, a chegada da pandemia, os episódios das fake news e da “rachadinha” verdadeiramente acenderam a luz vermelha para a possibilidade de um processo de impeachment, ainda que prematuro. Quanto ao Supremo, sua unidade em defesa de temas democráticos, e o inquérito do “fim do mundo” batendo às portas do bolsonarismo de raiz, do gabinete do ódio e, por fim, de atores próximos ao presidente, era mais um sinal de game over.

Já as Forças Armadas, como dissemos inúmeras vezes, estavam firmemente plantadas no terreno da obediência à Constituição e blindadas para aventuras. Hoje, os sinais marcantes da virada para o segundo governo estão à vista.

O Presidente tornou-se adepto do clássico presidencialismo de coalizão, entregando ao centrão o comando político no parlamento e cargos no Executivo. A pax com o Judiciário foi simbolicamente selada no “nihil obstat” ao novo ministro do STF dado pelos ministros Toffoli e Gilmar, na casa do segundo, tendo como testemunha o presidente do Senado, seguida de almoço na casa do primeiro.

O incentivo final para a consolidação do segundo governo veio pelo auxílio emergencial e crescimento da popularidade do presidente nas pesquisas de opinião. Um governo “normal”? A conferir. Porém com graves problemas à frente: como conciliar o político e o fiscal e dar continuidade ao auxílio emergencial que turbinou a popularidade presidencial e o desemprego alto, em 14%, e crescente?

Além do desalento que leva 10 milhões de brasileiros a não procurar emprego, segundo o IBGE. De quebra, a provável vitória do candidato democrata Joe Biden à presidência dos Estados Unidos e a Amazônia em chamas.

Uma trilha sonora para um Brasil pandêmico

O presidente da República está em plena Revolta da Vacina. Tem ciúme da vacina. Tem ciúme de quem a tem e mais ciúme ainda de quem a terá. O presidente se descabela e se rebela. Homem do seu tempo, vive com ardor o ano de 1904. Quer atirar cadeiras nos mata-mosquitos de Oswaldo Cruz, mas o sanitarista, mau brasileiro, impatriótico, sumiu de cena antes que terminasse o ano da desgraça e não mais se voluntaria a receber desaforos.

O presidente, resoluto, impoluto e estulto, não desiste. Não abre mão da revolta. Na falta do Cruz, dispara perdigotos contra o Instituto Butantan. A vacina que se cuide. Estão pensando o quê?

A fúria presidencial, impetuosa, pomposa e prosa, é máscula, mas dança conforme a cançoneta: “Anda o povo acelerado/ com horror à palmatória/ por causa dessa lambança/ da vacina obrigatória”. Na voz do cantor Mário Pinheiro, os versos ressequidos arranham o mármore do Palácio do Planalto. Raiva da vacina. Ódio febril e varonil.

E o que virá depois? Inútil tentar descobrir. No Brasil, o passado é imprevisível (abraço, Pedro Malan).
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Autoridades da Casa Branca visitam o palácio. A presidente do EximBank, o Banco de Exportação e Importação dos EUA, e o ministro da Economia daqui mesmo assinam um memorando que pode render empréstimos de até US$ 1 bilhão para o Brasil. Em troca, apoios auriverdes à cruzada de Washington para afugentar do mercado as tecnologias e empresas chinesas na implantação do 5G. Ao lado do presidente, o conselheiro de segurança nacional dos Estados Unidos participa da cerimônia.

Pensa o improvável leitor que essa solenidade foi anteontem, certo? Pois pensa errado. Outra vez, estamos mergulhados no interminável passado imprevisível. Ao fundo, Juca Chaves e um violãozinho se infiltram pelo ar-condicionado: “Hoje em dia o meu Brasil/ é uma país independente/ dentre as coisas que nós temos/ vê-se até dois presidentes./ (...) Um do sul, outro do norte/ que governam muito bem/ só que o norte é bem mais forte e governa o sul também (...)”.

Se fôssemos um pouco mais briosos – e irônicos –, iríamos de Assis Valente, o mais valente de todos e todas. Iríamos de Brasil Pandeiro. Celebraríamos malandramente que “o Tio Sam anda querendo conhecer a nossa batucada”. Festejaríamos desconfiados que “na Casa Branca já tocou a batucada de ioiô e iaiá”.

