quinta-feira, 6 de agosto de 2020

O boom do Brasil

O calendário do mundo

O planeta em que viveremos nas próximas décadas começa a ser definido nos próximos meses. Os contornos desse novo cenário global serão desenhados a partir de decisões sanitárias, políticas e econômicas a serem tomadas em breve pelas principais potências mundiais.

A pandemia nos trará um mundo ainda mais competitivo? Ou haverá espaço para que o sofrimento de milhões de infectados alimente projetos de cooperação? A crescente competição entre Estados Unidos e China permanecerá no centro das atenções? Ou ainda se pode esperar alguma iniciativa conjunta para redução de danos?

As perguntas são acompanhadas por números. Para eliminar completamente a ação do coronavírus, será necessário vacinar boa parte dos 7,8 bilhões de habitantes do planeta. Muitas empresas ao redor do mundo já estão em etapas avançadas de desenvolvimento de vacinas que pretendem colocar à disposição dessa enorme população.

Mas os primeiros da fila deverão ser os habitantes dos países mais ricos e poderosos. Segundo a agência de notícias Bloomberg, esses países já bloquearam mais de um bilhão das primeiras doses a serem produzidas no mundo. Diversos acordos estão sendo articulados entre governos dos Estados Unidos, da União Europeia, do Reino Unido e do Japão para garantir o rápido abastecimento de suas populações.

Existem também acordos com países em desenvolvimento, como os celebrados com o governo federal brasileiro e com o governo paulista, respectivamente, por grupos do Reino Unido e da China. Mas o Brasil pode ser um caso à parte, por ter uma enorme população afetada pela pandemia que atrai os laboratórios por sua capacidade de testar as novas vacinas.

Somente no caso da vacina desenvolvida em Oxford, o Brasil já obteve a promessa de 100 milhões de doses. Não é o suficiente para proteger toda a sua população. Mas as perspectivas parecem ainda mais sombrias em regiões como a África subsaariana e o Sudeste Asiático. Que potências ajudarão os países dessas regiões a vacinar sua gente?

Até o momento, a China prometeu tornar suas vacinas bens públicos globais. Ou seja, não deverá cobrar royalties pelo uso das descobertas feitas em seus laboratórios. Mesmo que isso se confirme, porém, ainda será necessário montar uma estratégia de produção e distribuição de vacinas para toda a população mundial. Até o momento não há indicações de que essa iniciativa esteja a caminho.


Por enquanto o que se pode identificar é uma corrida global por negócios e influência. A Rússia, que até então estava fora da lista de países com pesquisas mais avançadas, quer apressar a sua vacina e já busca parceiros internacionais para a sua produção, inclusive no Brasil. Empresas chinesas, europeias e norte-americanas já disputam contratos antes dos resultados da fase final dos testes que estão em andamento ou ainda nem começaram.

O diretor-geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Adhanom Gebreyesus, procura demonstrar cautela. Ele afirmou que não existe “bala de prata” contra a Covid 19 e que as vacinas, mesmo bem sucedidas, poderão ser efetivas apenas durante alguns meses.

Mesmo assim, o tema chegou definitivamente à política. Em busca de uma hoje pouco provável reeleição, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, quer pressa na liberação de vacinas para a população de seu país. Depois da má gestão do combate à pandemia, que fez da nação mais rica e poderosa igualmente a mais afetada pelo vírus, o presidente pretende fazer de uma rápida vacina poderosa arma na busca de mais um mandato.

Essa pressa pode ser perigosa, segundo especialistas ouvidos pelo The New York Times. Pesquisadores de dentro e de fora do governo, de acordo com o jornal, temem que a Casa Branca pressione a poderosa agência de liberação de alimentos e medicamentos, a Food and Drug Administration, a fazer vista grossa para dados ainda insuficientes e garantir liberação pelo menos parcial das vacinas antes das eleições de novembro.

Em campanha aberta pela reeleição, Trump disse que espera ter a vacina à disposição “muito, muito antes do final do ano, bem à frente do planejado”. O tempo dirá se ele tem razão e se a pressa o ajudará a obter os votos necessários para permanecer na Casa Branca.

Enquanto isso, o mundo espera por uma definição. O calendário eleitoral norte-americano terminou por coincidir com momentos decisivos do combate à pandemia. Tanto que Trump, em gesto mais ousado do que de costume, chegou a propor o adiamento das eleições. O comportamento errático do presidente já motivou a imprensa dos Estados Unidos a questionar seriamente se Trump viria a aceitar uma derrota nas urnas.

