domingo, 21 de fevereiro de 2021
Carta aberta ao Supremo Tribunal Federal
Sr. presidente e srs. ministros do Supremo Tribunal Federal,
Dirijo-me a essa egrégia corte na dupla condição de ex-ministro da Defesa Nacional e da Segurança Pública, com o objetivo de alertar para a gravidade do nefasto processo de armamento da população, em curso no Brasil.
É iminente o risco de gravíssima lesão ao sistema democrático em nosso país com a liberação, pela Presidência da República, do acesso massificado dos cidadãos a armas de fogo, inclusive as de uso restrito, para fins de "assegurar a defesa da liberdade dos brasileiros" (sic), sobre a qual inexistem quaisquer ameaças, reais ou imaginárias.
O tema do armamento dos cidadãos, até aqui, foi um assunto limitado à esfera da segurança pública em debate que se dava entre os que defendiam seus benefícios para a segurança pessoal e os que, como nós, e com base em ampla literatura técnica, afirmávamos o contrário –seus malefícios e riscos às vidas de todos.
Ao transpor o tema da segurança pública para a política, o Executivo incide em erro ameaçador, com efeitos sobre a paz e a integridade da nação, pelos motivos a seguir. Em primeiro lugar, viola um dos principais fundamentos do Estado, qualquer Estado, que é o de deter o monopólio da violência legal em todo o território sobre a sua tutela, alicerce da ordem pública e jurídica e da soberania do país.
Em segundo lugar, pelo fato de que as Forças Armadas são a última ratio sobre a qual repousa a integridade do Estado nacional. O armamento da população proposto –e já em andamento–, atenta frontalmente contra o seu papel constitucional, e é incontornável que façamos a defesa das nossas Forças Armadas. Em terceiro, é inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto.
Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão.
No plano da segurança pública, mais armas invariavelmente movem para cima as estatísticas de homicídios, feminicídios, sequestros, impulsionam o crime organizado e as milícias, estando sempre associadas ao tráfico de drogas.
Por essas razões, Estados democráticos aprovam regulamentos rígidos para a sua concessão aos cidadãos, seja para a posse e, mais ainda, para o porte. Dramaticamente, srs. ministros, estamos indo em sentido contrário à vida, bem maior tutelado pela lei e nossa Constituição, da qual sois os guardiães derradeiros.
Em 2018, pela primeira vez em muitos anos, revertemos a curva das mortes violentas, por meio de um amplo esforço que culminou com a lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que permanece inexplicavelmente inoperante. Hoje, lamentavelmente, as mortes violentas voltaram a subir no corrente ano e no ano anterior, enquanto explodem os registros de novas armas em mãos do público: 90% a mais em 2020, relativamente a 2019, o maior crescimento de toda série histórica, segundo dados da Polícia Federal.
Com 11 milhões de jovens fora da escola e do trabalho, os "sem-sem", vulneráveis à cooptação pelo crime organizado, a terceira população carcerária do planeta (862 mil apenados, segundo o Conselho Nacional de Justiça), um sistema prisional controlado por facções criminosas, polícias carentes de recursos, de meios e de ampla reforma, mais armas em nada resolvem o nosso problema de violência endêmica –antes a agravam e nos tornam a todos reféns.
Está, portanto, em vossas mãos, em grande parte, impedir que o pior nos aconteça. Por isso apelamos para a urgente intervenção desta egrégia corte, visando conjurar a ameaça que paira sobre a nação, a democracia, a paz e a vida.
Lembremo-nos dos recentes fatos ocorridos nos EUA, quando a sede do Capitólio, o Congresso Nacional americano, foi violada por vândalos da democracia. Nossas eleições estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para afastar o inominável presságio.
Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública
Dirijo-me a essa egrégia corte na dupla condição de ex-ministro da Defesa Nacional e da Segurança Pública, com o objetivo de alertar para a gravidade do nefasto processo de armamento da população, em curso no Brasil.
É iminente o risco de gravíssima lesão ao sistema democrático em nosso país com a liberação, pela Presidência da República, do acesso massificado dos cidadãos a armas de fogo, inclusive as de uso restrito, para fins de "assegurar a defesa da liberdade dos brasileiros" (sic), sobre a qual inexistem quaisquer ameaças, reais ou imaginárias.
O tema do armamento dos cidadãos, até aqui, foi um assunto limitado à esfera da segurança pública em debate que se dava entre os que defendiam seus benefícios para a segurança pessoal e os que, como nós, e com base em ampla literatura técnica, afirmávamos o contrário –seus malefícios e riscos às vidas de todos.
Ao transpor o tema da segurança pública para a política, o Executivo incide em erro ameaçador, com efeitos sobre a paz e a integridade da nação, pelos motivos a seguir. Em primeiro lugar, viola um dos principais fundamentos do Estado, qualquer Estado, que é o de deter o monopólio da violência legal em todo o território sobre a sua tutela, alicerce da ordem pública e jurídica e da soberania do país.
Em segundo lugar, pelo fato de que as Forças Armadas são a última ratio sobre a qual repousa a integridade do Estado nacional. O armamento da população proposto –e já em andamento–, atenta frontalmente contra o seu papel constitucional, e é incontornável que façamos a defesa das nossas Forças Armadas. Em terceiro, é inafastável a constatação de que o armamento da cidadania para "a defesa da liberdade" evoca o terrível flagelo da guerra civil, e do massacre de brasileiros por brasileiros, pois não se vislumbra outra motivação ou propósito para tão nefasto projeto.
Ao longo da história, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão.
No plano da segurança pública, mais armas invariavelmente movem para cima as estatísticas de homicídios, feminicídios, sequestros, impulsionam o crime organizado e as milícias, estando sempre associadas ao tráfico de drogas.
Por essas razões, Estados democráticos aprovam regulamentos rígidos para a sua concessão aos cidadãos, seja para a posse e, mais ainda, para o porte. Dramaticamente, srs. ministros, estamos indo em sentido contrário à vida, bem maior tutelado pela lei e nossa Constituição, da qual sois os guardiães derradeiros.
Em 2018, pela primeira vez em muitos anos, revertemos a curva das mortes violentas, por meio de um amplo esforço que culminou com a lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), que permanece inexplicavelmente inoperante. Hoje, lamentavelmente, as mortes violentas voltaram a subir no corrente ano e no ano anterior, enquanto explodem os registros de novas armas em mãos do público: 90% a mais em 2020, relativamente a 2019, o maior crescimento de toda série histórica, segundo dados da Polícia Federal.
Com 11 milhões de jovens fora da escola e do trabalho, os "sem-sem", vulneráveis à cooptação pelo crime organizado, a terceira população carcerária do planeta (862 mil apenados, segundo o Conselho Nacional de Justiça), um sistema prisional controlado por facções criminosas, polícias carentes de recursos, de meios e de ampla reforma, mais armas em nada resolvem o nosso problema de violência endêmica –antes a agravam e nos tornam a todos reféns.
Está, portanto, em vossas mãos, em grande parte, impedir que o pior nos aconteça. Por isso apelamos para a urgente intervenção desta egrégia corte, visando conjurar a ameaça que paira sobre a nação, a democracia, a paz e a vida.
Lembremo-nos dos recentes fatos ocorridos nos EUA, quando a sede do Capitólio, o Congresso Nacional americano, foi violada por vândalos da democracia. Nossas eleições estão aí, em 2022. E pouco tempo nos resta para afastar o inominável presságio.
Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa e ex-ministro extraordinário da Segurança Pública
Preparando o futuro
Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.
A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.
Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.
O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.
Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.
Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e regulamentações com o mesmo objetivo, ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.
Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.
Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.
A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.
Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.
A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.
Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.
O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.
Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.
Nenhuma questão tomou mais a atenção da administração bolsonarista do que esta, com mais de 30 decretos e regulamentações com o mesmo objetivo, ampliar o uso e o acesso de armas de fogo ao cidadão comum, e o relaxamento do controle que anteriormente era feito pelo Exército ou pela Polícia Federal, e que passa a ser responsabilidade de clubes de tiros, ou liberado de uma burocracia que, nestes casos, servia para manter sob o controle de organismos do Estado o rastreamento de munições e o uso de armamentos e equipamentos antes restritos aos militares.
Como adverte o ex-ministro da Defesa Raul Jungman, agindo assim o presidente incorre em problemas sérios: está quebrando o monopólio da violência legal, fator constitutivo do Estado nacional, cuja existência se dá a partir do momento em que ele controla esse monopólio. As Forças Armadas, lembra Jungman, são a base desse monopólio, e com isso perdem o papel de garantidor da democracia.
Política de tal teor “está levantando o espectro terrível de uma guerra civil entre os brasileiros”, lamenta Jungman, que lembra que as milícias e o crime organizado saem vitoriosos desse afrouxamento de regras sobre o armamento, fazendo letra morta o Estatuto do Desarmamento. Os grupos protofascistas dos quais faz parte o deputado federal (ainda?) Daniel Silveira só cresceram em audácia pelo ambiente permissivo de violência, verbal e física, instalado no país por Bolsonaro.