Depois disso, a gente brasileira abriria mão da malícia. Alguém desfilaria de bananas na cabeça – Carmem Miranda que nos acuda – e sacaria da manga do paletó, ou do decote, a carta ufanista que faz do samba o Rei Momo da cultura pátria, o símbolo brasileiro por excelência. Se não tiver samba, vai de rumba mesmo. Zé Carioca de mãos dadas a Mickey Mouse, Getúlio Vargas em bombachas. Se faltar a rumba, volte o samba-exaltação na veia, Ary Barroso na cabeça, “mulato inzoneiro” no meio da testa, hino nacional em feitio de batucada, jamais de oração. “Ai, essas fontes murmurantes”, coitado do jornalismo. Ai, esses vazamentos trepidantes. Ai, esse passado alucinante.
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A TV Brasil exibiu com exclusividade um jogo do escrete canarinho. Consta que o narrador deu de mandar um abraço para o presidente do sul, o que deixou em estado de alerta máximo a vigilância democrática. Com toda a razão, embora não seja de hoje que as emissoras estatais botam banca e montam palanque para as “otoridade” se derramarem nos elogios recíprocos, fazendo campanha eleitoral fora de temporada. Não, não é de hoje. O cacoete da autopromoção em microfones públicos é antigo: é do passado.

O presidente prometera acabar com a EBC, a estatal que controla a TV Brasil, mas não era para acreditar. Não dava para acreditar. A facção de extrema direita que ganhou as eleições se julga a portadora da verdade e como confunde verdade com propaganda não pode viver sem propaganda. Ficaria sem verdade. Por isso jamais jogará fora um equipamento como a EBC, prontinho para ser repaginado em usina de verdades absolutas.

O que nos salva, agora, é que a facção de extrema direita que aí está não tem competência nem para ser fascista. Não é pra valer. Não tem compromisso com a coerência. Na TV Brasil, o presidente está mais para lobisomem de filmes de Mazzaropi (reprisados todos os dias) do que para Duce ou técnico de futebol. O seu fascismo é pastiche. Anauê paranauê. O fascismo termina no colo do Centrão, que quando o mercado favorece é direitão, mas não é bobo, não.

Um surdo pequeno bate o compasso. O presidente chuta a causa autoritária para escanteio e se enturma na patota do dinheiro na cueca, mais velha que a Revolta da Vacina. Entra a cuíca, que não é cueca, para entrecortar o balanço com agudos miúdos. Que samba bom. A voz macia de Blecaute estufa os alto-falantes estatais. De terno claro, camisa branca sem gravata, ginga natural, ele manda ver: “Ô, que samba bom/ ô, que coisa louca/ eu também tô aí/ tô aí, que é que há/ também tô nessa boca”.

A teoria do dano e a vacina

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.


Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.

No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.

No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.

Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.

Por que Bolsonaro seria mais perigoso num segundo mandato

Jair Bolsonaro mudou ou está à espera da reeleição para impor seus sonhos até agora frustrados? Ou será que alguém ainda acredita que o mesmo Bolsonaro – aquele que opinou que a ditadura foi branda demais e que 30.000 pessoas deveriam ter sido assassinadas – se converteu repentinamente aos valores democráticos? A

Será que o Bolsonaro violento, amante das armas, machista e homofóbico, que elogia torturadores e odeia as instituições, é uma pessoa que se converteu de repente? Por obra de quem? Algum milagre do céu? Qualquer analista político sabe que essas conversões não existem, a não ser que sejam dissimuladas, à espera de retornar à sua própria natureza. 

Há quem creia, entretanto, começando por seus devotos mais fiéis, que o Bolsonaro de hoje já não é o que saiu vitorioso das urnas. E nas aparências é assim mesmo. Ele tinha jurado guerra à velha política e prometido acabar com a corrupção e a violência. Já no poder, apareceu o Bolsonaro genuíno, que tinha passado quase 30 anos no baixo clero do Congresso. Nunca tinha brilhado nem aprovado uma lei importante. De sua passagem pela Câmara só ficam os rastros de seu amor pela violência, sua descarada homofobia, seus elogios públicos aos torturadores, seu desprezo pela mulher e por todos os diferentes. E por ter sempre negado que o Brasil seja um país laico. “E quem não gostar que vá embora”, gritou então, ameaçador. 

Talvez fosse o caso de se perguntar por que as instituições não pediram sua condenação naquela época. Não lhe deram importância porque, sabe-se lá, o considerassem insignificante e sem poder. Talvez por isso nunca tenha aparecido envolvido em grandes corrupções, porque as grandes empresas sabiam que ele não tinha força para intervir nas leis e modificá-las. Aquela lassidão das instituições, que riam das suas graças no Congresso e não foram capazes de levar a sério suas provocações, fez que um deputado sem história e um homem da violência chegasse à Presidência da República. 


De fato, assim que foi eleito, começou a aparecer sua verdadeira personalidade de nostalgias ditatoriais. O Brasil viveu momentos perigosos, e chegou-se a pensar que se estava às vésperas de um golpe de Estado, para que ele não precisasse nem mesmo se dar ao trabalho de dialogar com as instituições e respeitar sua independência. Queria que estivessem submissas a seus desejos. Assim, chegou inclusive a participar de manifestações violentas contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), ao qual ameaçou fechar pela força militar. Ficará para a história aquele seu arrebato ao lado de seguidores fanáticos, quando gritou, ameaçador: “Porra, agora chega”. 