O resultado será conhecido em três meses. E a decisão dos eleitores norte-americanos tem tudo para se transformar em um dos principais fatores na construção da ordem global pós-pandemia. Para consumo doméstico, a escolha do novo presidente será importante para proteger a saúde da população e lhe abrir a perspectiva de novos empregos. Para os outros 7,5 bilhões de habitantes do planeta, há muito mais em jogo.

Trump adotou uma espécie de super-nacionalismo na Casa Branca. Fez do Make America Great Again o seu mantra, renegociou acordos comerciais, entrou em conflito com parceiros europeus como a Alemanha e, mais do que tudo, adotou uma dura política de contenção da China. Uma política que chega ao detalhe de proibir o funcionamento nos Estados Unidos de uma empresa chinesa como a Tik Tok, de compartilhamento de vídeos.

Caso o presidente vença as eleições, ele deve dobrar a aposta. Tanto que países como o Brasil ainda aguardam o resultado do pleito antes de tomar decisões importantes, como a permissão para que a também chinesa Huawei venha a participar da implantação da rede de quinta geração de telefonia celular – fundamental para toda a economia digital em expansão.

Se os eleitores americanos optarem pelo democrata Joe Biden, como até o momento sugerem as pesquisas, a postura internacional dos Estados Unidos deve mudar. De uma maneira ou de outra, a política de contenção da China deve continuar. Mas certamente haverá mais espaço para a cooperação – com os próprios chineses, em áreas determinadas, e com outros países.

Em recente artigo para o londrino Financial Times, o editor Martin Wolf alerta que, enquanto os Estados Unidos se retraem, o mundo “desmorona”. Na sua opinião, o país sucumbiu a divisões internas que levaram a um “nacionalismo destrutivo”. E Trump seria o protagonista da rejeição pelos Estados Unidos de seu “papel histórico como modelo de democracia liberal e líder de uma aliança de países com posições semelhantes”.

A China, prossegue o artigo, não fica atrás. Com Xi Jinping cada vez mais fortalecido, seu país tem respondido de forma agressiva a denúncias de violações de direitos humanos tanto em Hong Kong, por meio da adoção de uma nova Lei de Segurança Nacional, como no tratamento da minoria Uighur no noroeste chinês.

“De um lado temos uma superpotência nascente despótica, embora com fragilidades, e, de outro, a atual superpotência que perdeu seu caminho”, compara Wolf.

Quem vier a ocupar o Salão Oval a partir de janeiro terá pela frente um mundo em pedaços. Se tudo correr bem, as primeiras doses das vacinas contra a Covid 19 estarão sendo aplicadas, embora com preferência para as populações mais ricas do planeta. Ao mesmo tempo, os governos estarão em busca de fórmulas para reduzir o desemprego causado pela pandemia.

O mundo precisará de liderança. Mas não para fazer mais do mesmo. Até agora tem prevalecido uma intensa disputa por poder e influência. A rivalidade entre as principais potências não desaparecerá como por encanto. Um pouco de sabedoria, porém, poderá fazer uma grande diferença.

Os ricos e os pobres na visão de Guedes

O ministro Paulo Guedes vê a ação de ricos se escondendo atrás dos pobres nas críticas a um imposto sobre movimentação financeira. Na ida dele à Comissão Mista do Congresso sobre reforma tributária, o ponto mais tenso foi sempre a CPMF. Não aceitou o nome, mas diante de qualquer referência a ele Guedes ou se defendia ou atacava. Disse que só “maldade ou ignorância” levam as pessoas a comparar o imposto que ele quer criar com a velha CPMF. Ele falou isso num disparo contra o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma. A senadora Simone Tebet (MDB-MS) disse que no caso dela era “ignorância” porque ignora qual é a proposta do governo, dado que ela ainda não foi apresentada. 

Somando-se todas as falas, fica claro que, sim, o ministro pensa em tributar as transações financeiras. Mas ele diz que é apenas um imposto sobre as grandes empresas de tecnologia. Paulo Guedes defendeu a tese de que os ricos no Brasil falam em regressividade da CPMF para se esconder atrás dos pobres.

— Se eu falar que há alinhamento com um imposto de movimentação financeira, Deus me livre. Já caiu o Secretário da Receita, cai todo mundo que fala disso. Parece que é um imposto interditado. Muita gente não quer deixar as digitais em suas transações. Escondido atrás do pobre. Se o pobre que ganha R$ 200 de Bolsa Família, e falar que é um imposto de 0,2%, são R$ 0,40. Qualquer aumento de R$ 10 ou R$ 30 já tirou. Não dá para rico se esconder atrás de pobre. O rico é o que mais faz transações, o que mais consome serviços digitais. E está isento. Esconde atrás do pobre — disse o ministro.

Tudo é mais complexo. O imposto distorce preços, camufla a carga tributária, é indireto. E quem demitiu o secretário da Receita que falou no assunto foi o presidente Jair Bolsonaro.