A militarização dos quadros do Estado, que leva um general a substituir outro na binacional Itaipu, por exemplo, mistura o que deveria ser óleo e água, com políticos e militares disputando lugares na administração federal, cada qual garantindo a Bolsonaro imunidades a seus alcances. Quando um presidente da República anuncia que o regime democrático não é o que ele gostaria, está declarando que sua preferência é outra, deixando no ar que prepara um futuro mais adequado às suas inclinações ideológicas.
Cabe às forças democráticas barrarem esses delírios, como fizeram no caso do deputado parlapatão, e como anunciam que farão com os decretos de armas.
Impeachment por traição
Está lá na página 74: “os preços praticados pela Petrobras deverão seguir os mercados internacionais…”. Na página 10, outra garantia: “faremos uma aliança da ordem com o progresso, um governo liberal democrata”. No caput, o compromisso com um “governo decente sem toma lá-dá-cá, sem acordos espúrios”. Nada mais didático do que a leitura do plano de governo registrado no TSE em 2018 pelo candidato Jair Bolsonaro. No cotejamento da realidade com a ficção de 81 páginas, sob o título “O caminho da prosperidade”, tem-se a comprovação do maior estelionato eleitoral já cometido no país. A materialização da fraude.
Os eixos do plano “Constitucional, Eficiente, Fraterno” já apontam o tamanho do engodo. Com mais da metade do mandato executado, Bolsonaro é exatamente o avesso do que, oficialmente, documentou em seu plano. Instalou e mantém um governo reconhecidamente belicoso, que desafia as leis, e tem eficiência abaixo de zero.
A ampliação do número de armas nas mãos de civis é um dos raríssimos itens em que Bolsonaro colocou vigor, ainda assim com decretos sujeitos a debates de constitucionalidade. Sua proposta de governo contemplava ainda a reforma da Previdência, que, mesmo com ele jogando contra, foi aprovada graças ao empenho e obstinação do então presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O resto do plano é pura enganação, embuste mal ajambrado para cumprir tabela.
É quase inimaginável que a elite econômica do país tenha se embevecido com os chavões liberais do plano que previa redução do Estado, enxugamento da máquina, menos burocracia e racionalidade tributária, equilíbrio fiscal e privatizações em escala.
E não adianta usar a pandemia como desculpa, pois mesmo antes dela nada tinha sido feito na direção prometida.
Dois anos e dois meses se passaram e pouco ou quase nada foi privatizado. As estatais continuam firmes, mamando o quanto podem e servindo de moeda de troca para satisfazer os “novos” parceiros políticos do presidente. Até a EBC, gestora da TV Brasil, que Bolsonaro acusava ser canal de propaganda do PT, foi preservada e capitalizada. De TV Lula virou TV Bolsonaro.
Como de costume, Bolsonaro e os seus, incluindo Guedes, terceirizam culpas. Apontam o dedo para o Congresso cujo erro imputado só pode ser o de não aprovar projetos que o governo não enviou.
Isso vale para a venda de estatais e para as reformas estruturais. A reforma tributária proposta por Guedes se limita à fusão de dois impostos federais, o que, no frigir dos ovos, nada muda na barafunda dos tributos nacionais. Na administrativa, o governo, covarde, joga toda e qualquer mexida das castas do funcionalismo para o futuro, deixando intocados os que mais consomem dinheiro do contribuinte.
Batendo no peito, o novo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) dirá que aprovou em tempo recorde a autonomia do Banco Central. Uma meia verdade. O projeto já havia percorrido todos os trâmites do Parlamento e foi usado como alegada prova de competência depois do escancarado toma lá, dá cá - prática execrada na campanha de Bolsonaro - para garantir a eleição de Lira.
Bolsonaro não é o primeiro a descumprir promessas de campanha ou praticar o inverso dos ditos preconizados nos palanques. Eleitores de Lula consideravam que ele havia traído a esquerda ao abraçar a política de equilíbrio fiscal do antecessor Fernando Henrique Cardoso. Mas nunca antes se viu tamanho fosso entre uma proposta de governo e sua execução.
Os eixos do plano “Constitucional, Eficiente, Fraterno” já apontam o tamanho do engodo. Com mais da metade do mandato executado, Bolsonaro é exatamente o avesso do que, oficialmente, documentou em seu plano. Instalou e mantém um governo reconhecidamente belicoso, que desafia as leis, e tem eficiência abaixo de zero.
Certo de que seus fiéis não iam se dar ao trabalho de ler um programa de governo, ele tascou na página 7 a defesa de uma “imprensa livre e independente”. O oposto da pregação cotidiana que faz contra jornais e jornalistas. Na 24 chega a usar a credibilidade da arqui-inimiga TV Globo para expor os números da violência no país e, em seguida, defender as armas de fogo.
A ampliação do número de armas nas mãos de civis é um dos raríssimos itens em que Bolsonaro colocou vigor, ainda assim com decretos sujeitos a debates de constitucionalidade. Sua proposta de governo contemplava ainda a reforma da Previdência, que, mesmo com ele jogando contra, foi aprovada graças ao empenho e obstinação do então presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O resto do plano é pura enganação, embuste mal ajambrado para cumprir tabela.
É quase inimaginável que a elite econômica do país tenha se embevecido com os chavões liberais do plano que previa redução do Estado, enxugamento da máquina, menos burocracia e racionalidade tributária, equilíbrio fiscal e privatizações em escala.
E não adianta usar a pandemia como desculpa, pois mesmo antes dela nada tinha sido feito na direção prometida.
No caso específico da Petrobras, que na sexta-feira amargou perdas de R$ 28 bilhões só com a ameaça intervencionista - antes mesmo do anúncio da substituição de Roberto Castello Branco pelo general da reserva Joaquim Silva e Luna -, Bolsonaro, via Paulo Guedes, havia acalentado a cantilena de que a petroleira venderia “parcela substancial de sua capacidade de refino, varejo, transporte e outras atividades onde tenha poder de mercado”. E que as empresas dependentes do governo seriam privatizadas ou fechadas.
Dois anos e dois meses se passaram e pouco ou quase nada foi privatizado. As estatais continuam firmes, mamando o quanto podem e servindo de moeda de troca para satisfazer os “novos” parceiros políticos do presidente. Até a EBC, gestora da TV Brasil, que Bolsonaro acusava ser canal de propaganda do PT, foi preservada e capitalizada. De TV Lula virou TV Bolsonaro.
Como de costume, Bolsonaro e os seus, incluindo Guedes, terceirizam culpas. Apontam o dedo para o Congresso cujo erro imputado só pode ser o de não aprovar projetos que o governo não enviou.
Isso vale para a venda de estatais e para as reformas estruturais. A reforma tributária proposta por Guedes se limita à fusão de dois impostos federais, o que, no frigir dos ovos, nada muda na barafunda dos tributos nacionais. Na administrativa, o governo, covarde, joga toda e qualquer mexida das castas do funcionalismo para o futuro, deixando intocados os que mais consomem dinheiro do contribuinte.
Batendo no peito, o novo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL) dirá que aprovou em tempo recorde a autonomia do Banco Central. Uma meia verdade. O projeto já havia percorrido todos os trâmites do Parlamento e foi usado como alegada prova de competência depois do escancarado toma lá, dá cá - prática execrada na campanha de Bolsonaro - para garantir a eleição de Lira.
A lambança que Bolsonaro fez com a Petrobras enterrou de vez qualquer tentativa de dourar pílulas.
Mais do que uma comissão especial para regulamentar o artigo constitucional relativo ao flagrante de parlamentares, anunciada por Lira antes da votação que manteve a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), o país precisa rever as hipóteses de impedimento de um governante. Traição frontal ao eleitor tal como a praticada por Bolsonaro deveria ser uma delas.
Um romance do nosso tempo
Venho acompanhando com curiosidade de escritor a última polêmica que agita a sociedade portuguesa: uma intriga complexa, com a qual se poderia escrever um romance sobre algumas das grandes questões deste nosso tempo, do racismo estrutural às perversões do colonialismo.
O regime colonial português compreendeu muito cedo que só conseguiria fazer face aos movimentos nacionalistas africanos se começasse a recrutar jovens originários dos territórios ocupados. Muitos terminaram desertando para o lado dos guerrilheiros. Outros, como Marcelino da Mata, acreditaram, ou fingiram acreditar, na ideologia colonial, combatendo até o fim à sombra da bandeira das quinas. Os comandos guineenses tiveram um infeliz destino: foram fuzilados como traidores logo que os portugueses abandonaram o país. Nenhum dos seus antigos comandantes se levantou para os defender. Marcelino escapou porque estava em Portugal.