Um dia os historiadores explicarão como o Brasil esteve à beira de uma demolição autoritária das instituições. A verdade pode ser que sua aparente conversão se deva mais ao temor de que algum entre dezenas de pedidos de impeachment armazenados no Congresso e os supostos escândalos de corrupção da sua família possam lhe custar o cargo. É bem possível que esse medo o tenha levado a se refugiar na velha política, sobretudo com os partidos mais corruptos.

 E de repente, em vez de ameaçar mandar o Exército para tomar o Supremo, o vimos se ajoelhar perante os magistrados, a ponto de ir a uma festa na casa do então presidente do Supremo, Dias Toffoli, com direito a abraços e música ao vivo. De ameaçar qualquer coisa que cheirasse a liberdades e direitos humanos passou a ser um presidente reverente pelas instituições, embora sem deixar a cada dia de soltar algum disparate, muitas vezes com linguagem soez e escatológica.

O que não mudou foi o ódio e ameaças à imprensa, à qual culpa por todos os males do país. Seria um grande erro político e um grande perigo para a democracia pensar que um personagem com tal ambiguidade e tal passado possa, se conseguir se reeleger em 2022, se manter fielmente devoto às instituições e defensor das liberdades. 

Acredite-se ou não, o Bolsonaro reeleito nas urnas poderia revelar-se desta vez com mais força de desprezo pelos valores da democracia e a favor do autoritarismo político. Nele continua vivo o desejo de poder governar em plena liberdade sem levar em conta os demais poderes independentes. Ele carrega no sangue o repúdio por ter que se submeter aos rituais do poder que exige respeito às instituições que atuam como freio contra o autoritarismo. É possível que um Bolsonaro reeleito volte amanhã para mostrar de novo seus dentes e sua convicção de que as instituições com sua independência são um estorvo ao poder total com que ele sonha. 

Em um segundo mandato, poderá se sentir mais forte para enterrar para sempre o bárbaro assassinato da ativista política Marielle Franco e as sombras sobre o envolvimento de toda a sua família com as milícias. Pois se é verdade que Bolsonaro se converteu, por que não usa hoje seu poder para conseguir conhecer o mistério dos mandantes daquele crime que comoveu o país? Não tem agora a polícia sob seu poder? Alguém acredita que em um segundo mandato Bolsonaro, o convertido, respeitará a plena liberdade de expressão e a independência dos meios de comunicação, aos quais continua perseguindo apesar de sua suposta conversão à democracia? 

Não é preciso ser um gênio da adivinhação para ter certeza de que um Bolsonaro reeleito não poderia ser menos violento, mais devoto ao respeito das instituições, menos negacionista que hoje. Bolsonaro hoje teve que mudar de pele, ou foi obrigado a mudá-la por militares convencidos de que ou aceitava os valores da democracia ou nunca mais seria reeleito. O novo convertido se ajoelhou de repente perante as instituições dado o temor de perder um poder com o qual sempre tinha sonhado. 

Quem pode pensar que um Bolsonaro reeleito não tentará, por exemplo, mudar a Constituição para impor uma teocracia e acabar com o caráter laico do Estado, para poder governar com suas hostes evangélicas que mal suportam o laicismo? Ou que não tentará mudar as leis que regem as nomeações dos juízes do STF para refazer a corte à sua imagem e semelhança? Sim, um Bolsonaro reeleito estimularia seus sonhos de transformar o Brasil em uma teocracia na qual assumiria todos os poderes e confirmaria seu sonho de “Deus acima de tudo”. 

Mas que Deus? Certamente não o dos Evangelhos, que abriu as portas do judaísmo para que nele coubessem até os gentios, em um abraço universal. Nem seria uma teocracia que colocaria os mais pobres e perseguidos no centro dos cuidados do Estado. Seria sem dúvida um Brasil pior do que hoje e mais afastado das grandes democracias do mundo. 

Uma reflexão para que os partidos verdadeiramente democráticos estejam atentos a essa suposta conversão de Bolsonaro e se preparem para, abrindo mão de seus interesses particulares, serem capazes de evitar que o Brasil volte a cair nas mãos de um nostálgico das ditaduras. Do contrário, parafraseando Reinaldo Azevedo, “o atual balido do cordeiro” poderia ser só “o futuro uivo do lobo”.

Pensamento do Dia

 


A morte, a vacina e o presidente

Em 2020, estamos morrendo, mas o presidente só pensa em 2022. É capaz de qualquer ato, o mais temerário que seja, para realizar seu plano. Ontem foi um dia em que o Brasil perdeu tempo na nova desordem criada por Jair Bolsonaro. Ele atacou a China, o governador João Doria, humilhou o general Pazuello e fez sua revolta da vacina para agradar sua milícia digital. O presidente conspira contra a saúde dos brasileiros para aplacar seus radicais.