Logo no começo da sessão, o ministro criticou o relator. Disse que Aguinaldo Ribeiro havia cometido um excesso quando disse que o imposto (a CPMF) era medieval:

— Ele sugeriu que a Google e o Netflix existiam na Idade Média quando falou que o imposto digital é medieval. Os padres, os bispos nas catedrais góticas usavam Netflix, Google, Waze.

O deputado João Roma (Republicanos-BA) disse que o relator se referia ao “absolutismo” de um governo que impõe um tributo sem explicar qual é. A senadora Simone Tebet propôs que o governo mostrasse todo o seu projeto:

— Vossa excelência diz que quem está falando de CPMF é por maldade ou ignorância. Eu me incluo entre os ignorantes. Eu quero entender se essa contribuição vai atingir as plataformas ou qualquer um que com um cartão de crédito compre um remédio na esquina.

O ministro não tirou a dúvida da senadora. E reclamou da imprensa, que o faz, segundo ele, ficar o tempo todo se defendendo. Perguntado pelo senador Reguffe (Podemos-DF) se atualizaria a tabela do Imposto de Renda, ele disse que fez as contas:

— Custa R$ 22 bilhões elevar a faixa de isenção para R$ 3 mil. É um Fundeb. Se for estendido às demais faixas a conta vai para R$ 36 bi. A classe política tem de decidir isso. O congressista foi eleito para tomar decisão.

Guedes lembrou que não atualizar a tabela do IR é uma forma oculta de tributar, mas atualizar seria indexar. Em outros países, disse, “todo mundo entende inflação como perda”. Na época da campanha, a promessa era elevar a faixa de isenção para R$ 5 mil.

O deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) criticou o aumento do PIS-Cofins (CBS) sobre livros. Guedes de novo falou da divisão entre ricos e pobres:

— O deputado seguramente não quer ser isentado quando compra um livro, né? Ele tem salário suficientemente alto para comprar e pagar imposto como todo mundo. Ele está preocupado com as classes baixas. Essas, se nós aumentarmos o Bolsa Família, vamos estar atendendo. Agora, acredito que eles estão mais preocupados em sobreviver do que em frequentar as livrarias que nós frequentamos.

O ministro disse que “quem tem poder em Brasília” consegue pagar menos imposto e por isso “há R$ 300 bilhões de desoneração”. E quem tem dinheiro “não paga imposto e vai pra Justiça” e assim há um contencioso de R$ 3,5 trilhões.

O que o ministro não explica é por que não cumpriu a promessa de campanha de acabar com os R$ 300 bilhões de renúncias fiscais e por que manteve as isenções da Zona Franca de Manaus, já que me disse que “não deixaria o Brasil todo ferrado” para manter a Zona Franca. Entre os conflitos verbais do ministro e os fatos há uma certa distância.

Ímpeto gastador do bolsonarismo cresce e preocupa

O senador Flávio Bolsonaro, o Zero Um, não poderia ter sido mais explícito: “O Paulo Guedes vai ter que dar um jeito de arrumar mais um dinheirinho para a gente dar continuidade a essas ações que têm impacto social e na infraestrutura”, disse ontem no GLOBO. Assim funciona o Brasil. Falta dinheiro? Pede ao ministro, ele dá “um jeito de arrumar”. O espírito que não vê obstáculo à alta de gastos está aí desde que Rui Barbosa assumiu o Ministério da Fazenda depois da Proclamação da República e, para estimular a industrialização, adotou a política de emissões descontroladas que resultou no Encilhamento. Volta e meia ressurge e, invariavelmente, acaba em inflação ou crise nas contas externas, em meio a recessão e estagnação.

A pandemia, que impôs mais gastos na crise, abriu uma nova oportunidade ao ímpeto desenvolvimentista. Seus partidários acenam com uma recuperação mais rápida se o Tesouro aproveitar o momento em que acertadamente libera bilhões ao combate da crise sanitária e do desamparo para também destinar recursos à infraestrutura. É uma causa politicamente atraente a aliados políticos do governo, que este ano enfrentam eleições locais.


O primeiro sinal visível de que o governo Bolsonaro reproduz o padrão histórico — a divisão entre quem deseja usar o Estado para acelerar a economia e os que se preocupam com equilíbrio fiscal e inflação — surgiu quando os militares do Planalto, mas não só eles, levaram ao presidente a proposta do Pró-Brasil. Renascia um programa que já teve vários nomes: Plano de Metas (Juscelino), PND (Geisel), PAC (Lula e Dilma). Sempre justificado pelo meritório objetivo de queimar etapas na corrida para o Brasil se tornar um país desenvolvido.