Talvez seja deformação profissional, mas sempre que me apresentam um torturador fico pensando em que momento a história se torceu, para torturar e deformar a ele. Existem, é claro, homens que são maus da mesma forma simples que os felinos são ágeis, elásticos e sem inquietações espirituais. Nem toda maldade carece de explicação. Suspeito, contudo, que o caso de Marcelino da Mata é muito mais complexo. Tanto ele quanto Mamadu Ba poderiam dar grandes personagens de ficção. Ambos se distinguem pela coragem. Marcelino usou a bravura para semear violência e dor. Mamadu usa-a para combater o ódio. Eu escolho admirar Mamadu.
José Eduardo Agualusa
Tudo começou com o recente anúncio da morte do militar mais condecorado da história do exército português, o tenente-coronel Marcelino da Mata. Nascido na Guiné-Bissau, numa humilde família de camponeses católicos, Marcelino alistou-se no exército português para combater os nacionalistas guineenses do PAIGC, subindo a pulso na hierarquia militar. Morreu em Lisboa, vítima da atual pandemia.
A direita e extrema-direita portuguesa aproveitaram a morte de Marcelino para homenageá-lo, celebrando nele, não tanto o homem que foi, mas o regime que ele serviu. Uma parte da esquerda indignou-se com as homenagens, denunciando Marcelino da Mata como um criminoso de guerra.
O rosto mais visível do movimento contra Marcelino da Mata é o do ativista antirracismo Mamadu Ba, senegalês naturalizado português, com laços familiares com a Guiné-Bissau. Ba é desde há muito tempo um dos alvos preferidos da extrema-direita, pela coragem com que vem desmontando o mito do bom colonialismo lusitano, e também devido à cor da sua pele. Um português branco que diga o que ele diz não se arrisca tanto a ser contestado e agredido.
O rosto mais visível do movimento contra Marcelino da Mata é o do ativista antirracismo Mamadu Ba, senegalês naturalizado português, com laços familiares com a Guiné-Bissau. Ba é desde há muito tempo um dos alvos preferidos da extrema-direita, pela coragem com que vem desmontando o mito do bom colonialismo lusitano, e também devido à cor da sua pele. Um português branco que diga o que ele diz não se arrisca tanto a ser contestado e agredido.
Militares que combateram ao lado de Marcelino da Mata relatam inúmeros casos de assassinatos da população civil, incluindo de mulheres e crianças, protagonizados pelo militar. O próprio Marcelino se gabava de ter torturado guerrilheiros. Confrontados com estas denúncias, os políticos de direita alegam que em todas as guerras se cometem excessos. É verdade. Também é por isso que se criou na legislação internacional a figura do criminoso de guerra.
O regime colonial português compreendeu muito cedo que só conseguiria fazer face aos movimentos nacionalistas africanos se começasse a recrutar jovens originários dos territórios ocupados. Muitos terminaram desertando para o lado dos guerrilheiros. Outros, como Marcelino da Mata, acreditaram, ou fingiram acreditar, na ideologia colonial, combatendo até o fim à sombra da bandeira das quinas. Os comandos guineenses tiveram um infeliz destino: foram fuzilados como traidores logo que os portugueses abandonaram o país. Nenhum dos seus antigos comandantes se levantou para os defender. Marcelino escapou porque estava em Portugal.
Talvez seja deformação profissional, mas sempre que me apresentam um torturador fico pensando em que momento a história se torceu, para torturar e deformar a ele. Existem, é claro, homens que são maus da mesma forma simples que os felinos são ágeis, elásticos e sem inquietações espirituais. Nem toda maldade carece de explicação. Suspeito, contudo, que o caso de Marcelino da Mata é muito mais complexo. Tanto ele quanto Mamadu Ba poderiam dar grandes personagens de ficção. Ambos se distinguem pela coragem. Marcelino usou a bravura para semear violência e dor. Mamadu usa-a para combater o ódio. Eu escolho admirar Mamadu.
José Eduardo Agualusa
Comida encareceu mais que combustível. Bolsonaro vai intervir?
Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.
Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.
O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.
Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.
Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.
Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).
Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.
Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.
A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?
Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.
Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?
Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?
Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.
O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.
Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.
Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.
Obrigar a Petrobras a cobrar abaixo do preço de mercado não apenas diminuiria seu faturamento, os dividendos que paga ao governo, elevaria seu custo de financiamento e limitaria seu crescimento. Se a crise ficar barata, a Petrobras vai perder dezenas de bilhões de reais (centena?).
Por ora mais relevante, a mera percepção de que o governo possa vir a meter a pata em empresas tende a elevar custos de financiamento (juros mais altos, inclusive para o governo) e limitar investimentos na economia em geral.
Bolsonaro partiu para a demagogia econômica explícita. Abriu mais um buraco no Orçamento ao isentar gás e diesel de impostos, embora ainda gaste menos do que Michel Temer no pagamento desse suborno-resgate. Cometerá crime fiscal caso não corte outro gasto ou não aumente algum imposto para compensar.
A história de que o governo “responsável” procurava compensações para a nova despesa com o auxílio emergencial se torna assim mais ridícula. O auxílio está à beira de passar no Congresso com compensações apenas para inglês ver, mais uma promessa como o trilhão das privatizações de Nostradamus de Paulo Guedes (acontecerão em algum momento dos séculos por vir). Por falar nisso, quem vai comprar refinaria da Petrobras quando o governo mete a mão nos preços?
Sim, esta análise tem a perspectiva limitada da gerência elementar de uma economia de mercado e seus requisitos mínimos de funcionamento. É o máximo que se pode esperar sob o governo militar bolsonariano.
Como um projeto de tirano aloprando em um bunker ou porão, Bolsonaro não dá a mínima para o risco de arruinar o país: ele é capaz de tudo, e incapaz também. Corre agora risco maior de implodir seu próprio governo e prestígio, popularidade que poderia manter à tona vacinando em massa e obedecendo ao menos à mediocridade habitual de sua equipe econômica. Mas, se um quarto de milhão de cadáveres e outras ruínas não o derrubaram, por que não dobrar a aposta na monstruosidade ignorante e tocar o golpe por outras vias?
Donos do dinheiro grosso vão reagir ou continuam achando que Bolsonaro ainda está no preço?
Desgoverno armado
Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direitoMiguel de Unamuno, reitor da Universidade de Salamanca, destituído pelo ditador Francisco Franco em 1936
Chávez, um amador
Os fatos ganham velocidade atordoante: o presidente Jair Bolsonaro intervém na Petrobrás e põe mais um general como escudo, Supremo e Congresso às voltas com um personagem sarado, desbocado, armado e perigoso como um miliciano, Estados e municípios em desespero com falta de vacinas e sistema de saúde à beira do colapso. Bolsonaro, com suas variantes convenientes, e o coronavírus, com suas novas cepas oportunistas, avançam e ampliam seus raios de ação.
A demissão do “Chicago Boy” Roberto Castello Branco e a intervenção na Petrobrás encerram definitivamente o teatro de um governo liberal, no qual o presidente assumia não entender nada de economia e prometia não se meter onde não devia. Falam em “dilmização” de Bolsonaro, mas tem uma diferença. A ex-presidente Dilma Rousseff tinha mão pesada na Petrobrás (e em juros, por exemplo) por concepções equivocadas e obsoletas sobre economia, enquanto Bolsonaro mete por uma única motivação: populismo, a seu próprio favor.
Com as ações da Petrobrás esfarelando aqui e lá fora, o ministro Paulo Guedes faz o triste papel de quem perdeu a pauta, o timing e os brios. O Brasil foi dormir com a expectativa de reação, até de demissão, do ministro. Mas acordou com ele prometendo um jeitinho de compensar a isenção de tributos do diesel e do gás de cozinha. Patético. “Um manda, outro obedece.” A máxima de Eduardo Pazuello atinge todas as áreas, onde pululam generais e almirantes e vaga o economista Guedes.
É preciso saber até onde o prestigiado general de Engenharia Joaquim Silva e Luna, de quatro estrelas, vai se equiparar ao general intendente Pazuello, de três. Assim como Pazuello não sabia o que era SUS nem curva epidemiológica, Silva e Luna, ao que consta, não sabe a diferença de gasolina e óleo diesel e não tem a menor ideia da importância da política de preços independente numa empresa – seja ela pública ou privada.
Quem não sabe se cerca de quem sabe. Pazuello, porém, entupiu a Saúde de militares, como ele, sem expertise nenhuma na área, em plena pandemia. Dá no que dá. E Silva e Luna parece compelido a pescar militares da reserva para preencher a diretoria da Petrobrás. A atual, de alto nível, está em debandada. Quem, com credibilidade e experiência no setor, vai entrar nessa fria?
Guedes chegou cheio de si, tão avalista do “momento liberalizante” quanto Sérgio Moro das intenções moralizantes de Bolsonaro. Hoje, perde controle sobre a estratégica Petrobrás e não convence ninguém de fora a preencher vagas no governo. Logo, vai ter de engolir mais e mais militares, bolsonaristas, corporativistas, estatizantes e, obviamente, o Centrão. Um bololô infernal. “E na semana que vem (nesta) tem mais”, avisa Bolsonaro.
O presidente não se meteu com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), legítimo porta-voz das causas mais caras ao bolsonarismo: ataque ao Supremo, implosão do Congresso, descrédito da mídia, armas, armas e armas, exatamente como na Venezuela. Mas, se ele lavou as mãos, o filho 03 deu o recado no voto.