Há uma minoria muito estridente nas redes que cobra dele provas de lealdade. Abraçado a políticos com dinheiro nas cuecas, com sua família toda enrolada, o presidente não pode mesmo entregar a promessa de combate à corrupção. Então ele cria conflitos com a China, com Doria, com a vacina para provar que permanece sendo o mesmo. Ele foi cobrado pelo acordo de intenção assinado com o governo de São Paulo e por isso deu o seu chilique.


O Instituto Butantan é o maior fornecedor de vacina para o programa nacional de imunização e tem a confiança do país. É óbvio que será um dos fornecedores, caso a vacina desenvolvida na cooperação com a China passe bem por todo o processo da Anvisa. Como disse ontem a agência, existem quatro “protocolos de desenvolvimento vacinal” correndo na Anvisa e nenhum pedido ainda de registro. Quando houver, será avaliado tecnicamente. O presidente da Anvisa, Antonio Barra, procurava palavras para não sair do roteiro da agência. Barra é o mesmo que em março foi para uma manifestação contra o Congresso junto com o presidente, participando de aglomeração. Recebeu esta semana a aprovação do Senado e agora tem mandato.

No entorno do presidente a explicação dada pela manhã foi que Bolsonaro estava dizendo que o governador Doria havia distorcido o que fora dito por Pazuello na videoconferência. Doria divulgou o comunicado da reunião para mostrar o que havia acontecido e que todo mundo tinha entendido, aliás. Uma intenção de compra caso a vacina seja aprovada e tenha registro. Inventando uma briga inexistente, Bolsonaro postou que qualquer vacina deverá ser comprovada cientificamente e aprovada pela Anvisa. Mas fez isso escrevendo em caixa alta: “A vacina chinesa de João Doria.” E conclui que não vai comprar a vacina. Depois usou a palavra “traição” e era em relação ao ministro da Saúde.

Ao atacar Doria, ele está tentando enfraquecer um suposto adversário de 2022. Ao fazer sucessivas referências depreciativas à China, ele estigmatiza o país. Mas mais do que isso: Bolsonaro agride nosso principal parceiro comercial e investidor estratégico. Não ganhamos nada em tomarmos partido na nova guerra fria. O interesse americano nessa briga não é o nosso interesse.

A embaixada chinesa já havia soltado uma nota na terça-feira para rebater as acusações do secretário americano, Mike Pompeo, e do conselheiro de Segurança Nacional, Robert O’Brien, de que a China seria uma ameaça ao Brasil. No trecho mais duro contra os americanos, os chineses disseram que os EUA tinham um “histórico sujo” em segurança cibernética, com operações massivas de espionagem contra vários países, incluindo o Brasil. Ontem, após a polêmica com a vacina, o embaixador chinês, Yang Wanming, afirmou que investimentos chineses no Brasil geraram mais de 50 mil empregos diretos e poderiam chegar a US$ 100 bilhões em um período de cinco anos. Era uma forma de comparar com o que foi oferecido pela missão americana. Perto do volume que precisa ser mobilizado para o investimento em 5G, o US$ 1 bi de financiamento americano não é nada.

Num mesmo ataque de nervos o presidente agrediu um parceiro estratégico, mostrou de novo que não tem atributos para comandar uma federação, humilhou o ministro da Saúde, justamente o mais submisso aos seus caprichos.

O pior, contudo, é que Bolsonaro atentou contra a saúde dos brasileiros. Ele espalha o vírus da desconfiança em relação a uma vacina que pode vir a salvar milhares de vidas. Desde o começo da pandemia ele já brigou com governadores, agrediu o STF, demitiu dois ministros da Saúde, defendeu remédios não comprovados, ajudou a disseminar o coronavírus com suas aglomerações e seu exemplo de desprezo à proteção. Bolsonaro é um atentado à saúde pública no meio de uma pandemia. E já são 155.459 os nossos mortos.

'Brincadeirinha' eleitoreira


’Nossa vacina jamais será vermelha’, o novo lema bolsonarista
Marcelo Rubens Paiva

Lições da Antiguidade que se perderam e se tornaram inúteis em países como o Brasil

A esposa de Hieron, rei de Siracusa, perguntou ao poeta Simônides o que valia mais: “Ser rico ou ser sábio?”. E o poeta respondeu: “Rico, pois vejo os sábios estarem sempre batendo nas portas dos ricos”. Mas, acrescentou: ”Isso é porque os sábios sabem de que precisam e, se os ricos não procuram os sábios , é porque não conhecem mais as suas necessidades”.

Se eu transferir para o mundo de hoje essa afirmação de mais de 2 mil anos atrás, teremos nada mais, nada menos que a ascensão do poder político, a grande expressão do poderio moderno.

Evidente que não estou inferiorizando os poderes militar e econômico, mas estes já não são suficientes, e passam a ser submetidos como instrumentos do poderio político.


Quantas vezes que as Forças Armadas afirmaram que a função é proteger a “democracia”, logo, o sistema político, e por pior que este se apresente?! No Brasil, depois da devolução da democracia pelos militares, a política tomou de assalto o país e o poder.

