quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

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PEDER MORK MONSTED   Autorretrato diante de um cavalete num caminho do jardim   Óleo sobre papelão - 35 x 26 - 1895     No mundo das ar...
Peder Mork Monsted (1895)

A batalha perdida

Na Espanha do rei José II, no século XIV, segundo José Ortega e Gasset, todos os seres tinham o direito e o dever de serem o que eram, fossem “dignificados ou humildes, abençoados ou malditos”. O judeu ou árabe eram, para as demais pessoas, “uma realidade, dotada do direito de ser, com uma posição social só sua e seu próprio lugar na pluralidade hierárquica do mundo”. No limiar do século seguinte, porém, judeus e mouros foram obrigados a deixar a Espanha pelo rei católico Fernando II. Segundo o filósofo espanhol, essa foi a gênese da primeira geração moderna. “De fato, é o homem moderno que pensa ser possível excluir determinadas realidades e construir um mundo segundo as próprias preferências, à semelhança de uma ideia pré-concebida”, ressalta.

O exemplo é citado pelo filósofo polonês Zygmunt Bauman ao abordar a relação entre verdade, ficção e incerteza no mundo contemporâneo (O mal-estar da pós-modernidade, Zahar). A tolerância em relação às diferenças no mundo pré-moderno era resultado de uma visão conservadora do tipo “tudo já está em seu lugar”. O rei Fernando da Espanha foi precursor de uma estratégia “que seria aplicada, com maior ou menor zelo e com maior ou menor êxito, ao longo da história moderna e em todas as partes do globo”. A destruição da diferença era o pressuposto da nova ordem. Mas a guerra contra a diferença e a pluralidade foi perdida em todo lugar. “A história moderna resultou, e a prática moderna continua resultando na multiplicação de divisões e diferenças.”

O aspecto novo das diferenças na pós-modernidade seria “a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e a resultante intangibilidade, maleabilidade e o curto período de vida”. O “desencaixe” existencial e as dificuldades para definir “projetos de vida” e construir a própria identidade, típicos das gerações mais jovens, seriam consequência não apenas da desestruturação das classes da antiga sociedade industrial, mas também da ausência de pontos de referência duradouros, como as ideologias do século passado. O “mundo lá fora” é cada vez mais virtual e parecido com um jogo, no qual as regras mudam de uma hora para outra. Qual o sentido de uma identidade vitalícia se as pessoas estão sendo obrigadas a se reinventar?

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Bauman recorre aos ensaios literários de Milan Kundera e Umberto Eco para dizer que talvez a verdade esteja mais na ficção dos romances do que na aparência das pessoas, cujas verdadeiras identidades são mutantes, estão ocultas ou dissimuladas. Muito do que está acontecendo na política brasileira tem a ver com tudo isso. Há um choque monumental entre as nossas práticas políticas tradicionais, encasteladas nas instituições de poder, e uma realidade social em mudança, com o agravante de que a reboque dos efeitos da globalização. Há um abismo entre uma elite política e seus partidos envelhecidos e as transformações em curso na sociedade, nas quais as pessoas comuns foram “desconstruídas”, mas estão plugadas nas redes sociais.

Não deixa de ser um paradoxo o cenário eleitoral que se apresenta. Nas redes sociais, um candidato de ficção à esquerda, que se tornou inelegível, acredita que pode voltar ao poder se reeditar velhas fórmulas políticas, nas quais as diferenças são sufocadas pela intolerância ideológica; de outro, um candidato real, porta-voz de práticas embrutecidas, que também quer sufocar as diferenças, inclusive as de costumes e de comportamento. No processo eleitoral real, porém, prevalece a força da ordem institucional. As regras do jogo favorecem os grandes partidos, a imunidade parlamentar e a sobrevida de uma geração política que pretende empurrar a fila para trás. Entretanto, a fragmentação e as diferenças predominam, tanto nas redes sociais, quanto no sistema político, o que aumenta as incertezas.

A lógica natural das coisas será a transferência gradativa das disputas políticas e ideológicas das redes sociais para o processo eleitoral, ou seja, toda a diversidade e a fragmentação existentes na sociedade buscarão representação nos partidos e em suas candidaturas. Nesse sentido, pode haver uma ultrapassagem da radicalização direita versus esquerda, típica de um processo de eliminação das diferenças, e a construção de um novo consenso, no qual a moderação, o pluralismo e a tolerância prevaleçam. Essa é a equação que está posta na disputa eleitoral para a Presidência da República, tendo por pano de fundo uma tremenda crise ética na política, que ameaça tragar as principais lideranças, seja nos tribunais, seja no silêncio das urnas.