Agora, é ver para crer como fica o Brasil. Bolsonaro botou as Forças Armadas no bolso, cooptou as polícias, arma as milícias, dá carne aos leões bolsonaristas, enquanto cala o Congresso, faz política de boa vizinhança com o Supremo e o STJ e troca o falso liberalismo econômico por intervencionismo, corporativismo e populismo.
É assim que multidões defendem um governo que trabalhou a favor do vírus, chegou atrasado e a conta-gotas às vacinas e tem um presidente capaz de inventar que rasuraram a carteira de vacinação da mãe só para fingir que era a “vacina chinesa do Dória”. O coronel Hugo Chávez era um amador.
A demissão do “Chicago Boy” Roberto Castello Branco e a intervenção na Petrobrás encerram definitivamente o teatro de um governo liberal, no qual o presidente assumia não entender nada de economia e prometia não se meter onde não devia. Falam em “dilmização” de Bolsonaro, mas tem uma diferença. A ex-presidente Dilma Rousseff tinha mão pesada na Petrobrás (e em juros, por exemplo) por concepções equivocadas e obsoletas sobre economia, enquanto Bolsonaro mete por uma única motivação: populismo, a seu próprio favor.
Com as ações da Petrobrás esfarelando aqui e lá fora, o ministro Paulo Guedes faz o triste papel de quem perdeu a pauta, o timing e os brios. O Brasil foi dormir com a expectativa de reação, até de demissão, do ministro. Mas acordou com ele prometendo um jeitinho de compensar a isenção de tributos do diesel e do gás de cozinha. Patético. “Um manda, outro obedece.” A máxima de Eduardo Pazuello atinge todas as áreas, onde pululam generais e almirantes e vaga o economista Guedes.
É preciso saber até onde o prestigiado general de Engenharia Joaquim Silva e Luna, de quatro estrelas, vai se equiparar ao general intendente Pazuello, de três. Assim como Pazuello não sabia o que era SUS nem curva epidemiológica, Silva e Luna, ao que consta, não sabe a diferença de gasolina e óleo diesel e não tem a menor ideia da importância da política de preços independente numa empresa – seja ela pública ou privada.
Quem não sabe se cerca de quem sabe. Pazuello, porém, entupiu a Saúde de militares, como ele, sem expertise nenhuma na área, em plena pandemia. Dá no que dá. E Silva e Luna parece compelido a pescar militares da reserva para preencher a diretoria da Petrobrás. A atual, de alto nível, está em debandada. Quem, com credibilidade e experiência no setor, vai entrar nessa fria?
Guedes chegou cheio de si, tão avalista do “momento liberalizante” quanto Sérgio Moro das intenções moralizantes de Bolsonaro. Hoje, perde controle sobre a estratégica Petrobrás e não convence ninguém de fora a preencher vagas no governo. Logo, vai ter de engolir mais e mais militares, bolsonaristas, corporativistas, estatizantes e, obviamente, o Centrão. Um bololô infernal. “E na semana que vem (nesta) tem mais”, avisa Bolsonaro.
O presidente não se meteu com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), legítimo porta-voz das causas mais caras ao bolsonarismo: ataque ao Supremo, implosão do Congresso, descrédito da mídia, armas, armas e armas, exatamente como na Venezuela. Mas, se ele lavou as mãos, o filho 03 deu o recado no voto.
Agora, é ver para crer como fica o Brasil. Bolsonaro botou as Forças Armadas no bolso, cooptou as polícias, arma as milícias, dá carne aos leões bolsonaristas, enquanto cala o Congresso, faz política de boa vizinhança com o Supremo e o STJ e troca o falso liberalismo econômico por intervencionismo, corporativismo e populismo.
É assim que multidões defendem um governo que trabalhou a favor do vírus, chegou atrasado e a conta-gotas às vacinas e tem um presidente capaz de inventar que rasuraram a carteira de vacinação da mãe só para fingir que era a “vacina chinesa do Dória”. O coronel Hugo Chávez era um amador.
Risco ao capital e à democracia
A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.
Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.
Bolsonaro fez atos explícitos de populismo fiscal e de intervencionismo. Numa penada, aumentou em quase R$ 5 bilhões as despesas públicas, eliminando impostos sobre combustíveis fósseis, quando a equipe tenta cortar R$ 10 bilhões de um orçamento exaurido e ainda não aprovado. Paulo Guedes terá que fazer mais um truque ilusionista para fingir que cumpre a Lei de Responsabilidade Fiscal. A pandemia exigiu gastos extras e suspendeu limites legais, mas o presidente tem cometido crime de responsabilidade fiscal e não é por aumentar gastos na saúde. Ele ignora a tragédia sanitária que atinge o país. A gestão de Bolsonaro elevou o número de mortes do Brasil.
Os tumultos criados pelo presidente e seus histriônicos radicais feriram a economia e a política. Por eles, o país desperdiçou mais uma semana que deveria ter sido dedicada à luta por saúde, auxílio aos mais pobres e reajuste das contas públicas. O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), que falou em dar uma surra nos ministros do Supremo, “até o gato miar”, está fora do jogo. A Câmara aprovou o ato do STF de prendê-lo. Ele provavelmente será cassado.
Silveira ameaçou o Supremo. Bolsonaro, também. Silveira defendeu o AI-5. Bolsonaro, também. Silveira é truculento e ameaça os adversários de eliminação física. Bolsonaro, também. Silveira praticou crimes na internet. Bolsonaro, também. Silveira foi preso. Bolsonaro governa o país. Do posto, conspira contra a democracia, a economia e a saúde dos brasileiros. Na sexta-feira, ele, de chapéu de couro, fazia demagogias no Nordeste. No sábado, numa escola militar, falou uma frase dúbia sobre o regime democrático.
A Petrobras será presidida pelo general Silva Luna, o Conselho pelo Almirante Leal Ferreira e o ministro da área é o almirante Bento Albuquerque. Eles agora farão juras à economia de mercado e à governança da empresa. Será mentira. Alguns do mercado vão fingir acreditar. Há muita liquidez na economia global procurando ativos.
No Alto Comando do Exército, em 2018, quando o general Villas Bôas postou as mensagens para intimidar o Supremo no julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, estavam o general Eduardo Ramos, o general Braga Netto, o general Fernando Azevedo e Silva. O próprio Villas Bôas, mesmo no momento final de uma doença degenerativa, ajudou a História ao informar que os integrantes do Alto Comando foram ouvidos. O general Silva Luna era ministro da Defesa e também soube. Perguntei ao atual ministro da Defesa, Azevedo e Silva, através da sua assessoria, se ele havia visto a nota. “O ministro não vai comentar. O conteúdo do livro cabe ao seu autor”, respondeu o Ministério.
A governança da Petrobras foi atacada por Bolsonaro para impor o controle de preços. Nem isso contentará os caminhoneiros. Bolsonaro é inimigo do liberalismo econômico e derrubou o valor da ação da Petrobras. Mas isso se recupera no futuro. O bem mais caro que Bolsonaro ameaça é a democracia. O país sabe o alto preço que pagou por ela.
O porquê de tanta macheza
Sem essa de maricas no seu quintal. Jair Bolsonaro gosta de se cercar de rapazes fortes, marombados. Daniel de Tal, ex-PM e YouTuber federal, é um deles. Há dias, para impressionar Bolsonaro, o bofe gravou um vídeo pregando o fechamento da democracia e ameaçando bater com um gato morto nos 11 senhores do STF, que, juntos, passam de 700 anos de idade. Outro favorito de Bolsonaro era o também ex-PM e também he-man Adriano Nóbrega. Mas a vida dá voltas. Daniel tornou-se um estorvo para Bolsonaro e foi jogado ao mar. E, por motivo de força maior, em 2020, na Bahia, Adriano foi convencido a ir para o céu.
Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.
Completando seu fascínio pelos homens de ação, Bolsonaro tenta a todo custo “flexibilizar” os decretos que restringem armas de fogo. Por ele, qualquer bonitão capaz de aguentar no braço o tranco de um fuzil ao disparar deve ter o direito de portar esse fuzil e usá-lo contra os inimigos da pátria, como os globalistas, constitucionalistas, jornalistas e outros comunistas que ameaçarem sua perpetuação no poder.
Sim, porque esse é o objetivo de tanta macheza. Bolsonaro já foi alertado de que não pode mais deixar o poder. Precisa dele —blindando-se, armando-se, cercando-se de jagunços, dentro ou fora da lei— para não ser levado ao banco dos réus.
Do qual, se se sentar, pode nunca mais se levantar. Só a contagem de seus crimes levará décadas.
Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.
Completando seu fascínio pelos homens de ação, Bolsonaro tenta a todo custo “flexibilizar” os decretos que restringem armas de fogo. Por ele, qualquer bonitão capaz de aguentar no braço o tranco de um fuzil ao disparar deve ter o direito de portar esse fuzil e usá-lo contra os inimigos da pátria, como os globalistas, constitucionalistas, jornalistas e outros comunistas que ameaçarem sua perpetuação no poder.