O Pró-Brasil tem o DNA de Rui Barbosa e deriva também da cepa desenvolvimentista oriunda dos quartéis — decisiva, no governo Geisel, para o aprofundamento da participação do Estado na economia, por meio do programa de substituição de importações, conduzido por um BNDES sustentado pelo Tesouro (modelo depois usado pelos petistas Lula e Dilma). Entende-se por que foi apresentado pelo ministro Braga Netto, general da ativa não faz muito tempo. Partiu de seu aliado, o ministro Rogério Marinho, a tentativa de excluir os investimentos do teto de gastos, drible para “arrumar um dinheirinho”.

Pela legislação fiscal, qualquer “dinheirinho” precisará sair de algum lugar, e os balões de ensaio do governo mal disfarçam a intenção de elevar a carga tributária. Bolsonaro, vale dizer, declara ser contra. Mas a tentação parece irresistível mesmo a Guedes, um liberal que representou, nas urnas em 2018, a antítese do ímpeto desenvolvimentista. Desde o tempo de Rui Barbosa, sabemos que “arrumar um dinheirinho” sem lastro custa caro lá na frente. Por que daria certo agora?

Para ser bolsonarista, basta ser

A vantagem de ser bolsonarista é a de que não é preciso pensar. Basta ser. Ser bolsonarista é apoiar um discurso que encolhe a cada dia de acordo com as conveniências de seu chefe. Como elas não param de surgir, o dito discurso ameaça chegar à abstração pura, impossível até de ser entendido, o que não fará diferença para seus adeptos. Se Bolsonaro decretar que seus seguidores devem usar a cueca por cima das calças, eles obedecerão —o que facilitará identificá-los e avaliar o seu peso real na população.

Ungido por essa aura de infalibilidade que eles lhe conferiram, Bolsonaro tem traído uma a uma as promessas de campanha que hipnotizaram seus eleitores.

O discurso anticorrupção, por exemplo, esfarela-se nas jogadas para silenciar a Lava Jato, cuja defesa foi decisiva para elegê-lo. Só o abandono dessa bandeira já devia bastar para intrigá-los —mas, como estes abdicaram de pensar, Bolsonaro segue alegremente no esvaziamento dos órgãos de investigação, no que é aplaudido em silêncio pelo PT. Pelo visto, essa súbita e divertida identificação entre Bolsonaro e Lula não abala seus fãs.

Tal esvaziamento, comandado pelo funcionário que Bolsonaro designou para a tarefa, o procurador-geral Augusto Aras, é necessário para proteger seus novos aliados: os políticos de quem passou a depender para protegê-lo contra a ameaça de impeachment. O pagamento desse apoio não se limita aos seus eleitores, mas atinge todo o país, com a entrega de ministérios, conselhos e estatais à "velha política" que ele dizia combater.

Outro mistério que passa ao largo de seus seguidores é que, ao promover o desmatamento da Amazônia, o extermínio dos povos indígenas pela ocupação de suas terras e a sistemática destruição de áreas protegidas, Bolsonaro está beneficiando uma categoria bem específica de negocistas. Isso ele não prometeu em campanha.
Ruy Castro

Pensamento do Dia

Devastação da Amazônia prejudica chuvas e ajuda Pantanal a bater recorde de queimadas

A Amazônia não é o único bioma brasileiro que está ameaçado. Enquanto a maior floresta tropical do mundo registrou recorde de queimadas em junho —além de aumento em julho e um crescimento acumulado de 25% no semestre— o Pantanal teve em julho o maior número de focos de incêndios desde 1998, início do registro da série histórica pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Foram 1.684 queimadas registradas ante 494 no mesmo mês em 2019, aumento de 3,4 vezes. O bioma é a maior planície alagada do mundo, e se estende pelo Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, e pelos vizinhos Paraguai e Bolívia. Também é habitat de milhares de espécies, algumas exclusivas do local.


O aumento da devastação do bioma tem relação com uma forte estiagem registrada no primeiro semestre deste ano, o que facilita a propagação das chamas: choveu um volume 50% menor nos primeiros meses do ano. E esta falta de chuvas pode ter relação com o que ocorre há milhares de quilômetros dali. Apesar da distância, especialistas apontam para uma ligação entre o que acontece na maior floresta tropical do mundo e no Pantanal. “Existem muitos estudos no Brasil que mostram como a umidade que sai da Amazônia abastece outras regiões do país, no Centro Oeste, Sudeste e Sul”, explica Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima.

