quinta-feira, 5 de abril de 2018

O bom senso volta ao Supremo

Depois de vários dias de tensão, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Lula da Silva. Prevaleceu, afinal, o bom senso que parecia faltar naquele canto da Praça dos Três Poderes. A principal Corte do País entendeu que, nesse caso específico, não caberia impedir a prisão do líder petista, se decidida, após julgamentos regulares em duas instâncias.

A despeito do esforço de alguns ministros em favor do ex-presidente – um deles, Marco Aurélio Mello, chegou a ser grosseiro com a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, e com a ministra Rosa Weber quando percebeu para onde se encaminhava a votação –, a Corte não permitiu que se consumasse um casuísmo: a mudança de jurisprudência em relação à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância tendo por base um pedido que não poderia ir além da pessoa do condenado Luiz Inácio. E, assim, o Supremo interrompeu uma série de despautérios. Não se curvou a Lula e preservou um mínimo de respeito pelas decisões tomadas no âmbito dos tribunais inferiores.

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O voto majoritário, atendo-se a maioria dos juízes ao caso em pauta, corroborou a decisão que o Supremo tomou em novembro de 2016, portanto há menos de dois anos, em favor da possibilidade do início da execução de pena de prisão após condenação em segunda instância. Desde então não se exige o integral trânsito em julgado para que a pena comece a ser cumprida, bastando para isso que haja uma decisão colegiada em segundo grau. Considerou-se que, após essa instância, não se está mais analisando fatos e provas sobre a culpabilidade do réu, já devidamente assentada. Em qualquer país civilizado, a sentença de um juiz deve ser cumprida, ainda que caibam recursos; no Brasil, contudo, até essa importante decisão do Supremo, sentenças de juízes de tribunais inferiores não valiam nem o papel em que estavam escritas, a depender da capacidade financeira ou do poder político do réu.

Era nisso que apostava o sr. Lula da Silva. O chefão petista tentou transformar seu processo em questão política, pois, no estrito âmbito judicial, não cabia mais nenhuma dúvida sobre sua culpa. O ex-presidente foi condenado em 12 de julho de 2017 pelo juiz federal Sérgio Moro a nove anos e seis meses de prisão, pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Posteriormente, em 24 de janeiro deste ano, ao analisar recurso da defesa, os três desembargadores da 8.ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) não apenas confirmaram por unanimidade a condenação, como ainda ampliaram a pena para 12 anos e um mês de prisão. Em seguida, em 6 de março, os cinco ministros da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça rejeitaram pedido de habeas corpus preventivo impetrado pela defesa de Lula. A decisão teve como base a jurisprudência firmada pelo STF a respeito da possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. Por fim, em 26 de março, os três desembargadores da 8.ª Turma do TRF-4 rejeitaram o derradeiro recurso dos advogados de Lula. Ou seja, em todo esse percurso, no qual todos os ritos processuais foram rigorosamente respeitados, em que o réu teve amplamente assegurada sua defesa, Lula não teve um único voto a seu favor. Portanto, não é possível, no terreno do direito, falar em presunção de inocência ou de cerceamento ao amplo direito de defesa.

É por esse motivo que Lula passou todo o processo a se dizer “perseguido político”, como se a incontestável unanimidade de sua condenação só pudesse ser explicada por uma colossal conspiração das “elites”, sempre indispostas com a dedicação desse grande brasileiro aos pobres e desvalidos do País, segundo a mitologia lulopetista.

Lula, corretamente, nunca acreditou que pudesse engabelar os juízes das instâncias inferiores, que julgaram seu caso exclusivamente conforme as provas. Ao politizar a questão, imaginava que pudesse contar, no Supremo, com os votos que lhe faltaram nos outros tribunais, pois aquela Corte vinha adotando estranhas decisões, algumas contra legem, outras de mera invasão de prerrogativas alheias.

O que se viu na sessão de ontem, contudo, foi a prevalência do respeito do Supremo à sua própria jurisprudência. Considerando-se a confusão institucional em que o País está metido, só isso já deve ser considerado um grande avanço.