A ressaca do PT e o pós-Lula

Em dia de ressaca ruim do PT, a gente ouvia dúvidas novas de lideranças petistas e de amigos de Lula da Silva. A conversa sobre o pós-Lula pode começar talvez muito mais cedo do que se previa. Em vez de 2019, pode ser um problema para as águas de março.


Talvez logo se imponham a definição de um candidato substituto e a revisão da estratégia de sobrevivência parlamentar e de alianças. Pode haver disputa precoce sobre a futura liderança partidária, abafada por Lula em particular desde os anos 1990, quando restou apenas uma palmeira em um petismo reduzido a um gramado.

Até a derrota completa no julgamento de Porto Alegre, dizer que "não havia plano B" era mais que retórica, pelo menos desde meados de 2017. De um modo ou de outro, Lula conduziria o partido até o dia da eleição, como candidato ou grande tutor do escolhido para sucedê-lo. Agora, há uma imensa e nova pedra no caminho desse plano, que é a possível prisão de Lula.

Um encarceramento provisório, sustado por uma decisão liminar qualquer, pode não ser o fim da linha (ou até o contrário, pode ser uma martirização alentadora). Uma decisão milagrosa do Supremo sobre o fim das prisões depois de condenações em segunda instância é uma esperança. E se der tudo errado?

Os petistas que se dispuseram a falar dizem que eles mesmos sabem muito pouco do que será feito dos problemas criados pelo julgamento de Porto Alegre. Muito depende de Lula. Mas se ouve que a cúpula do partido ficará "nervosa", que "atritos antigos vão aflorar", como se houvesse uma antecipação do "pós-Lula".

Primeiro problema: se Lula estiver preso, não será possível levar o sucessor em caravanas de campanha; seria muito difícil ungir e favorecer o escolhido da prisão. Lula teria de fazê-lo o quanto antes. Se o fizer, como ficam as conversas de unificação da esquerda e conversas sobre a possibilidade remota de o PT apoiar um aliado com mais potencial? Mais importante, como apresentar o candidato? Lula jogaria a toalha?

Além do mais, estando desarranjado o plano principal, como organizar as alianças e as candidaturas parlamentares de modo a evitar que o partido seja dizimado no Congresso?

Segundo problema, há críticas ao desempenho de Gleisi Hoffmann na presidência do PT e a suas manifestações mais exaltadas, que não seriam a posição de várias lideranças e, de qualquer modo, são vistas como nada pragmáticas ou nada eficientes mesmo entre a militância. Sem a presença de Lula, essas lideranças não querem que Gleisi seja a voz do partido.

Terceiro e mais vistoso problema, ainda é difícil descobrir quem seria o possível candidato no lugar de Lula. Há quem diga que isso não está definido, que não se sabe, que é Jaques Wagner ou que há chance para Fernando Haddad, talvez protegido por Lula de um tiroteio precoce.

Quarto problema (e curioso ouvir tal coisa no PT): o humor do eleitorado pode mudar "ligeiramente" nos próximos meses, uma confluência de ventos ruins para o partido. Por um lado, deve haver alguma melhora de ânimos na economia; por outro, vai haver desânimos com o futuro de Lula, no eleitorado em geral e mesmo na militância. Há o risco de o PT cair pelas tabelas muito antes de começar a campanha.
Vinicius Torres Freire

Respeito ao eleitor, o Brasil do século 21

O momento é oportuno para o debate de relevantes questões que transcendem o estreito âmbito do dia a dia da política e alcançam o patamar mais elevado da ética e dos próprios fundamentos da democracia.

Jorge G. Castañeda, professor da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade Nacional Autônoma do México, no seu excelente livro Utopia Desarmada – que trata das intrigas, dos dilemas e das promessas da esquerda latino-americana –, examina três grandes temas. O primeiro, embora de origem apenas mexicana, tem repercussão que alcança todo o continente: o levante indígena armado na região de Chiapas. O segundo é o das dificuldades da esquerda em diversas partes da América Latina. No terceiro tema, Castañeda examina a situação no Brasil.

Uma das teses de Utopia Desarmada é sobre a violência à flor da pele na América Latina – o caráter fragmentado das sociedades latino-americanas, na consequente fragilidade de seus sistemas políticos democráticos e na ameaça permanente do ressurgimento da violência, que se origina “das abismais” desigualdades latino-americanas: sociais, étnicas, regionais, de gênero e de geração.