Sim, porque esse é o objetivo de tanta macheza. Bolsonaro já foi alertado de que não pode mais deixar o poder. Precisa dele —blindando-se, armando-se, cercando-se de jagunços, dentro ou fora da lei— para não ser levado ao banco dos réus.
Do qual, se se sentar, pode nunca mais se levantar. Só a contagem de seus crimes levará décadas.
Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea
A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.
Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.
Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”.
Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica.
OK, mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.
Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.
Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”.
Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica.
OK, mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
Como é que o Butão conta apenas uma morte de Covid-19 desde o início da pandemia?
O Butão não costuma marcar presença nas manchetes nos jornais internacionais. Localizado no sul da Ásia, nos Himalaias, está rodeado pela China a norte e pela Índia a Sul, contando com cerca de 760 mil habitantes – o equivalente à população combinada de Lisboa e Porto. Apesar deste perfil discreto, o reino já tinha chamado a atenção do mundo em 2006, quando a Business Week o incluiu entre os países mais felizes do mundo.
Recentemente, o Butão voltou a captar a atenção de todo o mundo ao apresentar-se como um caso fora do normal no combate à pandemia. No dia 7 de janeiro, um homem de 34 anos, internado num hospital da capital, Timbu, com problemas de fígado e de rins, veio a morrer de complicações relacionadas com a Covid-19. Passado quase um ano desde o início da pandemia, com países à escala mundial a continuar a registar centenas ou até milhares de mortes do vírus por dia, o Butão registou a sua primeira – e única -morte de sempre pela doença.
Neste momento, o país conta com apenas 866 casos e 1 morte de Covid-19 desde o início da pandemia. Apesar de ter uma população pequena, estes não deixam de ser números impressionantes: o Luxemburgo, com menos 100 mil habitantes que o Butão, conta com 53 mil casos até ao momento – cerca de 60 vezes o número de infeções do país asiático. Até a Islândia, uma ilha isolada, conta com 6.039 casos de Covid-19 desde o início da pandemia: seis vezes mais casos que o Butão, que tem mais de o dobro da população do país nórdico. Isto para já não se explorar o que está a acontecer em Andorra, onde já faleceram quase 1400 pessoas e é o local com a mais elevada taxa de mortalidade do mundo, embora conte com 10 vezes menos habitantes do que o Butão.
Quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a surgir na Ásia, o Butão parecia um alvo perfeito para um desastre. O país tinha apenas 337 médicos para uma população de 760 mil pessoas – menos de metade do número recomendado pela Organização Mundial de Saúde e cerca de 12 vezes menor que o número de médicos em Portugal – e apenas metade destes médicos tinham treino avançado para cuidados intensivos. Para além disso, contava com apenas 3 mil profissionais da saúde e só existia uma máquina PCR no país para poder testar análises do vírus. Com uma presença assídua na lista de países menos desenvolvidos da ONU devido ao seu baixo PIB, assim como fronteiras partilhadas com países cujos casos de Covid-19 continuavam a crescer, o Butão conseguiu contrariar todas as expetativas.
A chave para a eficácia do Butão no combate à pandemia prendeu-se, numa primeira fase, com a rapidez da reação aos primeiros avisos vindos do seu país vizinho, explica Madeline Drexler na revista The Atlantic. No dia 11 de janeiro de 2020, 11 dias depois de a China reportar pela primeira vez à Organização Mundial de Saúde (OMS) um “surto de pneumonia de origem desconhecida”, o Butão começou imediatamente a preparar o seu plano de resposta nacional. A 15 de janeiro, os cientistas do país já estavam a investigar sintomas de infeções respiratórias e a impôr a medição de febre nos seus quatro aeroportos .
Graças a esta campanha de prevenção e ao facto de ter as fronteiras com a China fechadas há décadas, foi apenas no dia 6 de março que o Butão confirmou o seu primeiro caso de Covid-19: um turista norte-americano de 76 anos. Nas 6 horas seguintes, foram identificados e colocados em quarentena mais de 300 possíveis contactos do infetado. “Deve ter sido um recorde”, disse orgulhosamente o Ministro da Saúde Dechen Wangmo ao jornal nacional Kuensel. O paciente acabou por regressar aos EUA e sobreviver à doença.
Após este primeiro susto, o Governo do Butão começou a fazer conferências de imprensa diárias, através das quais mantinha os seus cidadãos atualizados com mensagens claras e diretas. Foram rapidamente proibidas as visitas de turistas, fechadas todas as escolas, instituições públicas, ginásios e cinemas. Os horários de trabalho foram flexibilizados e desde muito cedo foi incentivado que todos lavassem as mãos, usassem máscaras e mantivessem a distância física. Cinco dias depois de a OMS declarar a Covid-19 como uma pandemia, a 16 de março, o Butão instituiu rapidamente uma quarentena obrigatória para todos os cidadãos com possíveis exposições ao vírus, garantido acomodação em hotéis e refeições gratuitas aos imigrantes que regressavam ao país. Todos os casos positivos foram prontamente isolados, incluindo os assintomáticos, de forma a tratar os sintomas imediatamente e garantir acompanhamento psicológico aos pacientes em quarentena.
No entanto, o plano do Governo do Butão não ficou por aqui. No final de março, o tempo de quarentena obrigatória foi estendido de 14 para 21 dias – mais uma semana do que o que é recomendado pela OMS e pela Direção-Geral de Saúde, em Portugal. Numa conferência de imprensa, Wangmo explicou que este é o “ponto perfeito” para a quarentena, uma vez que com um isolamento de 14 dias ainda existe uma percentagem de 11% de possibilidade de contaminação, tendo em conta o período de incubação do vírus. Mais tarde, em setembro, as autoridades de saúde do país também implementaram um programa chamado “A Nossa Responsabilidade”, uma iniciativa de prevenção da doença com a participação de artistas e desportistas do país.
Perante todos estes planos e coordenação do governo, foi apenas em agosto que o primeiro cidadão nacional do Butão testou positivo para a Covid-19: uma mulher de 27 anos. Tal foi o impacto deste caso, que foi imposto imediatamente um confinamento em todo o país durante três semanas, com o governo a proceder a testes em massa e a distribuir comida, medicamentos e outros bens essenciais a todas as casas do país. O mesmo aconteceu quando, em dezembro, uma clínica na capital anunciou o primeiro caso de transmissão da doença entre a comunidade desde o verão – todos os cidadãos do Butão voltaram para casa.
Perante este trabalho intensivo de prevenção do vírus, com um plano de ação desenhado pelo governo, a participação e cooperação da própria população foi essencial para esta luta. Após a rainha do Butão lançar um apelo à nação e sublinhar a importância da solidariedade coletiva, milhares de pessoas deixaram as suas casas e famílias para se juntarem a equipas de voluntários conhecidas como DeSuun. O governo, por sua vez, garantiu que o impacto económico na população era amparado através de um programa de assistência financeira, com a distribuição de 15 milhões de euros a mais de 34 mil cidadãos afetados pela pandemia, assim como a entrega de bens essenciais a mais de 51 mil idosos.
No entanto, cabe relembrar que a vida no Butão nem sempre foi este “mar de rosas.” Em 2008, Bill Frelick, da Human Rights Watch, alertou que, ao longo de 17 anos, desde o final dos anos 80 até aos anos 90, as forças militares e o governo protagonizaram uma campanha de expulsão dos cidadãos nepaleses do país, que constituíam cerca de um sexto da população do país, uma vez que as elites do Butão percecionavam estas pessoas como uma ameaça à sua cultura. Ao longo dos últimos anos, o país tem procurado democratizar-se, com as primeiras eleições parlamentares realizadas em dezembro de 2007. Aos poucos, há algum espaço à abertura no país: em 2020, foi descriminalizada a homossexualidade no Butão.
Assim, para surpresa da comunidade internacional, este reino no teto do mundo tem sido dos países mais eficazes a combater a pandemia. Graças a uma orientação firme dos seus monarcas, acompanhada de um esforço conjunto das diferentes forças políticas parlamentares em combater a pandemia, houve um forte investimento na prevenção da Covid-19 antes de esta ultrapassar pela primeira vez passar as fronteiras do país. Paralelamente, a população foi incentivada a seguir todas as regras de saúde pública graças a uma comunicação direta e aos apoios económicos e sociais garantidos às pessoas que mais precisaram, em particular aquelas que ficaram em quarentena e isolamento. Agora, o governo do Butão poderá vir a usar esta vitória para atacar os outros problemas do país, como a pobreza, os seus atrasos tecnológicos e consolidar a democracia.
Recentemente, o Butão voltou a captar a atenção de todo o mundo ao apresentar-se como um caso fora do normal no combate à pandemia. No dia 7 de janeiro, um homem de 34 anos, internado num hospital da capital, Timbu, com problemas de fígado e de rins, veio a morrer de complicações relacionadas com a Covid-19. Passado quase um ano desde o início da pandemia, com países à escala mundial a continuar a registar centenas ou até milhares de mortes do vírus por dia, o Butão registou a sua primeira – e única -morte de sempre pela doença.
