O Ano já nasce Novo basta fazer dele Bom
sexta-feira, 29 de dezembro de 2017
Anos lavados a jato
Papai Noel não se esqueceu dos investigados e condenados pela corrupção no Brasil. Nos sapatos na porta do xadrez, ou nas tornozeleiras na beira da cama, caíram vários presentes.
Era previsível essa ofensiva de fim de ano. Sempre foi assim no Brasil. Joga-se com o espírito de Natal, que dissolve todo ânimo de protesto.
Dois presidentes latino-americanos, Michel Temer e Pedro Pablo Kuczynski, do Peru, vestiram a roupa de Papai Noel e desceram pela chaminé dos presídios. Kuczynski libertou o ex-presidente Alberto Fujimori. Temer estendeu o perdão aos condenados por corrupção.
Ambos foram presenteados durante o ano com a permanência no cargo, ameaçada pela relação com empresas brasileiras. Lá, o escândalo envolveu a Odebrecht e Kuczynski. Aqui, o escândalo da JBS acabou abafando o lado Odebrecht nas várias acusações contra Temer.
Kuczynski , pelo menos libertou um adversário. Já Temer indultou os próprios aliados.
No fundo, é uma reação contra a Lava Jato nos dois países. Um tipo de reação que classifico como tentativa de redução de danos.
Existe outra que visa a neutralizar a Lava Jato e se desenvolve no front do STF. Seu maior objetivo, no momento, é questionar a prisão do condenado em segunda instância. A votação a favor dessa prisão, após o julgamento nos tribunais regionais, foi de 6 a 5.
Gilmar fala em mudar seu voto e virar o jogo. Num front combinado no Palácio do Planalto, os jornais indicam uma aproximação de Temer com o ministro Toffoli, que será o presidente do STF em 2018.
Minha intuição é que têm algo a discutir com urgência: o foro privilegiado. Toffoli suspendeu a votação, pedindo vista do processo, quando a vitória de restrição de foro já estava numericamente garantida.
A ideia que pode uni-los é a possibilidade de o tema ser votado na Câmara, da forma que os deputados escolherem. Nesse caso, as tentações serão muitas, como a de estender o foro privilegiado a ex-presidentes.
São incalculáveis as peripécias que podem surgir neste ano de eleição, quando a posição contra ou a favor da Lava Jato estará em jogo. O PT tende a apresentá-la como manobra imperialista. Alguns candidatos já a defendem abertamente, como Bolsonaro, Álvaro Dias e Marina.
Da boca pra fora, o PSDB pode aprová-la, mas há tantas questões internas não resolvidas que o partido não passa confiança no seu discurso.
Não sou chegado a retrospectivas. Mas o tema Lava Jato foi central nas decisões não só do STF, como de Temer, neste fim de ano. Na verdade, nos últimos anos a Lava Jato tem sido o fato determinante, o foco das notícias mais comentadas. Foi assim nos começos, meios e fins de ano. E provavelmente ainda será em 2018, mas em outro contexto.
De onde vem a primeira grande decisão do começo do ano? De Porto Alegre, no dia 24, quando estará em jogo um dos confrontos mais populares da operação: Lula x Lava Jato.
Um dos fatores determinantes da campanha eleitoral de 2018 está sendo jogado ali. Em qualquer hipótese, todos os cálculos terão de ser refeitos após a decisão do TRF-4 sobre Lula.
Isso é apenas um lembrete para aqueles que querem neutralizar a Lava Jato. Não é imaginável que o seu abalo continental não tenha sido sentido no epicentro do terremoto, o Brasil do PT, da Odebrecht e do BNDES.
O Supremo pode fazer voltar a roda do tempo e garantir que os acusados passem longa parte de sua vida redigindo petições e apresentando recursos. Mas até agora o Supremo não condenou ninguém pela Lava Jato. No Rio e em Curitiba já houve dezenas de condenações. Mesmo acabar com a prisão em segunda instância, abrindo prazo para longos recursos, já não terá o impacto de antes.