Isso se dá por um fenômeno conhecido como rios voadores: “Em função de ventos alísios [que formam uma espécie de ciclo] e da cordilheira dos Andes, este rios voadores empurram a umidade da transpiração da floresta para baixo. Quando há uma estação mais seca na floresta ou um aumento do desmatamento ocorre desequilíbrio desses rios voadores e de todo o sistema hidrológico envolvido”, explica Astrini. A consequência seria uma redução nas chuvas e na umidade no Pantanal, o que favorece a proliferação de incêndios.

Na linha de frente do combate às queimadas na região está Alexandre Pereira, analista ambiental do Ibama que atua no programa de combate ao fogo da entidade, conhecido como Prevfogo. “Este ano está sendo atípico com relação às questões climáticas, com chuvas abaixo da média e temperaturas acima”, afirma. Ele explica que uma das consequências disso é uma alteração no regime de cheias e vazantes do Pantanal: “Este ano vemos uma cheia muito baixa, uma das menores desde a década de 1970, quanto o bioma viveu uma grande seca”. Isso cria “um cenário perfeito para os grandes incêndios florestais”, diz.

A situação da Amazônia também é vista como um fator que influencia a devastação do Pantanal, segundo Pereira. “O desmatamento da floresta tem reflexo sobre a dinâmica aqui, uma vez que as chuvas provocadas pelos rios voadores regulam as cheias desta região”, diz. O analista aponta que já se observa um desregramento do regime de chuvas no local, com um volume grande de pluviometria se concentrando em poucos dias. “Este volume grande de chuva caindo em um curto espaço de tempo não permite que o solo absorva a água e alimente o lençol freático. Então ela escoa”, afirma.

Os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em apontar que praticamente todos os incêndios no bioma este ano tem origem humana, uma vez que fogos provocados por descargas elétricas estão descartados tendo em vista a não formação de nuvens de chuva nos últimos meses. Então quem são os responsáveis pelas queimadas? “Culturalmente no Pantanal, a exemplo do que houve em 2019, a imensa maioria delas são causadas por renovação de pasto em grandes propriedades rurais”, explica André Siqueira diretor-presidente da ECOA, uma organização não-governamental voltada para a proteção sócioambiental. Ele aponta que há uma tentativa do Governo de tentar imputar a devastação às comunidades ribeirinhas, mais vulneráveis socialmente, “como se fosse possível que sejam as roças de subsistência que estão por trás de todos estes incêndios”. O presidente Bolsonaro chegou a acusar, no final do ano passado, as ONGs pela devastação da Amazônia.

Já prevendo uma situação dramática na Amazônia e no Pantanal e enfrentando críticas até mesmo de grandes empresas e bancos pela condução da política ambiental, o Governo proibiu em 16 de julho queimadas nas duas regiões por até 120 dias. De acordo com o texto, assinado pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, “ficam autorizadas as queimas controladas em áreas não localizadas na Amazônia Legal e no Pantanal, quando imprescindíveis à realização de práticas agrícolas, desde que autorizadas previamente pelo órgão ambiental estadual”. O teor se sobrepõe a uma lei estadual do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso que já proíbe queimadas nos Estados neste período.

Apesar deste passo no sentido de controlar a devastação dos biomas brasileiros, Salles tentou alterar a meta de redução de desmatamentos e incêndios ilegais no início de agosto, segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo. O plano plurianual do Governo, com validade até 2023, previa redução de 90% da devastação. Depois de propor a troca deste objetivo por outras metas que delimitavam a diminuição das queimadas a certas áreas, o ministro deu sinal de que recuou da ideia, criticada por ambientalistas e partidos de oposição. A polêmica fez com que até a pasta comandada por Paulo Guedes se manifestasse sobre o assunto: “O Ministério da Economia lembra que o Brasil já tem meta de redução de 100% do desmatamento ilegal até 2030, previsto na nossa NDC (Contribuição Nacionalmente Determinada), a qual está mantida”. Ainda não está claro, no entanto, se haverá uma redução da meta para 2023.

O presidente da Comissão de Meio Ambiente do Senado, Fabiano Contarato (Rede-ES), usou as redes sociais para criticar a atitude de Salles. “A promessa de aproveitar a pandemia para ‘passar a boiada’ [frase dita por Salles em uma reunião ministerial feita pública, em referência ao desejo de mudar regras ambientais durante a emergência sanitária] está sendo cumprida: Bolsonaro entregou o patrimônio florestal nas mãos de criminosos, grileiros, garimpeiros ilegais e desmatadores. O prejuízo ao país será irreversível!”, escreveu.

Nos dias tristes não se fala de aves

Nos dias tristes não se fala de aves.
Liga-se aos amigos e eles não estão
e depois pede-se lume na rua
como quem pede um coração
novinho em folha.
Nos dias tristes é Inverno
e anda-se ao frio de cigarro na mão
a queimar o vento e diz-se
- bom dia!
às pessoas que passam
depois de já terem passado
e de não termos reparado nisso.