Goethe, célebre poeta alemão, autor de Fausto, uma de suas obras-primas, encenada pela primeira vez em 1829, vinte anos depois de realizada, resumiu com perfeição o que aconteceria 120 anos depois:

O dr. Fausto, movido pela ambição de possuir todos os bens que pudesse conseguir, entregaria sua alma para o diabo. Seria o caso de perguntar o significado de se ter tudo, se a criatura humana perde a si mesma?

O trágico da ambição que se transforma em valor absoluto está exatamente nesse sentido. A ambição que se satisfaz com a pura ambição, pois em lugar de levar o ser humano a possuir, leva-o a ser possuído, e o homem não domina mais nada, mas é dominado por tudo; não dirige porque dirigido. A ambição, que se elege critério absoluto, é insatisfação insanável, permanentemente angustiante.

Dito isso, falta ao cidadão, à sociedade brasileira, necessariamente refletir muito bem sobre essa verdade de fato: na vida humana ou vivemos de acordo com o que pensamos ou acabamos pensando de acordo com o nosso modo de viver.

Exemplo? O próprio poder político!

Qual é a essência do pensamento político nacional? Aproveitar o tempo eleito para enriquecer, e tanto faz se lícita ou ilicitamente.

O parlamentar vira escravo da sua ambição, do seu modo de viver, pois está com o maior dos poderes nas mãos. E possui uma outra circunstância favorável ao seu modo de pensar: a impunidade, pois ele é quem legisla.

No século XVI, quase 500 anos atrás, Francis Bacon, considerado como o fundador da Ciência Moderna, em sua obra Novum Organon, já questionava: “De onde se deduzem os princípios que hoje nos servem de base?”

Respondo: no caso do povo, sobreviver; em se tratando do poder político, a ambição movida pela própria ambição.

No Brasil, o poder político enreda-se em si mesmo, e deixa de ser útil à sociedade para se transformar em pária, pois nada produz, nada faz, nada resolve. O poder político satisfaz seus membros e permite condutas condenáveis, criticáveis, eivadas de má fé e más intenções, porém detentores do poderio moderno!

Cabe aqui lembrar outra curiosidade, advinda da notável e fundamental à humanidade, cultura grega: Dédalo, filho de Himetion, descendente de Erecteu, rei de Atenas, discípulo de Mercúrio, artista notável, construtor, estatuário, inventor, que construía estátuas movidas por mecanismos internos parecendo seres vivos – prestem atenção, por favor! –, matara seu sobrinho, e foi condenado à morte.

Fugiu para Creta, e ficou na Corte do rei Minos – sigam lendo com atenção, peço.

Lá, construiu o afamado Labirinto, construção tão repleta de intrincadas veredas, que quem ali entrasse não conseguiria sair. Dédalo foi a primeira vítima do seu próprio engenho. Minos, irritado com ele, manda prendê-lo no Labirinto com o seu filho Ícaro e o Minotauro. Para nós, o Poder é o Labirinto. Quem está lá dentro não sabe como sair. Se consegue, perdeu a si mesmo, e desfila perante a sociedade como corrupto e desonesto.

O comportamento antidemocrático é usado despudoradamente como natural pelo ambicioso, pois tem impunidade, julga-se acima dos demais porque compõe o poderio moderno, a política deletéria e deplorável.

Então o desespero, as trocas de partido, a deslealdade, os desvios de verbas destinadas à saúde popular, dinheiro sendo conduzido entre as nádegas, cuecas, caixas de uísque, helicópteros, pois é preciso atender à escravidão do poder que eles próprios elaboraram.

Brasil é o pior dos Brics e ainda brinca com fogo

O Brasil é, de longe, a maior decepção entre as quatro grandes países emergentes incluídos no histórico trabalho da Goldman Sachs que criou o grupo do Brics - Brasil, Rússia, Índia e China. Se você quer saber quais desses países mais corresponderam às previsões de crescimento econômico, basta ler a sigla de traz para frente. A China foi disparadamente melhor, seguindo-se Índia e Rússia, com o Brasil na lanterna.

O estudo da Goldman Sachs é normalmente atribuído a Jim O’Neill, que formulou o conceito e a sigla em 2001, mas foi assinado por Dominic Wilson e Roopa Purushothaman, com a publicação do “Dreaming With BRICs: The Path to 2050”. Embora tenha sido divulgado em outubro de 2003, esse “paper” trabalha com uma série histórica que começa no ano 2000. A previsão principal é que os quatro grandes emergentes - o texto original não inclui a África do Sul - deverão se tornar, até 2050, a maior força da economia mundial, superando em valor de PIB os países do G-6 - Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália.