Maluf foi preso aos 86 anos. Sua penitenciária tem uma área geriátrica. Num futuro em que os recursos se alongam no STF, ainda assim terá de ser construído um complexo só para idosos.
Não adianta tapar o sol com a peneira. O País foi sacudido pela revelação do maior escândalo da História, partidos e empresas envolveram-se nele, o próprio sistema político entrou em colapso.
Ainda não é possível prever o impacto que tudo isso terá nas eleições. Existem pesquisas indicando o desencanto com os políticos. Todavia hoje há métodos que usam dados em quantidades gigantescas, cruzando-os e extraindo algumas hipóteses. Talvez vejam mais que as pesquisas.
É a primeira eleição presidencial depois do impacto sistêmico da Lava Jato. Não há como escapar dessa variável.
Mas a Lava Jato é apenas uma operação policial e o sistema político-partidário em ruínas, uma evidência. Pede mais do que uma defesa – a favor ou contra, digamos.
Daí a importância de questionar os candidatos não só sobre apoio, mas que conjunto de medidas está ao seu alcance para completar no âmbito político e legal a renovação que a Lava Jato inspirou. Na verdade, creio que este sempre foi o desejo da Lava Jato, a julgar pelas entrevistas: que a sociedade e o mundo político completem a tarefa.
Cada país, em circunstâncias como as nossas, faz sua renovação de acordo com as possibilidades históricas. A semente de mudanças que a Lava Jato espalhou é um dos trunfos da renovação. Supor que tudo será como antes é um sonho nostálgico, de adultos que ainda acreditam em Papai Noel.
A chance da sociedade é tirar o melhor proveito das eleições. Por dever, prazer ou mesmo com a resignação de quem toma um remédio amargo.
Certamente, vou encerrar desejando a todos um feliz ano novo. Sei que será difícil. Mas não são termos antagônicos. Difíceis têm sido estes anos e sobrevivemos. Devagar a economia melhora.
Como dizem nove entres dez candidatos, o Brasil tem jeito. Nada de errado com a frase, apenas com quem a proclama.
Impossível separar o presidente do denunciado
''Indulto não é prêmio a criminoso'', escreveu Cármen Lúcia, presidente do STF, ao suspender os efeitos de descalabros incluídos num decreto editado às vésperas do Natal por Michel Temer, para favorecer corruptos. Temer poderia ter passado a virada do ano sem esse vexame. Mas sua dupla personalidade atrapalhou. Tornou-se impossível distinguir o presidente do denunciado.
Autoproclamado presidente das reformas, Temer deveria reformar também o seu guarda-roupa. Como presidente, passaria a usar gravatas lisas. Como denunciado, gravatas estampadas. Isso permitiria a Temer adotar medidas que favorecessem a impunidade e trocar rapidamente a gravata para retomar a pose de presidente.
No Brasil de Temer, as decisões não são mais certas ou erradas. As providências são absorvidas ou pegam mal. O decreto que concedeu indulto natalino a corruptos —sem limite de tempo de condenação, com perdão de 80% das penas e 100% das multas— pegou mal. Mas Temer deu de ombros, transferindo para a Procuradoria e para o Supremo a tarefa de se preocupar com a moralidade.
O único risco da tática das gravatas seria o de que Temer não conseguisse administrar adequadamente suas duas personalidades. O receio é o de que o personagem enfrente uma crise do tipo médico e monstro. Às gargalhadas, o denunciado usaria indiscriminadamente o poder do presidente para estancar a sangria da Lava Jato sem nem se preocupar em trocar a gravata lisa pela estampada.
Autoproclamado presidente das reformas, Temer deveria reformar também o seu guarda-roupa. Como presidente, passaria a usar gravatas lisas. Como denunciado, gravatas estampadas. Isso permitiria a Temer adotar medidas que favorecessem a impunidade e trocar rapidamente a gravata para retomar a pose de presidente.