Nos dias tristes fala-se sozinho
e há sempre uma ave que pousa
no cimo das coisas
em vez de nos pousar no coração
e não fala connosco.

Filipa Leal

Quem somos?

A obviedade da pergunta fala da sua surpreendente e intrigante força. Já vivemos guerras mundiais, mas, nesses conflitos, o inimigo tem uma visibilidade uniformizada que obriga a saber quem somos. Somos, é claro, os bons, os agredidos e os visionários; enquanto “ele” — o adversário que nos obriga a ter uma bandeira — desnuda aquilo que nos falta ou que possuímos em demasia.

O ranço de castigo da pandemia engendra uma batalha bíblica. A máscara é seu emblema e escudo material contra um inimigo que mata impiedosamente, mas, como não tem consciência, projeto ou plano, esses traços que definem o que somos, lutamos no nevoeiro.

É claro que, como sempre ocorreu com os escravos, os pobres sofrem muito mais. Mas a desgraça é que qualquer um pode “pegar” ou “ter” o vírus. Dele, como diziam os antigos, ninguém escapa: nem o rei, nem a rainha nem o Papa. Quem não pega paga o preço de ver a olho nu uma estrutura social desenhada para a injustiça e a indiferença, essas mães de uma desigualdade estrutural e, bem pior, estruturada.

O inimigo humano, ou humanizado como um animal selvagem, é previsível. Para ele, somos um oponente ou um alimento. O vírus, porém, ataca como a velhice ou a bem conhecida burrice, alérgica ao bom senso. A Covid-19 envenena o ar e interdita o abraço.


No Brasil, a pandemia desnuda quem se imagina especial, nobre ou superior. Essa gente que está em todo lugar e tem a liberdade de não obedecer a nenhuma regra ou de servir a qualquer governo. “Eu fumo há 70 anos, e meu cardiologista morreu aos 60! Acho um abuso um sinal vermelho e, quando vejo um pedestre atravessando a rua, acelero meu carro, principalmente se for um velho caquético ou uma negra com o filho nos braços.” Civilização, dizem, é saber o seu lugar!

Alguns devem ser esculhambados, outros são intocáveis (pertencem a Deus, como o João; ou ao diabo, como Madame Satã). Se você ainda não aprendeu essa distinção, você está perdido...

Num Brasil pré-globalizado, um telefonema do Rio para Niterói tinha que ser solicitado, todo mundo andava de gravata, e os pretos eram impedidos de frequentar certos lugares porque sabiam quem eram. Até a praia podia ser contaminada por mulatos farofeiros, e não por morenos queimados como nós.

Neste reino da desigualdade, era raro não saber quem éramos. Tínhamos pai e mãe e nome de família! Conhecíamos “todo mundo” — um eufemismo para os donos do poder que até hoje existem e mostram sem cerimônias suas patas. Vivíamos (?) numa sociedade onde todos sabiam quem eram. Não duvidávamos das nossas identidades sociais abarrotadas de prerrogativas, privilégios, subordinação e, consequentemente, de hipocrisia. Nesse sistema, os indesejáveis, como foi o caso de Lima Barreto (tido como mulato pernóstico), eram banidos dos jornais.

Numa sociedade de ideário aristocrático, na qual abundam gênios e príncipes, reis, queridinhos e patrões, os círculos mentais estão bem demarcados. A crítica honesta é rara; a franqueza, colega da honestidade que desmascara, é indesejável.

Dominados pelas gradações encarnadas em cargos, pessoas e relações, nosso “normal” é a desigualdade estampada numa ética da pobreza e da caridade pessoal, que reafirma a superioridade generosa de quem dá e a piedosa inferioridade de quem recebe e claramente inibe a filantropia institucionalizada e impessoal. A pandemia revela um sistema desenhado para produzir devedores. Convivemos mal com cidadãos (a palavra é ofensiva), preferindo dependentes.

Cabe a pergunta: num Brasil que engendra multidões de mandões, patrões, gênios da raça, salvadores da pátria, homens de Deus e leis que variam de acordo com quem comete o crime, será mesmo preciso usar máscaras? Ou estamos todos mascarados porque sabemos bem quem somos?

Biomas em chamas

A sucessão de recordes de desmatamento e queimadas ilegais na Região Amazônica tem sido rotina no governo de um presidente que vê a proteção ambiental como uma causa menor, uma agenda de “esquerdistas” que merece nada além de seu mais absoluto desprezo. Jair Bolsonaro, não é de hoje, tem mostrado dificuldade para compreender que desenvolvimento econômico e preservação do meio ambiente não são agendas antitéticas, e sim políticas indissociáveis no mundo moderno. A sua obtusa visão da chamada questão ambiental é uma das razões pelas quais o Brasil hoje é tido como um pária internacional.