Neste momento, o país conta com apenas 866 casos e 1 morte de Covid-19 desde o início da pandemia. Apesar de ter uma população pequena, estes não deixam de ser números impressionantes: o Luxemburgo, com menos 100 mil habitantes que o Butão, conta com 53 mil casos até ao momento – cerca de 60 vezes o número de infeções do país asiático. Até a Islândia, uma ilha isolada, conta com 6.039 casos de Covid-19 desde o início da pandemia: seis vezes mais casos que o Butão, que tem mais de o dobro da população do país nórdico. Isto para já não se explorar o que está a acontecer em Andorra, onde já faleceram quase 1400 pessoas e é o local com a mais elevada taxa de mortalidade do mundo, embora conte com 10 vezes menos habitantes do que o Butão.
Quando os primeiros casos de Covid-19 começaram a surgir na Ásia, o Butão parecia um alvo perfeito para um desastre. O país tinha apenas 337 médicos para uma população de 760 mil pessoas – menos de metade do número recomendado pela Organização Mundial de Saúde e cerca de 12 vezes menor que o número de médicos em Portugal – e apenas metade destes médicos tinham treino avançado para cuidados intensivos. Para além disso, contava com apenas 3 mil profissionais da saúde e só existia uma máquina PCR no país para poder testar análises do vírus. Com uma presença assídua na lista de países menos desenvolvidos da ONU devido ao seu baixo PIB, assim como fronteiras partilhadas com países cujos casos de Covid-19 continuavam a crescer, o Butão conseguiu contrariar todas as expetativas.
A chave para a eficácia do Butão no combate à pandemia prendeu-se, numa primeira fase, com a rapidez da reação aos primeiros avisos vindos do seu país vizinho, explica Madeline Drexler na revista The Atlantic. No dia 11 de janeiro de 2020, 11 dias depois de a China reportar pela primeira vez à Organização Mundial de Saúde (OMS) um “surto de pneumonia de origem desconhecida”, o Butão começou imediatamente a preparar o seu plano de resposta nacional. A 15 de janeiro, os cientistas do país já estavam a investigar sintomas de infeções respiratórias e a impôr a medição de febre nos seus quatro aeroportos .
Graças a esta campanha de prevenção e ao facto de ter as fronteiras com a China fechadas há décadas, foi apenas no dia 6 de março que o Butão confirmou o seu primeiro caso de Covid-19: um turista norte-americano de 76 anos. Nas 6 horas seguintes, foram identificados e colocados em quarentena mais de 300 possíveis contactos do infetado. “Deve ter sido um recorde”, disse orgulhosamente o Ministro da Saúde Dechen Wangmo ao jornal nacional Kuensel. O paciente acabou por regressar aos EUA e sobreviver à doença.
Após este primeiro susto, o Governo do Butão começou a fazer conferências de imprensa diárias, através das quais mantinha os seus cidadãos atualizados com mensagens claras e diretas. Foram rapidamente proibidas as visitas de turistas, fechadas todas as escolas, instituições públicas, ginásios e cinemas. Os horários de trabalho foram flexibilizados e desde muito cedo foi incentivado que todos lavassem as mãos, usassem máscaras e mantivessem a distância física. Cinco dias depois de a OMS declarar a Covid-19 como uma pandemia, a 16 de março, o Butão instituiu rapidamente uma quarentena obrigatória para todos os cidadãos com possíveis exposições ao vírus, garantido acomodação em hotéis e refeições gratuitas aos imigrantes que regressavam ao país. Todos os casos positivos foram prontamente isolados, incluindo os assintomáticos, de forma a tratar os sintomas imediatamente e garantir acompanhamento psicológico aos pacientes em quarentena.
No entanto, o plano do Governo do Butão não ficou por aqui. No final de março, o tempo de quarentena obrigatória foi estendido de 14 para 21 dias – mais uma semana do que o que é recomendado pela OMS e pela Direção-Geral de Saúde, em Portugal. Numa conferência de imprensa, Wangmo explicou que este é o “ponto perfeito” para a quarentena, uma vez que com um isolamento de 14 dias ainda existe uma percentagem de 11% de possibilidade de contaminação, tendo em conta o período de incubação do vírus. Mais tarde, em setembro, as autoridades de saúde do país também implementaram um programa chamado “A Nossa Responsabilidade”, uma iniciativa de prevenção da doença com a participação de artistas e desportistas do país.
Perante todos estes planos e coordenação do governo, foi apenas em agosto que o primeiro cidadão nacional do Butão testou positivo para a Covid-19: uma mulher de 27 anos. Tal foi o impacto deste caso, que foi imposto imediatamente um confinamento em todo o país durante três semanas, com o governo a proceder a testes em massa e a distribuir comida, medicamentos e outros bens essenciais a todas as casas do país. O mesmo aconteceu quando, em dezembro, uma clínica na capital anunciou o primeiro caso de transmissão da doença entre a comunidade desde o verão – todos os cidadãos do Butão voltaram para casa.
Perante este trabalho intensivo de prevenção do vírus, com um plano de ação desenhado pelo governo, a participação e cooperação da própria população foi essencial para esta luta. Após a rainha do Butão lançar um apelo à nação e sublinhar a importância da solidariedade coletiva, milhares de pessoas deixaram as suas casas e famílias para se juntarem a equipas de voluntários conhecidas como DeSuun. O governo, por sua vez, garantiu que o impacto económico na população era amparado através de um programa de assistência financeira, com a distribuição de 15 milhões de euros a mais de 34 mil cidadãos afetados pela pandemia, assim como a entrega de bens essenciais a mais de 51 mil idosos.
No entanto, cabe relembrar que a vida no Butão nem sempre foi este “mar de rosas.” Em 2008, Bill Frelick, da Human Rights Watch, alertou que, ao longo de 17 anos, desde o final dos anos 80 até aos anos 90, as forças militares e o governo protagonizaram uma campanha de expulsão dos cidadãos nepaleses do país, que constituíam cerca de um sexto da população do país, uma vez que as elites do Butão percecionavam estas pessoas como uma ameaça à sua cultura. Ao longo dos últimos anos, o país tem procurado democratizar-se, com as primeiras eleições parlamentares realizadas em dezembro de 2007. Aos poucos, há algum espaço à abertura no país: em 2020, foi descriminalizada a homossexualidade no Butão.
Assim, para surpresa da comunidade internacional, este reino no teto do mundo tem sido dos países mais eficazes a combater a pandemia. Graças a uma orientação firme dos seus monarcas, acompanhada de um esforço conjunto das diferentes forças políticas parlamentares em combater a pandemia, houve um forte investimento na prevenção da Covid-19 antes de esta ultrapassar pela primeira vez passar as fronteiras do país. Paralelamente, a população foi incentivada a seguir todas as regras de saúde pública graças a uma comunicação direta e aos apoios económicos e sociais garantidos às pessoas que mais precisaram, em particular aquelas que ficaram em quarentena e isolamento. Agora, o governo do Butão poderá vir a usar esta vitória para atacar os outros problemas do país, como a pobreza, os seus atrasos tecnológicos e consolidar a democracia.
Sonho de muitos
Se tudo tivesse que depender de mim, não seria esse o regime que estaríamos vivendo. Represento a democracia no Brasil. Nunca a imprensa teve um tratamento tão leal e cortês. Se acham que não é desta maneira é porque não estão acostumados a ouvir a verdadeJair Bolsonaro
Tentando enxergar o que está à vista
Onde estarão dentro de 25 anos os meninos que vão nascer na presente década? É cabível supor que muitas delas vão se conhecer revirando lixo em algum aterro. Algumas estarão distribuindo drogas nos bairros ricos, a serviço de traficantes. Muitas estarão cometendo assaltos e outras tantas estarão atrás das grades.
Projeções macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.
É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.
Se 60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651): uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada. Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?
Suscitar essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.
Claro, não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da organização militar é essa.
Derrocamento dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.
Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.
Projeções macabras fazem mal tanto à alma de quem as escreve como à de quem as lê. Mas são úteis como alerta, sobretudo quando o alerta de que se trata diz respeito simplesmente à necessidade de tentarmos enxergar o que está à nossa volta.
É bem singela a constatação que me leva a aborrecer os leitores com essa previsão macabra. Não, caro leitor, não vou falar da pandemia; a realidade que tenho em mente estava aqui muito antes dela. Somos, como os economistas não se cansam de repetir, um país aprisionado na chamada “armadilha da renda média”. Chegamos até com certa facilidade a uma renda per capita de US$ 10 mil por ano, mas quem afirmar que conseguiremos dobrá-la num horizonte de 20 a 30 anos o faz por sua conta e risco. E não nos esqueçamos de que esse será ainda um resultado medíocre. A renda per capita, como todos sabemos, é apenas uma fórmula, um resumo aritmético de uma infinidade de condições sociais. Neste ano da graça de 2021, há na área educacional uma experiência bem simples que o leitor pode fazer sem grande esforço. Vá a uma escola da periferia e convide a garotada a fazer alguns exercícios de tabuada. No trajeto de volta ao centro, ligue o rádio e tente se informar sobre o que o Ministério da Educação anda fazendo. Ou pelo menos adivinhar o nome do atual ministro. Seja paciente.