O único risco da tática das gravatas seria o de que Temer não conseguisse administrar adequadamente suas duas personalidades. O receio é o de que o personagem enfrente uma crise do tipo médico e monstro. Às gargalhadas, o denunciado usaria indiscriminadamente o poder do presidente para estancar a sangria da Lava Jato sem nem se preocupar em trocar a gravata lisa pela estampada.
Tristes trópicos!
Que fim de ano melancólico, o do presidente Michel Temer. Em menos de uma semana, colheu três frustrações: ficou sem ministro do Trabalho, teve que cancelar o repouso em uma das poucas áreas a salvo de balas perdidas no Rio de Janeiro, e foi obrigado a engolir parte do decreto de concessão do indulto de Natal a presos condenados.
O ministro Ronaldo Nogueira (PTB-RS) deixou o cargo com a desculpa de que precisa cuidar de sua reeleição à Câmara dos Deputados. Que nada! Saiu porque foram descobertas graves irregularidades na sua gestão – desde pagamentos superfaturados a funcionários à não execução de serviços em contratos. Celebre se for só isso.
Temer desistiu de passar o réveillon na Restinga da Marambaia, no Rio, à beira mar plantado e aos cuidados da Marinha porque ali não haveria estrutura médica suficiente para atendê-lo em caso de necessidade. Que nada! A verdade é outra. Simplesmente ele não anda bem de saúde. E seus médicos o aconselharam a permanecer em Brasília.
A decisão da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, de suspender trechos do indulto presidencial de Natal que beneficiava criminosos envolvidos com corrupção foi um desastre político para Temer. Quem comemorou um índice de popularidade de minguados 6% não precisava passar por mais uma vergonha dessas.
O primeiro presidente da República do Brasil denunciado por corrupção no exercício do cargo é também aquele que tentou sem sucesso indultar condenados por corrupção. Está bom ou Temer quer mais?
O ministro Ronaldo Nogueira (PTB-RS) deixou o cargo com a desculpa de que precisa cuidar de sua reeleição à Câmara dos Deputados. Que nada! Saiu porque foram descobertas graves irregularidades na sua gestão – desde pagamentos superfaturados a funcionários à não execução de serviços em contratos. Celebre se for só isso.
A decisão da ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, de suspender trechos do indulto presidencial de Natal que beneficiava criminosos envolvidos com corrupção foi um desastre político para Temer. Quem comemorou um índice de popularidade de minguados 6% não precisava passar por mais uma vergonha dessas.
O primeiro presidente da República do Brasil denunciado por corrupção no exercício do cargo é também aquele que tentou sem sucesso indultar condenados por corrupção. Está bom ou Temer quer mais?
Como as festas nos devoram
Passado o período das “festas”, vivemos um típico retorno às rotinas de um necessário conformismo humano diante da “realidade” – trabalho, problemas, preocupações…
Há algo básico nesse processo: o fato de que até segunda ordem a maioria vive sem nenhum brilho ou representa um papel de destaque na vida social. A festa (como o esporte que é o seu lado mais oficioso) obriga a uma fabricação fora do “real” – não seria melhor gastar em segurança, saúde e escolas? Por isso, elas inventam objetos e lugares especiais, preferencialmente de cabeça pra baixo, sobretudo no caso dos sistemas muito bem marcados por uma séria consciência de lugar, como é o caso brasileiro.
Sem o famoso “bolo de aniversário” ao gosto do aniversariante e com seu nome nele gravado a chocolate, como era o meu caso, não pode haver o teatro que alguns chamam de “ritual”. Objetos e comidas especiais levam ao uso de roupas e adereços que distinguem papéis e pessoas. Mesmo sem conhecer, sabemos quem é o aniversariante por sua roupa e sua posição na mesa. É ele e é dele o dever privilégio de apagar as velas do seu bolo, que será devidamente comido por todos os convidados.