As projeções, porém, são extremamente detalhadas, a ponto de estimarem o crescimento ano a ano para cada um dos quatro Brics até 2050. Passados os primeiros 20 anos dessa projeção, já é possível fazer um balanço do acerto parcial da previsão. O economista Robinson Moraes, coordenador de Pesquisa Econômica do Valor Data, comparou os dados projetados com a expansão real dos PIBs (método convencional) e o resultado está nos gráficos ao lado, de fácil compreensão. A linha vermelha mostra o crescimento efetivo de cada país e a azul indica a projeção feita pelo estudo. Se a Goldman Sachs tivesse acertado em sua previsão, o PIB do Brasil teria crescido 101,7% nos primeiros vinte anos do século, mas deve crescer apenas 43,6%, já levando em conta as estimativas do FMI para a recessão deste ano. A Rússia também não correspondeu às expectativas e cresceu apenas 78,4% no período, bem menos que os 127,3% previstos no trabalho da Goldman Sachs. A China e a Índia superaram as projeções: cresceram respectivamente 425,4% e 229,8%, bem mais que os previstos 249,3% e 206,1%.

É incrível a semelhança das curvas das linhas do Brasil e da Rússia. Observe que ambos os países acompanharam praticamente a trajetória prevista na primeira década do século, superando razoavelmente a crise global de 2008. A partir de 2014, porém, passaram a ter crescimento sistematicamente inferior ao previsto no estudo.

Por que Brasil e Rússia ficaram para trás na corrida do Brics? As causas têm diferenças e semelhanças. No caso da Rússia, segundo analistas, houve grande impacto na economia interna das sanções aplicadas pelas potências ocidentais a partir de 2014 por causa da anexação da Crimeia. Ocorreu também uma queda dos preços do petróleo, principal produto de exportação russo. Além disso, problemas internos como a falta de reformas e a expansão do Estado são citados como inibidores de investimentos. E houve ainda, a partir de 2014, a adoção de uma severa política de restrição de gastos governamentais que desaqueceu a economia. Por tudo isso, mais de 20 milhões de russos, de uma população total de 145 milhões, vivem hoje abaixo da linha da pobreza.

No caso do Brasil, ainda vivemos uma disputa de diagnósticos. Por que o país desabou a partir de 2014? Os mais ortodoxos dirão - alias, já se cansaram de dizer - que tudo foi consequência de políticas irresponsáveis dos governos petistas, principalmente o de Dilma Rousseff, que criaram um grande problema fiscal e desestimularam investimentos. Os heterodoxos da esquerda também já se cansaram de dizer que tudo correu muito bem até 2013 - o gráfico abaixo mostra isso -, mas a economia desabou depois que passou a predominar a teoria da austeridade fiscal.

Esse embate nunca vai terminar. Fato é que o Brasil ficou parado no tempo nos últimos seis a sete anos. E há semelhança preocupante entre o que ocorre hoje com o Brasil e a derrocada russa a partir de 2014. Lá, as sanções externas se deram por questão geopolítica, a guerra com a Ucrânia pela posse da Crimeia. Aqui, as ameaças já começaram e as possíveis sanções envolvem questões ambientais, porque a comunidade internacional não aceita a catastrófica política brasileira nessa área.

Por enquanto, com Donald Trump na Casa Branca, o Brasil ainda pode continuar com sua política irresponsável, mas, se Joe Biden vencer as eleições, poderá sofrer uma asfixia econômica semelhante à da Rússia após a anexação da Crimeia. Não haverá mais complacência global para negacionismos ambientais. Para quem já é o pior do Brics, seria um desastre. O governo brasileiro, literalmente, brinca com fogo.

Lilia: defender a fauna aquática da Amazônia é defender o mundo

A exuberância vital da Amazônia na tríplice fronteira da Colômbia com o Peru e o Brasil tem uma qualidade estática. Destila uma aparente harmonia, embora esconda múltiplas tensões em sua tranquilidade. Aqui, entre os meandros de seus abundantes afluentes, que descem carregados de matéria orgânica, onde uma biodiversidade excepcional prolifera na inundação de suas águas lentas, nada o boto cor-de-rosa da Amazônia. Desde a antiguidade, este mamífero aquático ocupa um lugar sagrado nas cosmologias indígenas, como o faz em muitos cantos da imensa bacia amazônica.

Também para Lilia Isolina Java Tapayuri, líder comunitária da etnia Cocama, na reserva Tikuna-Kokama-Yagua, o boto cor-de-rosa é sagrado. Ele ocupa uma parte central em sua vida e trajetória profissional que a levou a ter um papel importante na conservação da fauna fluvial deste recanto da selva amazônica.

Lilia, de 35 anos, nasceu na comunidade de San Francisco, a poucos quilômetros a noroeste de Puerto Nariño, no rio Loretoyacu, um afluente do Amazonas. A fauna do rio a atrai desde pequena, que marcou tanto o significado de sua espiritualidade, quanto sua vida profissional.