Se 60% ou 70% dos nossos jovens se deparam com dificuldades quase insuperáveis nas matemáticas, nas ciências e até no simples manejo do idioma, é forçoso inferir que, hoje, muitos deles já são fortes candidatos ao desemprego e à pobreza. Não resvalar para o crime já é um belo feito. No mundo quase totalmente urbano e crescentemente automatizado em que estamos entrando, cuja agricultura já quase não cria empregos, o que está à nossa vista não é o Jardim do Éden. É muito mais um cenário como o pintado por Thomas Hobbes em O Leviatã (1651): uma “guerra de todos contra todos”. Mas eis aqui um possível paradoxo. Hobbes ao menos discernia a possibilidade de alguma ordem se todos se submetessem a uma autocracia férrea, no pressuposto de que preservar a vida, sob quaisquer condições, seria um quadro aceitável em comparação com a guerra generalizada. Viver sob ditaduras será, então, a nossa salvação? Dobrando ou não a nossa anêmica renda per capita, viveremos sob uma robusta segurança garantida pelo Estado, vale dizer, por aqueles, anjos ou bandidos, que o controlarão?
Suscitar essa indagação no presente momento é a pior ideia que nos poderia ocorrer. Hoje o inquilino do Planalto é simplesmente o mais despreparado dos presidentes que nos foi dado ter desde o marechal Deodoro. Jair Bolsonaro não é apenas iletrado, é irascível e ignorante. Deixemos de lado sua atuação no combate à pandemia, sabidamente insensível e irresponsável, levando a extremos inconcebíveis suas chances de sabotar o trabalho dos agentes de saúde. Se Sua Excelência compreendesse que sua missão só pode ser sanar as cicatrizes da eleição de 2018, buscando a convergência e a pacificação, já seria alguma coisa. Mas, para o capitão presidente, seu papel deve ser justamente o oposto disso. Seu objetivo é a reeleição em 2022, e salta aos olhos que ele a vê como favas contadas, bastando-lhe para tanto manter e estimular a radicalização.
Claro, não creio que Jair Bolsonaro tenha poderes demiúrgicos. Sozinho, não é capaz de produzir nem o bem nem o mal em escala superlativa. Vez por outra deixa escapar uma aspiração ditatorial, mas ditadura, sobretudo num país populoso e diversificado como o Brasil, só existe com a colaboração das Forças Armadas, e estas servem ao Estado, não a um caudilho qualquer – missão que começaram a definir já nos anos 1930, sob a influência predominante do general Góes Monteiro. Seus timoneiros nem sempre acertaram o curso, mas a identidade da organização militar é essa.
Derrocamento dessa ordem, nem os outros dois Poderes me parecem capazes de causar. O que eles podem fazer – e inequivocamente insistem em fazer – é dificultar as reformas sem as quais permaneceremos por 30 anos ou mais no sufoco da “renda média”. Na Câmara, por exemplo, os óbices chegam ao disparate de às vezes se tentar desfazer alguns avanços que a duras penas logramos implantar na esfera da reforma política – entre os quais devemos destacar o fim das coligações partidárias nas eleições legislativas. Dias atrás o novo presidente da Casa, deputado Arthur Lira (PP-AL), manifestou a intenção de restaurar aquela excrescência, responsável direta pela cacofonia partidária em que temos vivido.
Eis aí uma clara ilustração de que nosso problema como país ainda não é tentar enxergar mais longe. É tentar enxergar o que nos queima diariamente os olhos.
Dois anos de desgoverno – a política da caverna
Finalmente, a ralé da sociedade burguesa constituiu a sagrada falange da ordem e o herói Crapulinski se instaura nas Tulherias como o “salvador da sociedade”Karl Marx, "O 18 Brumário"
1.
Aproveitando-se de uma conjuntura internacional favorável, bem como de contingências internas que muito lhe beneficiaram no período imediatamente anterior às eleições presidenciais, o inesperado acabou por acontecer. A “contarrrevolução preventiva”, para recordar Florestan Fernandes, que estava em curso desde o golpe que levou Temer ao poder, acabou por abrir o caminho para o trágico desfecho nas eleições em 2018.
Como tentar caracterizar, ao menos preliminarmente, o governo Bolsonaro?
Penso que o ex-capitão é expressão de uma variante de semibonapartismo, isto é, trata-se de uma figura política que, não sendo originária diretamente das classes burguesas, as representa fielmente, mesmo que, para tanto, procure assumira aparência de independência e autonomia, ainda que, de fato, seja um reles gendarme da classe dominante.
Os traços pessoais do “líder” são, como muitos tem indicado, claramente neofascistas, oscilando sua ação política entre a preservação de uma raquítica formalidade “democrática”, mas sempre carregando o sonho inabalável de dar o golpe e implantar uma ditadura. Enquanto o bote não pode ser dado, atua como um autocrata da ordem, respaldado na enorme militarização que vem sendo realizada cotidiana e sistematicamente em seu governo.
A fórmula encontrada para estruturá-lo – visto que sua candidatura se mostrou como a única capaz de vencer o PT nas eleições em 2018 – foi combinar a autocracia militarizada com a implantação de uma política econômica ultraneoliberal, predatória, que foi a exigência feita pelo grande capital para que sua candidatura fosse efetivamente apoiada. O empresariado, sabendo do desequilíbrio que tipifica o candidato, temia por algum arroubo nacionalista (de direita), que fora largamente defendido pelo ex-capitão em seu passado parlamentar.
Numa síntese direta: Bolsonaro é uma espécie de Trump dos grotões.
2.
Seus primeiros dois anos se constituíram, como era possível de se prever, na maior tragédia econômica, social e política do país em todo o período republicano. Não há, em nenhum outro momento da história mais do que secular da nossa Republica, nada que se aproxime à devastação tão profunda e tão agudamente destrutiva que estamos presenciando hoje.
O cenário já sinalizava um período muito duro, uma vez que, desde que o início da década de 1970, ingressamos em um longo período de crise estrutural do sistema de metabolismo antissocial do capital, para lembrar István Mészáros, que gerou o ideário e a pragmática neoliberais, sob forte hegemonia financeira. Tendência que se aprofundou significativamente a partir do biênio 2008/9, criando as condições para que se forjasse uma contrarrevolução burguesa de amplitude global, especialmente a partir de eleição de Trump nos EUA.
Foi neste contexto que a nossa classe dominante, abandonando completamente qualquer resquício de apoio formal à institucionalidade “democrática” (que em verdade nunca esteve em seu horizonte, nem político e nem ideológico) assumiu abertamente sua desfaçatez colonial, escravista e quase prussiana, o que lhe permitiu rapidamente pular para a banda (ou o bando) do ex-capitão, ajudando assim a forjar um monstrengo politicamente autocrático, militarizado e ideologicamente primitivo e negacionista, desde que ancorado economicamente na variante mais rudimentar do neoliberalismo, ou seja, aquela que quer reduzir tudo a pó. Não por acaso, uma das tantas inspirações de Paulo Guedes e Bolsonaro, encontramos na política econômica do medonho governo de Pinochet, tão corrosivamente neoliberal quanto indigentemente ditatorial.
O que vivenciamos, então, nesta primeira metade do Governo Bolsonaro pode ser assim resumido: desmonte avassalador da legislação social protetora do trabalho; destruição da política de seguridade social, com a aprovação da Reforma da Previdência Pública – em verdade sua destruição – aprovada no dia 22 de outubro de 2019, na qual os assalariados mais pobres foram excluídos de uma efetiva previdência pública, restando-lhes, no máximo, um assistencialismo vergonhoso e acintoso.
No universo sindical, ampliaram-se as medidas repressivas do governo visando o enfraquecimento dos organismos de classe, além de tolher ainda mais o âmbito de atuação da Justiça do Trabalho, empurrando-a cada vez mais para os “valores do mercado” e para a aceitação das imposições oriundas do “mundo corporativo”, do qual a legalização do ilegal trabalho intermitente é o flagelo mais evidente e aberrante.
Vale dizer que esta proposição já estava estampada no programa eleitoral do ex-capitão e seu fiel escudeiro. A denominada Carteira de Trabalho “Verde e Amarela”, bem o sabemos, tem como leitmotiv implantar o sonho das burguesias predadoras, no qual “o contrato individual prevalecerá sobre a CLT”, derrogando de vez o que resta da legislação do trabalho no Brasil.