Jorge Castañeda refere-se ao efeito que o levante de Chiapas teve na vida política e no debate ideológico do México. O autor alega que a viabilidade do reformismo sempre se baseou na existência de um “mal maior”: o espectro do comunismo de que fala Marx no Manifesto, as chamadas “classes perigosas” (segunda metade do século 19), o bolchevismo (1931), a revolução cubana (1959) na América. A queda do Muro de Berlim reduziu os efeitos danosos do “mal maior”.
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O “mal maior” é a violência, com ou sem pano de fundo explicitamente político. Daí a importância de reformas sociais profundas, notadamente no Brasil. Esse é um dos importantes temas a serem debatidos na campanha eleitoral que se avizinha. Além desse – de vital importância –, a política econômica, com os seus capítulos: Presidência, inflação, nível de emprego, câmbio, política externa, Mercosul, etc...

A verdadeira reforma política precisa ser repensada. O que o atual Congresso Nacional fez até agora foi muito pouco, ou quase nada. A reforma tributária e, notadamente, a previdenciária também merecem ampla discussão e um projeto compatível com as reais necessidades do Brasil.

Outros pontos passam pela reflexão e tomada de posição dos eleitores e transcendem o estreito ambiente do dia a dia da política. Exemplo: a vaga nas Casas legislativas é do partido ou da coligação? Em caso de afastamento, o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou ao reconhecer o direito do primeiro suplente do partido. As coligações são motivadas muito menos pela coincidência de princípios programáticos, que poderiam diferenciar um candidato de seus concorrentes, e muito mais pelo aumento do tempo no horário gratuito de televisão e pelo reforço dos cofres de campanha.

Outra importante questão é a suscitada pelo afastamento de quase meia centena de deputados que, logo após eleitos, trocaram a cadeira de parlamentar por cargos nos Executivos federal e estaduais. Trata-se de perguntar se é legítimo e ético um deputado ou senador virar as costas a seus eleitores e aceitar convites para exercer outras funções – convites, aliás, resultantes, em boa parte dos casos, de um processo de loteamento de cargos públicos, em que vale mais o peso financeiro e político do órgão cobiçado e menos a competência do escolhido.

A resposta só pode ser negativa, considerando que, em última instância, o mandato é um contrato estabelecido entre o eleito e seus eleitores, sacramentado nas urnas. Ou seja, a eleição é ganha pelo candidato que convence o eleitorado a conceder-lhe seus votos.

Numa análise técnica, o eleito compromete-se a exercer o mandato legislativo por um contrato e não teria o direito de rescindir unilateralmente esse compromisso, numa atitude que não pode, sob nenhum aspecto, ser considerada moral ou ética.

Usando os modernos conceitos de comunicação, não é difícil perceber que grande parte do eleitorado se ressente do desprezo por seu voto. Somando-se a outras atitudes questionáveis, a sensação de voto desperdiçado contribui para arranhar ainda mais a imagem dos políticos perante a sociedade, que acaba por colocar na mesma cesta os bons e os maus mandatários. E mais, esse conjunto de percepções negativas inevitavelmente deságua no aumento do descrédito da instituições republicanas.

Sem detalhar demasiadamente as razões que levam à crescente avaliação negativa da classe política, é perceptível que está vencendo o prazo para que os seus integrantes – legitimados pelo voto ou, quando não eleitos, por sua postura cidadã e republicana (há, sim, bons políticos, e não são poucos, embora tenham visibilidade muito menor do que os maus) – empreendam efetivamente a reforma política no País. Uma reforma que também atenda às aspirações dos milhões de brasileiros cansados da corrupção, dos desmandos, do estilo “só lembrar do eleitor durante a campanha”, das ambições escancaradas e desligadas dos interesses maiores da Nação.

Os brasileiros já dão sinais de que têm consciência de que chegou o momento de repensar o Brasil. Essa tendência se manifesta, até com certa impaciência, na reivindicação do respeito aos direitos do cidadão, nos movimentos em defesa da ética. Falta agora aos representantes do povo, com o faro político que devem ter ou desenvolver, alinhar-se às aspirações do eleitorado e contribuir efetivamente para a construção do Brasil do século 21.

Como afirmei em recente artigo, vamos eleger estadistas, os que pensam nas próximas gerações, deixando de lado os políticos, que apenas pensam na próxima eleição!