Na cosmovisão dos povos indígenas do Trapézio Amazônico, em um mundo dominado pela água, o boto cor-de-rosa reina: uma criatura esguia, porém enigmática, inteligente e cobiçada. Nos últimos tempos, o boto tornou-se um ícone das iniciativas que lutam para preservar o ecossistema, que alcançaram também esta remota região amazônica.

Lilia, da etnia Tikuna da Amazônia colombiana, se
dedica à proteção dos seres vivos que habitam os rios

Estes indígenas, reassentados longe de seu território de origem no interior da floresta pela exploração da seringueira no século XIX, permaneceram junto ao rio, mesmo quando os preços da borracha despencaram e a escravidão dos índios foi abandonada. Com a chegada dos missionários messiânicos em meados do século XX, abandonaram suas casas comunais, consideradas promíscuas pelos ministros da igreja, e reassentadas em casas retangulares unifamiliares, com cortinas separatórias, paredes de madeira e telhados de zinco.

Apesar da evangelização, muitos preservaram em seu sincretismo fragmentos de seu universo místico ancestral, que divide o mundo em três níveis – água, ar e terra – e no qual a fauna aquática desempenha um papel central. E é neste contexto que, para Lilia, a conservação e defesa da fauna fluvial, como o peixe-boi, o boto, a lontra e o jacaré, significa não apenas defender a floresta e o ciclo biológico do ecossistema, mas também os estilos de vida dos povos indígenas e sua espiritualidade.

Mas de toda a rica fauna aquática amazônica, é o boto cor-de-rosa quem ocupa um lugar central no imaginário indígena. Lilia diz que ele aparece em rituais de celebração como o “pelazón”, um doloroso rito de passagem que consiste em arrancar todos os fios de cabelo das meninas, quando entram na puberdade. O boto aparece à comunidade como uma pessoa, sempre usando atributos humanos como um chapéu, um relógio, um cinto, ou sapatos. “Nessas reuniões”, explica Lilia, “o único capaz de determinar qual das pessoas presentes é um boto, é o xamã”. A pessoa misteriosa, que assiste a estes ritos festivos disfarçada, desaparece nas primeiras horas da manhã, deixando quase nenhum vestígio.

“Um dia o xamã disse aos donos da festa: se vocês não acreditam que ele não é uma pessoa, mas um animal, que é a Yakuruna, a mãe das águas, vamos fazê-lo beber toda a chicha, vamos embriagá-lo”. E a festa começou, e as meninas o fizeram dançar e lhe deram chicha até que se embebedou. Não conseguiu chegar ao rio, e adormeceu na margem. E quando brilharam os primeiros raios de sol, o homem começou a se transformar em um golfinho. E então o xamã lhes disse: vejam, o chapéu daquele boto é uma raia; o relógio é um caranguejo; o cinto é uma jiboia; e os sapatos são peixes. E foi assim que eles descobriram a Yakuruna."

“E a partir daquele dia descobriram também que as mulheres que viviam nas margens dos rios haviam desaparecido”, continua Lilia com olhos brilhantes e a voz um pouco quebrada pela emoção da história. “Elas se encantaram e como moravam perto da água, a Yakuruna as levou embora. Elas haviam se apaixonado pelo boto. Algumas engravidaram e deram à luz a bebês com forma de boto.”

Lilia tem uma relação muito poderosa com a Yakuruna, e hoje dedica sua vida à defesa diária de um ecossistema submetido a múltiplos e contínuos testes de pressão. Felizmente, foi possível controlar as ameaças da pesca ilegal, que anos atrás era muito agressiva devido à presença de barcos refrigerados, em sua maioria do Peru, do outro lado do rio, e métodos de pesca não tradicionais que dizimavam a população de peixes com muita rapidez.

Há alguns anos, uma balsa foi instalada no Lago Tarapoto, para controlar a entrada e saída de canoas, o que tem sido decisivo para o trabalho de conservação deste ecossistema. Dezenas de espécies protegidas estão sendo monitoradas, e Lilia, com coragem e autoridade inquestionável, dirige as operações da balsa, de onde é feita a contagem das populações de diferentes espécies de peixes e mamíferos aquáticos, como lontras, peixes-boi e golfinhos.

Mas a trajetória de Lilia, como o de tantas outras mulheres indígenas, é de luta e determinação constantes. Em meio a um patriarcalismo dominante, em um mundo em que a cosmovisão ancestral coloca os homens na água e as mulheres na terra, o domínio masculino tende a ser absoluto. Essa realidade exige que as mulheres tenham ousadia adicional, se quiserem trabalhar de igual para igual com os homens.

E foi isso que Lilia conseguiu graças à sua relação emocional e espiritual com os botos cor-de-rosa. Seu fascínio a levou a colaborar, ainda quando menina e com o apoio do pai, no cuidado de alguns espécimes. Através de sua sensibilidade especial no cuidado dos animais, Lilia encontrou a porta para aquele mundo, historicamente dominado, material e espiritualmente, pelo homem.