Pátria ausente

Passei a Semana Santa com as cartas de Sêneca. Faminto de consolo e esperança, suas palavras brilham como Sol, depois de vinte séculos. Livres de ilusão, as cartas não cultivam dissabores, antes produzem um sentimento de autonomia e liberdade diante dos reveses destino e da humana condição.

Uma filosofia sem arroubos, madura, pronunciada a meia voz, ensaiando um repertório de escolhas capazes de nos libertar da dispersão e da tristeza de que somos presas. E impedir nossa entrada num labirinto de dor e aflição, de onde mal conseguimos sair, tão prisioneiros nos sentimos. 

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Honoré Daumier
As cartas de Sêneca podem servir como guia de sobrevivência ao Brasil atual, ao profundo mal-estar que nos fere a cada dia, com seu instinto de ódio e guerra, dos súditos da cólera e das paixões tristes, movidos por slogans e ações políticas que redundam em teatro de bonecos. As cartas oferecem um sabor de exílio, no entanto para dentro, como quem tempera seus instintos, num alternar-se de triunfo e desventura, que foi quanto vivemos nos últimos vinte anos, em compasso de espera de novas eleições. 

Passeio no jardim, com minha velha pastora alemã, de olhos cansados e audição precária, enquanto leio Sêneca para esconjurar o travo amargo que nos cerca e não dá trégua. A carta sobre a virtude traz uma leveza singular, assim como aquela sobre o uso do tempo e ainda outra acerca das vantagens da vida solitária. A conclusão da carta sobre as paixões diz: “amamos nossos vícios, preferimos defendê-los e desculpá-los.” Fecho suas páginas, expulso, de repente, de uma impossível harmonia.

Porque o Brasil é uma ideia fixa, rumor de fundo, paixão e desengano, dolorosa ferida, hábito feroz. Como desligar-se de seus reveses e rupturas, esse meu vício cruel, que desculpo e defendo. Talvez porque não aceite uma cidadania “in vitro”, separada por estamentos, redimida tão somente pela força das armas quando assassinam uma vereadora e atiram na caravana de um ex-presidente, sem contar as mortes no morro e no asfalto, insultos aos direitos humanos, vergonha da sociedade civil.

Longe de seus destinos, uma parte do Brasil vai à deriva, enquanto outra parte, ativa, silenciosa e resiliente não perde o norte. Setores do campo e da escola, da periferia e da universidade sentem as dores do parto. Um Brasil a contrapelo, maior que seus representantes, centrado na ética do trabalho e da palavra, radicado em práticas mutualistas, já se tornou irreversível, desde as camadas populares.

As cartas de Sêneca dirigem-se hoje para uma ideia republicana em ato, concreta e cidadã, com um profuso sentimento de paz, construído passo a passo com a simetria de oportunidades iguais para todos.

Como disse Sophia de Mello Breyner: “Quando a pátria que temos não a temos, perdida por silêncio e por renúncia, até a voz do mar se torna exílio, e a luz que nos rodeia é como grades.”

Gente fora do mapa

The spirit of India, captured by Steve McCurry – in pictures A tailor carries his sewing machine through monsoon waters, Porbandar, Gujarat, 1983
Steve McCurry

Fugir do caos

Lendo um livro que me emociona, do pensador canadense professor Jordan Peterson: 12 Rules for Life, An Antidote for Chaos. Parece que está por ser publicado no Brasil. Corram e leiam! Não é autoajuda, apesar do título, que talvez nos induza ao erro. É um ensaio muito agradável de se ler, misturando filosofia, mitologia, psicologia, antropologia, política: revoluciona um pouco o conceito de democracia e liberdade, quando beiram a bagunça e o caos.

Naturalmente, não o resumirei aqui, mas comento algumas de suas ideias de que compartilho inteiramente. Uma delas, o conceito ilusório de liberdade como aquela cenoura na frente do jumento para que ele ande. Liberdade como penso que deve ser, que nos faz crescer, conviver, eventualmente progredir, construir e atingir certo grau disso que chamamos "felicidade", num meio-termo entre o caos e a rigidez.

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Rigidez, jamais. Nem mesmo a rígida ideia de liberdade como ausência de regras, de disciplina, de concessões, de limitações. O ser humano, como os outros animais, necessita de regras e ordem. Não para se punir ou mutilar, mas para que veja alguma luz, enxergue algum caminho, e se sinta bem progredindo enquanto ser humano.