No plano da destruição da natureza, também não há paralelo em toda a história recente do país. Tivemos uma liberação recorde de agrotóxicos e defensivos agrícolas que adulteram os alimentos, tornando-se ainda mais prejudiciais à saúde pública. As queimadas e a devastação da Amazônia e Pantanal (dentre tantas outras áreas verdes) agudizaram o traço destrutivo desse governo, para beneficio das burguesias vinculadas ao agronegócio, à extração de minérios, madeira etc.
Economicamente, ainda que suas medidas devastadoramente neoliberais tenham gerado catarse na classe dominante, a eclosão da pandemia fez soçobrar o projeto presente em sua política da caverna. O culto da ignorância, na pior linhagem trumpiana, o desprezo e combate à ciência, à saúde pública, tudo isso acabou por levar o país ao fundo do poço, tanto no plano sanitário, quanto no econômico.
Foi esse quadro catrastrófico que forçou o governo a criar uma renda emergencial, sem a qual a economia entraria em crise depressiva ainda mais profunda, sem falar no temor de que tal situação pudesse deflagrar uma onda de revoltas e rebeliões sociais.
As reformas tributária e administrativa, as novas privatizações (incluindo a Petrobrás, bancos públicos etc.), também estão no tabuleiro negocial deste governo. Se esta é a impulsão que vem do neoliberalismo primitivo de Guedes, vale, então, indagar como agirá o Centrão, frente a essa realidade? Isto porque, todos sabemos, o pântano encontra e agasalha o seu quinhão não só através da barganha negocial parlamentar, mas também através do saque das empresas públicas.
E mais: se a recessão econômica não for estancada e não der sinais de retomada do crescimento, como agirão as distintas frações do grande capital, temerosas de repetir, em 2021, a retração dos ganhos e lucros que imaginaram obter, quando apoiaram e elegeram esse governo? Em 2020, os lucros que pretendiam obter, viram escorrer pelos dedos das mãos, consequência não só da pandemia, mas da trágica condução governamental frente a essa brutal crise sanitária.
Politicamente, já indicamos que Bolsonaro, ora avança em direção à ruptura da institucionalidade jurídico-parlamentar, ora a ela se amolda, pois percebe que o cerco ao seu governo pode levar ao seu fim (arrastando também toda a sua famiglia). É só por isso que o ex-capitão caminha entre estas duas pontes. Sonha com a ruptura institucional e com o golpe ditatorial, mas teme ser fagocitado, se a tacada não der certo. Aqui, vale dizer, tem papel decisivo a postura e ação das Forças Armadas, tema difícil e que se mostra cada vez mais grave, merecendo, por isso, ser tratado em profundidade e por especialistas.
Antevendo os riscos políticos que estava correndo, o defensor da “nova política” e do “fim da corrupção”, em flagrante evidência de estelionato eleitoral, recorreu ao colo do Centrão. Deu-lhe tudo que foi exigido e assim conseguiu arrastar uma instável maioria dos deputados – o conhecido pântano – de modo a tentar se safar do processo de impeachment. Risco, vale dizer, que aumenta cada vez mais, vistos os resultados desastrosos da política genocida do governo em relação à pandemia, cuja letalidade não para de crescer assustadoramente. E, uma vez mais, a maioria do Parlamento brasileiro se curvou às moedas reais, aniquilando de vez o minguado resquício de respeito que talvez ainda pudesse encontrar junto à população, para recordar a cortante crítica de Marx.
Por tudo isso, uma vez mais o desfecho deste quadro agudamente crítico parece nos remeter à anatomia da sociedade civil, uma vez que a crise tende a se exacerbar nesta segunda metade do mandato de Bolsonaro. Mas, atenção, pois aqui não se fala só de economia e nem só de política, mas de algo um pouco mais profundo: a economia política.
3.
Por tudo isso, o cenário que se descortina para o biênio 2021/2 é ainda mais imprevisível. Os níveis de desemprego explodiram e não param de crescer, a tal ponto que a informalidade já não consegue absorver os bolsões de desempregados/as. Um exemplo disso vimos nos dados do IBGE, de maio de 2020, que indicavam a redução dos níveis de informalidade, uma vez que também neste universo o desemprego estava se ampliando. Foi assim que, dentre as tantas “conquistas” deste governo-de-tipo-lumpen (figuração que, creio, não precisa ser explicada) mais um novo personagem da tragédia social brasileira foi criado: o informal-desempregado, adicionando ainda mais brutalidade ao monumental contingente de desempregados/as que ampliam os bolsões de miserabilidade no Brasil. Em 2014, depois de visitar a Índia, escrevi que nosso país caminhava para se tornar uma Índia latino americana. A provocação parece que fazia algum sentido…
Evidencia-se, assim, a decomposição econômica, social e política do governo Bolsonaro. Como consequência, nas classes populares, o apoio obtido em 2018 se retrai expressivamente. Processo similar vem ocorrendo também nas classes médias, que lhe apoiaram majoritariamente até pouco tempo e que parece estar se desmoronando, como resultado da política letal de combate à pandemia, com centenas de milhares de mortos e que repete, em versão muito pior, como vimos em Manaus, a morte por asfixia de milhares de doentes que não encontraram atendimento nos hospitais públicos.
Por certo, o núcleo duro do bolsonarismo, ou seja, aqueles que berram como debiloides trotando em manada, ao que tudo indica seguirá com o seu “Mito” até o fim, mesmo quando ele pratica as ações mais indigentes.
Por tudo que indicamos anteriormente, então, a luta pela deposição do governo Bolsonaro não resultará de uma iniciativa parlamentar, mas somente poderá vir a ocorrer como desdobramento de amplas manifestações populares, capazes de empurrar os deputados a abandonar o barco bolsonarista.
Neste cenário, é possível que presenciemos um movimento dúplice, que poderá se desenvolver tanto “pelo alto”, sob o comando das classes burguesas, quanto “pela base”, isto é, no universo das classes populares.
É possível imaginar, por um lado, que a oposição burguesa possa vir a desencadear um processo de descolamento em relação ao governo autocrático e semibonapartista que elegeu, o que poderá ocorrer se a crise econômica se intensificar e aprofundar ainda mais o quadro recessivo ao longo desta segunda parte do mandato.
Por outro lado, com o arrefecimento da pandemia, uma vez concluída uma etapa expressiva da vacinação, tudo indica que veremos florescer, nas ruas e praças públicas, um crescente movimento popular de repulsa e confrontação, exigindo o impeachment deste (des)governo. Mas é preciso acentuar que esse segundo movimento, de oposição social e popular, não deve ter nenhuma ilusão, nem com a oposição pelo alto e muito menos com o Parlamento. Tanto a primeira, a ação burguesa, quanto a parlamentar, serão tentadas a empurrar a “resolução” da crise para as eleições de 2022, na esperança de fazer a sucessão ao seu modo, sob seu comando e controle.
Já a oposição social e popular terá que se reinventar, evitando especialmente aquele que tem sido (recorrentemente) o seu principal erro social e político, que é o de atuar como cauda da burguesia, para uma vez mais lembrar Florestan Fernandes. Já é hora de se compreender definitivamente que a política de conciliação de classes é, ao mesmo tempo, um grave equívoco político e, mais ainda, uma impossibilidade real, uma vez que as forças econômicas do capital e as forças sociais do trabalho são entificações sociais inconciliáveis. Os governos do PT, ao longo de quase quatro governos, foram a evidência última e maior desta impossibilidade.
Em outras palavras, somente com uma forte confrontação social e política, extraparlamentar em sua centralidade, capaz de aglutinar um leque de forças populares das cidades e dos campos, poderá ser capaz de dar impulsão ao impeachment do governo Bolsonaro e de sua tropa. E esse movimento social e político encontra ancoragem nas lutas e resistências da classe trabalhadora, com seus sindicatos e partidos de classe, que devem decididamente abandonar a prioridade da ação institucional. Do mesmo modo, encontra densidade no vasto e ampliado conjunto dos movimentos sociais das periferias e no movimento negro antirracista. Deve decisivamente incorporar também as rebeliões feministas e LGBTs que lutam contra as múltiplas e persistentes formas de exploração/opressão, dimensões que estão profundamente inter-relacionadas. Last, but not least, encontra suporte nas vitais lutas das comunidades indígenas, no movimento ambientalista anticapitalista, nas revoltas da juventude etc., sem ter nenhuma ilusão com as forças burguesas, cujas portas quando se abrem, é para lhes conferir o papel de subalternidade. Tão logo seus objetivos são atingidos, celeremente as portas se fecham. Vide a deposição de Dilma.
Somente através dessa impulsão social e popular é que a luta pelo impeachment do governo Bolsonaro poderá efetivamente avançar. Se as praças públicas se avolumarem, através da presença multitudinária de amplos contingentes sociais e políticos, só então o Parlamento se verá obrigado a pautar aquilo que vem do clamor popular e assim, finalmente, pautar o impeachment do governo Bolsonaro.
E se esse movimento de deposição, por algum motivo, não se concretizar, ao menos estaremos dando início à criação de uma oposição social e política que poderá efetivamente pensar no que fazer em relação às eleições de 2022.
Ricardo Antunes
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