É notável o carinho e a ternura com que Lilia acolhe e mima em seus braços um peixe-boi estressado e desconsolado, que foi encontrado perdido por alguns pescadores. Lilia conta que, devido às mudanças nas condições climáticas e à diminuição do fluxo dos rios, as margens do rios estão mais secas, criando um ambiente que facilita o aparecimento de peixes-boi bebês encalhados, longe do alcance de suas mães.

Lilia abraça e alimenta o pequena peixe-boi com dedicação e carinho. A cena revela até que ponto a relação com a natureza e os seres vivos, não tão diferente dos humanos, é uma questão de empatia e sensibilidade, duas qualidades raras no universo masculino.

Como o peixe-boi, o boto é um animal inteligente e poderoso na água, mas fora dela é um ser absolutamente vulnerável. Ele requer hidratação contínua, carícias para aliviar o estresse extremo, cuidados com suas pequenas e poderosas pupilas.

Foi através desses cuidados que Lilia achou seu lugar no mundo. Seu avô, que já se dedicava a catalogar e proteger a população de botos, apreciou a devoção com que Lilia olhou para o animal enquanto ajudava a manter sua cauda imobilizada. Essa atividade não requer força, mas ternura. Foi esse poder de acalmar os botos que fez Lilia crescer dentro da Fundação Omacha e se tornar a coordenadora da área de fronteira de Puerto Nariño.

Ela compartilha com Aldo Curico, seu marido, essa vocação para o cuidado. Lilia e Aldo moram juntos há 13 anos e juntos passam seus conhecimentos para os três filhos, além de compartilhar o projeto de conservação. Lilia se uniu a Aldo como parceira na luta ambiental e na proteção do território. Ele conhece as áreas de reprodução da fauna aquática, e a acompanha nos longos dias dedicados ao cuidado dos animais.

As atividades permitem manter sua família, e Lila pode conciliar seu papel de mãe e seu desempenho profissional como líder ambiental, ao mesmo tempo que incentiva outras mulheres indígenas a fazerem o mesmo e se unirem à luta para conservar a vida selvagem e prevenir mudanças climáticas, que já afetam o território.

Mas a luta das mulheres indígenas aqui é longa e difícil. Como uma área de enorme beleza natural, a terra Tikuna foi recentemente sujeita à exploração turística, o que trouxe uma certa prosperidade, sem dúvida, mas ao mesmo tempo levou a uma proliferação de atividades ilícitas de todos os tipos. Entre as mais dolorosas e perversas, estão o tráfico de crianças, prostituição infantil e de jovens indígenas adolescentes, agredidas por turistas e outros tipos inescrupulosos.

No ano passado, foram detidos em Puerto Nariño vários indivíduos envolvidos na exploração sexual de meninas e adolescentes colombianas, peruanas e brasileiras. A porosidade da fronteira e a facilidade de mudar de jurisdição nacional em 15 minutos de canoa ao atravessar o rio, favorece a impunidade do crime.

O mesmo é válido para o tráfico de madeira obtida ilegalmente. Não parece ser uma atividade em grande escala, mas barco após barco, a madeira desce o Amazonas, atravessa fronteiras, quebra regulamentos. Ou com a pesca do pirarucu, um saboroso peixe amazônico, cuja caça é proibida na Colômbia durante alguns meses, mas não no Brasil ou no Peru. Como resultado, o peixe acaba sendo consumido também deste lado da fronteira, tornando praticamente impossível determinar sua nacionalidade.

Mas a covid-19, que chegou com toda a sua força incontrolável à Amazônia, trouxe ainda mais incerteza a essa dinâmica já complexa. Mais de 350 mortes e quase 15.000 infectados (dados de 30 de julho) são o prelúdio do que pode acabar acontecendo no território fronteiriço onde moram Lilia e sua família.

Além disso, a restrição da mobilidade também reduziu os controles ambientais sobre os afluentes. Agora, o desafio como comunidade proteger-se para evitar a propagação do vírus. “No início foi um pesadelo para nós, principalmente ouvir que era uma doença que não tinha cura, mas nos tratamos com base nas folhas e cascas das plantas”, diz Lilia, apegada à fé no saber ancestral e espírito de luta dessas comunidades indígenas para as quais, desde os tempos da conquista, resistir é existir.

Apesar das inseguranças deste território distante, Lilia está determinada a defender a floresta e o mundo aquático que a habita, dia após dia. Após alguns dias, ela leva o pequeno peixe-boi para Leticia, capital do departamento do Amazonas na região fronteiriça, onde há melhores instalações para seus cuidados.

Os xamãs dizem que entrar na água é como levantar uma cortina, e cruzar para o outro lado. É como atravessar a porta para outro mundo. E Lilia sabe que este mundo está se afastando destes territórios a uma velocidade já inalcançável.

Mas ela também sabe que ainda há uma oportunidade para que a água, a vida selvagem e a floresta tropical preservem uma harmonia universal que era, no passado, sua única natureza. Essa é sua luta.