No começo de minha carreira, traduzi um livro de uma psicóloga americana (esqueci, nesse longo tempo, nome e título) sobre crianças criadas praticamente sem limites. Um menininho tanto atormentou a mãe, que certa vez ela lhe deu uma palmada no traseiro. Para horror de certos educadores ultramodernos, o menino suspirou aliviado, abraçou a mãe e disse algo como "até que enfim você prestou atenção em mim". Sem limites, sem regras, seremos piores do que os animais selvagens, que se guiam pelo instinto.

Nós, que tanto falamos em natureza, andamos bem longe dela, nossos instintos se embotaram, e nem todos servem para conviver no mundo moderno: matar, devorar o outro que nos incomoda, não são atividades que se prezem. No fundo de cada um de nós, sobrevive um predador atávico, que precisa de algumas regras para poder criar sua personalidade, sua vida, seu mundo. Este mundo, em que se possa viver em paz. O caos conduz ao caos, provoca profunda angústia, causa destruição e morte, e eventualmente loucura. E não me refiro a um mítico caos total, mas a um nível preocupante de desordem, violência, agressividade, zero empatia.

Então, como tantas vezes nesses anos todos escrevendo em revista ou jornal, ou falando nas palestras, que hoje raramente aceito, repito aqui, incansável e convicta: tudo começa em casa. A educação, a formação, as bases de uma vida feliz, conforme o sonho ou a possibilidade de cada um.

Viver decentemente, conquistar algumas coisas positivas, sentir-se bem na própria pele exige que se fuja do caos, que pode parecer interessante para alguns visionários ou ideólogos obstinados, mas é feio, burro, e pobre. E se não recebermos desde pequenos algum senso de ordem, regras, conceitos de vida, passaremos o resto da nossa lutando talvez de maneira inglória para não sermos selvagens detestados ou temidos.

Assim que o livro do doutor Peterson sair no Brasil (ou pela Amazon para quem lê no idioma original), procurem por ele: faz bem à alma, abre a cabeça, e de certa forma conforta saber que nós, que apreciamos alguma ordem, não estamos sozinhos.

Imprensa atrevida

Para Gilmar Mendes, a imprensa é opressiva. Para Lula, trata-se de uma mídia golpista. Para Temer, muitos jornalistas só querem atrapalhar seu governo. E assim por diante, todo mundo tem uma bronca da imprensa.

Não é novidade, nem uma questão nacional.

Décadas atrás, Adlai Stevenson, político americano do pós-guerra, saiu com uma frase que se tornou clássica: "Sim, eu sei o que fazem os editores, eles separam o joio do trigo e publicam o joio".

Esse é o lado daqueles que são, digamos, alvos da notícia. Do lado dos jornalistas, do nosso lado, o clássico vem de um lema do Times londrino, de mais de 200 anos: "Notícia é tudo aquilo que alguém não quer ver publicado; o resto é propaganda".

Ou seja, aquilo que Stevenson chamava de trigo - e que ele gostaria de ver publicado - é o que os jornalistas consideravam propaganda do governo ou de algum político.

Ainda é assim.

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Mas é preciso reconhecer que a análise é difícil. É que não se pode falar "a" imprensa. Há muita diversificação entre os veículos, sendo a principal divisão entre os independentes e os chapa-branca. Estes são aqueles que só existem para fazer propaganda e/ou defender os interesses do governo, de políticos, de igrejas e de negócios setoriais. Vivem de verbas públicas ou de dinheiro colocado pelo patrocinador.

A imprensa independente é aquela que vive da notícia e, no caso da tevê, do entretenimento. Vive no duplo sentido: tem que ser reconhecida como tal pelo público (credibilidade) e tem de ganhar dinheiro com venda em bancas, de assinaturas e de publicidade. A independência é editorial e econômica ao mesmo tempo.

Aqui, essa imprensa independente amadureceu ao longo da vida democrática pós-1985.

Tem várias características, algumas boas, outras ruins, mas há um ponto essencial. A imprensa brasileira não é bem agressiva, é atrevida. Nem sempre foi. Tornou-se atrevida, especialmente a política, em tempos relativamente recentes.