Há poucos dias, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgou relatório mostrando que no mês passado foi registrado um aumento de 28% nos focos de incêndio na floresta em relação a julho de 2019 – 6.803 ante 5.318 há um ano. O Inpe também já havia revelado que em junho foi registrado o maior número de queimadas na Amazônia dos últimos 13 anos. Onde estará o limite para tanto descaso com o meio ambiente? Em recente artigo publicado no Estado, o jornalista João Lara Mesquita alertou que com cerca de 20% – ou 800 mil km2 – de sua área original perdida, a devastação da Amazônia se aproxima do “ponto sem retorno” para o processo de “savanização”, que, segundo especialistas, ocorrerá quando se atingir o porcentual de 30% de perda da mata nativa.

A divulgação do novo relatório do Inpe apontando outro recorde de queimadas teria frustrado a expectativa do vice-presidente Hamilton Mourão, que no comando do Conselho Nacional da Amazônia Legal já esperava obter alguns resultados positivos de sua gestão. Além disso, em meados do mês passado, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que proíbe queimadas no Brasil pelo prazo de 120 dias, que poderia estar refletido no levantamento. O problema é que desmatadores ilegais, por definição, não respeitam leis e decretos. E as medidas de combate aos crimes ambientais propostas por Mourão no âmbito do conselho que ele preside, embora acertadas, levam tempo para surtir efeitos.

Entre as medidas propostas por Mourão está o fortalecimento dos órgãos federais de controle e combate aos delitos ambientais, como o Ibama, o ICMBio, o Incra e a Funai. A medida se justifica porque o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, tem atuado com especial denodo para desmantelar tais órgãos desde que assumiu a pasta. Contudo, esse resgate, por assim dizer, implica a realização de concursos públicos, treinamento dos aprovados e planejamento de suas ações na região. Isso leva tempo, evidentemente.

Diante dessas limitações de ordem prática, ajudaria muito se o governo federal agisse em harmonia na definição de políticas voltadas para a proteção do meio ambiente e se empenhasse em usar da melhor forma possível os recursos que hoje já estão disponíveis. Mas o que se vê é o contrário. Desmonte do que já existe e desqualificação de quadros técnicos de instituições científicas respeitadas, como o Inpe.

Como compatibilizar a atuação do vice-presidente no Conselho da Amazônia com a gestão “por baciada” do ministro Salles na pasta do Meio Ambiente? Não há articulação, há sinalizações opostas. Enquanto Mourão tem sido pressionado a agir para entregar resultados e tenta levar adiante seu plano de ação, apresentado há algumas semanas, Salles sugere driblar as metas de proteção ambiental que constam do Plano Plurianual 2023 elaborado pelo próprio Poder Executivo. Beira o inacreditável. Já que o governo não conseguirá cumprir as metas, inventam-se novas metas que caibam na medida da conveniência do governo. Assim fica fácil administrar um país.

O Pantanal, outro importantíssimo bioma brasileiro, arde em chamas como nunca desde 1998, quando o Inpe passou a monitorar focos de incêndio. O mesmo se dá, em diferentes graus, no Cerrado, na Caatinga e na Mata Atlântica. Não é coincidência, não é sazonalidade. É descaso.

Hoje, 6 de agosto, é dia de homenagear um herói brasileiro: o major Plácido de Castro

É decepcionante constatar que o Brasil não cuida de sua memória. Se você perguntar a algum historiador brasileiro sobre o dia 6 de agosto, possivelmente ele não lembrará do que se trata.Se for estudioso da História das Américas, poderá lembrar que foi em 6 de agosto que Simón Bolívar entrou em Caracas, após a vitória de Taguanes, e recebeu o título honorífico de Libertador, e 12 anos depois, também num 6 de agosto, Bolívar declarou a independência do país que levou seu nome, a Bolívia.

Mas dificilmente o historiador se lembrará do que deveria significar o 6 de agosto para os brasileiros, por ser a data em que se iniciou a revolução que culminou na anexação do Acre ao território nacional, livrando a Amazônia da possibilidade de ser colonizada pelo Império britânico, que na época (1902) dominava a maior parte do mundo e estava tentando usurpar a Amazônia com apoio dos Estados Unidos, que começava a ser firmar como grande potência.

Naquele início de século XX, a borracha já se tornara uma das mais estratégicas matérias-primas, e toda a produção mundial provinha de um só lugar, a Amazônia, onde a nativa hevea brasiliensis vicejava com maior abundância justamente no território boliviano do Acre, uma extensa região que desde 1870 vinha sendo colonizada por brasileiros, que emigravam para viver da borracha. Lá havia seringueiros e aventureiros de todo o país, mas a imensa maioria vinha do Nordeste, sobretudo do Ceará.