Diz um velho axioma que todas as culturas replicam seus valores em suas manifestações, mesmo as mais humildes. São essas redundâncias que promovem as certezas, como dizia Edmund Leach; ou essas invariantes, no linguajar de Lévi-Strauss. Réplicas idênticas a si mesmas que vão do mais sério ao mais vulgar. Dou um exemplo: no Brasil, as festas têm que ter música; comemos misturando a comida. O detestável “bandejão” é uma invenção americana, na qual tudo é sempre individualizado. No uso das máscaras, desmascaramos a ilusão elitista de que somos alienados.
Seria preciso remarcar que o tema oculto das festas de aniversário, com as quais internalizamos a ideia de “idade” e de pertencimento a uma família (cuja obrigação é produzir a festa), tem tudo a ver com a comensalidade comunitária do canibalismo cristão? Nele, Cristo se une ao pão e ao vinho e os distribui dando a cada um, no ato de comer em conjunto, a mesma comida, a consciência precisa de seu pertencimento a ele e a toda a coletividade nele focada e por ele criada.
Comer a mesma comida é essencial para pertencer. No aniversário, somos obrigados a “comer” o bolo do Juquinha, o qual é um símbolo do próprio aniversariante, que, por sua vez, se delicia comendo com gosto o maior pedaço de si mesmo; depois de, como um velho Deus, soprar para apagar as velinhas que marcam as suas “primaveras”. Eis o tema do comer, do devorar, do englobar e do assentar o outro dentro de si mesmo como um ato de comunhão ou um gesto de superioridade. Eis de volta o canibalismo fundacional que significa, entre muitas coisas, o dar-se em sacrifício a uma pessoa ou grupo – o extremo do altruísmo. Ou, como remarcou Freud, tomar consciência dos limites que nos tornam humanos. Morrer apaixonadamente por amor e matar heroicamente por amor. Fiquemos nessa paisagem.
As festas exigem locais e, no caso dos rituais de passagem de ano – de um tempo em que toda a humanidade aniversaria – a praia (mediadora entre a terra firme e fechada por propriedades e o mar aberto, líquido e sem fronteiras visíveis) e os fogos de artifício acentuam o orgasmo formidável, embora, é claro, fugaz. Eles são explosões benéficas que fazem parte do que imaginamos como “graça” ou “milagre”. O morrer-nascendo ou o nascer-morrendo da consciência explosiva de alguma coisa como acontece quando escapamos de um perigo ou entramos num templo, juntam ou rejuntam esses polos que a rotina e o princípio da realidade distinguem de modo absoluto. No caso, o nascer como oposto do morrer, justo o que se pretende negar na passagem de um ano a outro porque o que se almeja é, obviamente, um belo futuro e não o fim do mundo. Marcamos 2013 sem deixar de querer que 2014 seja uma adição numa série infinita.
Os fogos de artifício enfatizam o fim sem negar o começo. As bombas se repetem para eliminar as distâncias entre o “ser”, o “ter sido” e o “vai ser”. Elas são ajudadas pelos fogos e, pela presença das celebridades que, cantando e dançando, brilham e trabalham para nós, dignificando vidas comuns.
Os famosos precisam de nós, tal como os deuses precisam de devotos. O que seria de um cantor sem um auditório? Os santos, as celebridades, os muito ricos e poderosos, abrem-se ao encontro e recebem de volta aquela vida trivial que também é deles, mas que a fama tem o papel de esconder. O grande feiticeiro sabe que não faz nada, exceto quando encontra o impotente sofredor que, com uma fé absurda, o procura em busca de cura.
Em toda festa, nos sujeitamos a uma contaminação ampliada pela eventual presença dos famosos. Nas comemorações, juntamos o velho com o novo, a vida com a morte, o superior com o inferior e com ajuda do nobre e mero álcool e dos “fogos de artifício” (fogos de mentira, porque os de verdade, matam); cortamos a água do grandioso rio do tempo que corre sem parar e não pode ser pisada duas vezes.