Por exemplo: alguns anos atrás, repórteres políticos não se atreveriam a perguntar a um ministro do STF quem estava pagando a viagem dele ao exterior - como foi a pergunta que tanto irritou Gilmar Mendes.

Na verdade, não é que não se atreveriam, nem lhes ocorria perguntar esse tipo de coisa. Parecia normal que autoridades tivessem privilégios, incluindo as famosas mordomias.

Também não era um vício apenas nacional. Na Washington de John Kennedy, todo mundo sabia que o presidente gostava muito de mulheres e que as recebia na piscina da Casa Branca quando Jacqueline não estava por perto. Jornalistas sabiam, alguns até participavam das farras - e não publicavam nada. Ao contrário, publicava-se que se tratava de um feliz casal presidencial.

Em Brasília dos anos 80 e 90, os jornalistas também sabiam das mazelas pessoais (amantes, rolos) e, digamos, profissionais dos políticos, tais como negócios paralelos. Não lhes ocorria publicar, mesmo porque muitos jornalistas desfrutavam de vantagens indevidas, como empregos no Congresso, em autarquias e estatais. Além de financiamentos especiais em bancos públicos.

A mudança forte começou a aparecer na passagem dos anos 80 para os 90. Repórteres mais novos começaram a publicar os privilégios, os bastidores, inclusive dos casernas - ou seja, as informações não oficiais, não autorizadas, mas obtidas por apuração e investigação independente.

Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o jornalismo opinativo - outro que tanto incomoda as autoridades. Estas consideram uma impertinência quando jornalistas as criticam. Gilmar Mendes se irrita quando perguntam quem paga suas viagens e mais ainda quando jornalistas o criticam por mudar de posição ao sabor da política. Diz que são "jornaleiros" - ofendendo uma categoria do andar de baixo - de uma "imprensa opressiva".

Mas na democracia, quem decide se uma imprensa é boa ou não é o público, com sua audiência, sua leitura, seu respeito.

Não precisam me lembrar que a imprensa erra. Nós, jornalistas, sabemos disso melhor que os outros. Também sabemos reconhecer e corrigir.

Aproveite o fim de semana, Lula!

Não foi Lula que afirmou que era preciso “estancar a sangria” provocada pela Lava Jato. Ou dito de outra maneira: acabar com a Lava Jato, ou reduzir seus efeitos ao mínimo. O autor da frase famosa foi o senador Romero Jucá (RR), presidente do PMDB.

Mas ninguém, nem mesmo Jucá, nem mesmo o presidente Michel Temer, nem mesmo ultimamente o ministro Gilmar Mendes, fez mais para “estancar a sangria” do que Lula. Fez o diabo para escapar da Lava Jato e ser candidato outra vez à presidência da República.


Pressionou a então presidente Dilma Rousseff para que ela freasse as ações da Polícia Federal, do Ministério Público e da Procuradoria Geral da República que o ameaçavam, como se de fato Dilma pudesse fazer isso. Não podia. E não pareceu interessada em fazer.

Lula pediu e levou a cabeça de José Eduardo Cardoso, ministro da Justiça, seu antigo desafeto, por achar que ele dava moleza à Lava Jato. Por achar que na chefia da Casa Civil o ministro Aloizio Mercadante era um zero à esquerda, também pediu e levou sua cabeça.

Pôs Jaques Wagner, homem de sua confiança, no lugar de Mercadante. E quando temeu ser preso pelo juiz Sérgio Moro, aceitou docemente constrangido o convite de Dilma para substituir Wagner e ganhar assim o direito de só ser investigado pelo Supremo Tribunal Federal.

Sem falar do que ficou registrado em célebre telefonema trocado por ele com um amigo – um ataque pesado ao Supremo a quem se referiu como “corte acovardada”. Conspirou, sem sucesso, para que os ministros do Supremo mudassem de comportamento, e quase conseguiu.

Resta-lhe aguardar a hora de ser preso. Sua defesa pouco terá o que fazer até lá. Esgotou-se quase todo o estoque de recursos ao seu alcance. Se tudo correr como parece escrito nos autos dos doutos, este será o último fim de semana de Lula em liberdade. Pelo menos por um bom tempo.