Um desses aventureiros chamava-se José Plácido de Castro, era gaúcho de São Gabriel, filho do capitão Prudente da Fonseca Castro, veterano das campanhas do Uruguai e do Paraguai, e de Dona Zeferina de Oliveira Castro.

Plácido começou a trabalhar aos 12 anos – quando perdeu o pai – para sustentar a mãe e os seis irmãos. Aos 16 anos, ingressou na vida militar, chegando a 2° sargento, entrou na Escola Militar do Rio Grande do Sul e depois lutou na Revolução Federalista ao lado dos “maragatos”, chegando ao posto de Major.

Com a derrota para os “pica-paus”, que defendiam o governo Floriano Peixoto, Plácido decidiu abandonar a carreira militar e recusou a anistia oferecida aos envolvidos na Revolução.

Mudou-se para o Rio de Janeiro, foi inspetor de alunos do Colégio Militar, depois empregou-se como fiscal nas docas do porto de Santos, em São Paulo e, voltando ao Rio, obteve o título de agrimensor. Inquieto e à procura de desafios, viajou para o Acre em 1899, para tentar a sorte como agrimensor, e logo arranjou trabalho por lá.

Na época, já havia a disputa de terras com a Bolívia, os colonos brasileiros tinham até declarado duas vezes a independência do Acre, mas o governo brasileiro mandava tropas para devolver o território. Até que surgiu a notícia de que a Bolívia havia arrendado o Acre aos Estados Unidos, através do Bolivian Syndicate, uma associação anglo-americana sediada em Nova York e presidida pelo filho do então presidente dos EUA, William McKinley.

O acordo autorizava o Bolivian Syndicate a usar força militar como garantia de seus direitos na região, onde as leis seriam impostam por juízes norte-americanos, a língua oficial seria o inglês e os Estados Unidos se comprometiam a fornecer todo o armamento que necessitassem. Além disso, tinham a opção preferencial de compra do território arrendado, caso viesse a ser colocado à venda, e a Bolívia também se comprometia, no caso de uma guerra, a entregar a região aos Estados Unidos.

Plácido de Castro estava demarcando o seringal Victoria, em 1902, quando ficou sabendo do acordo pelos jornais e viu nisto uma ameaça à integridade do Brasil. Tinha 27 anos, era o único militar de carreira que morava naquela região e decidiu liderar uma resistência. Convocou os comerciantes, seringalistas e emigrantes brasileiros, formou um pequeno grupo de guerrilheiros e aproveitou o dia 6 de agosto, feriado nacional na Bolívia, para iniciar a revolução.

Quando Plácido chegou com cerca de 60 guerrilheiros ao pequeno quartel do Exército boliviano na vila de Rio Branco, às margens do Rio Acre, o oficial boliviano julgou que os brasileiros vinham comemorar o feriado. “Es temprano para la fiesta” (É cedo para a festa), disse ele, e Castro respondeu: “Non es fiesta, es revolución”. E a guerra começou, para desespero do governo brasileiro, que não se interessava pelo Acre.

A Bolívia logo enviou mais um contingente de 400 homens, comandados pelo coronel Rosendo Rojas. Mas Plácido de Castro, precursor da guerrilha na selva, se revelou um grande estrategista e conseguiu enfrentar e derrotar o Exército e a Marinha da Bolívia em seguidos enfrentamentos.

Os combates da Revolução Acreana duraram vários meses e a revolução só acabou em janeiro de 1903, com a assinatura do Tratado de Petrópolis, pelo qual o Brasil comprou o território do Acre à Bolívia, anexando essas terras ao nosso país.

Com o fim do conflito, o Brasil seguiu dominando o comércio mundial da borracha, e a revolução liderada por Plácido de Castro sepultou o sonho anglo-americano de dominar o Acre e a Amazônia. Ao vencer o Exército e a Marinha da Bolívia, aqueles valorosos guerrilheiros brasileiros na verdade estavam derrotando também a maior potência militar do mundo, a Inglaterra, e seu principal aliado, os Estados Unidos.

Esta é uma história linda, que infelizmente não se aprende nos colégios brasileiros. O major Plácido de Castro merecia ser lembrado e homenageado como um dos maiores heróis da História do Brasil, ao lado dos almirantes Tamandaré e Barroso, do duque de Caxias e do marechal Rondon, que é precursor da força armada do futuro, aquela que, ao enfrentar um adversário mais fraco, apenas o domina, ao invés de aniquilá-lo. Sua ordem aos comandados (“Matar, jamais; morrer, se for preciso…”) há de constar na História da Humanidade.