Há algo básico nesse processo: o fato de que até segunda ordem a maioria vive sem nenhum brilho ou representa um papel de destaque na vida social. A festa (como o esporte que é o seu lado mais oficioso) obriga a uma fabricação fora do “real” – não seria melhor gastar em segurança, saúde e escolas? Por isso, elas inventam objetos e lugares especiais, preferencialmente de cabeça pra baixo, sobretudo no caso dos sistemas muito bem marcados por uma séria consciência de lugar, como é o caso brasileiro.
Sem o famoso “bolo de aniversário” ao gosto do aniversariante e com seu nome nele gravado a chocolate, como era o meu caso, não pode haver o teatro que alguns chamam de “ritual”. Objetos e comidas especiais levam ao uso de roupas e adereços que distinguem papéis e pessoas. Mesmo sem conhecer, sabemos quem é o aniversariante por sua roupa e sua posição na mesa. É ele e é dele o dever privilégio de apagar as velas do seu bolo, que será devidamente comido por todos os convidados.
Seria preciso remarcar que o tema oculto das festas de aniversário, com as quais internalizamos a ideia de “idade” e de pertencimento a uma família (cuja obrigação é produzir a festa), tem tudo a ver com a comensalidade comunitária do canibalismo cristão? Nele, Cristo se une ao pão e ao vinho e os distribui dando a cada um, no ato de comer em conjunto, a mesma comida, a consciência precisa de seu pertencimento a ele e a toda a coletividade nele focada e por ele criada.
Comer a mesma comida é essencial para pertencer. No aniversário, somos obrigados a “comer” o bolo do Juquinha, o qual é um símbolo do próprio aniversariante, que, por sua vez, se delicia comendo com gosto o maior pedaço de si mesmo; depois de, como um velho Deus, soprar para apagar as velinhas que marcam as suas “primaveras”. Eis o tema do comer, do devorar, do englobar e do assentar o outro dentro de si mesmo como um ato de comunhão ou um gesto de superioridade. Eis de volta o canibalismo fundacional que significa, entre muitas coisas, o dar-se em sacrifício a uma pessoa ou grupo – o extremo do altruísmo. Ou, como remarcou Freud, tomar consciência dos limites que nos tornam humanos. Morrer apaixonadamente por amor e matar heroicamente por amor. Fiquemos nessa paisagem.
As festas exigem locais e, no caso dos rituais de passagem de ano – de um tempo em que toda a humanidade aniversaria – a praia (mediadora entre a terra firme e fechada por propriedades e o mar aberto, líquido e sem fronteiras visíveis) e os fogos de artifício acentuam o orgasmo formidável, embora, é claro, fugaz. Eles são explosões benéficas que fazem parte do que imaginamos como “graça” ou “milagre”. O morrer-nascendo ou o nascer-morrendo da consciência explosiva de alguma coisa como acontece quando escapamos de um perigo ou entramos num templo, juntam ou rejuntam esses polos que a rotina e o princípio da realidade distinguem de modo absoluto. No caso, o nascer como oposto do morrer, justo o que se pretende negar na passagem de um ano a outro porque o que se almeja é, obviamente, um belo futuro e não o fim do mundo. Marcamos 2013 sem deixar de querer que 2014 seja uma adição numa série infinita.
Os fogos de artifício enfatizam o fim sem negar o começo. As bombas se repetem para eliminar as distâncias entre o “ser”, o “ter sido” e o “vai ser”. Elas são ajudadas pelos fogos e, pela presença das celebridades que, cantando e dançando, brilham e trabalham para nós, dignificando vidas comuns.
Os famosos precisam de nós, tal como os deuses precisam de devotos. O que seria de um cantor sem um auditório? Os santos, as celebridades, os muito ricos e poderosos, abrem-se ao encontro e recebem de volta aquela vida trivial que também é deles, mas que a fama tem o papel de esconder. O grande feiticeiro sabe que não faz nada, exceto quando encontra o impotente sofredor que, com uma fé absurda, o procura em busca de cura.
Em toda festa, nos sujeitamos a uma contaminação ampliada pela eventual presença dos famosos. Nas comemorações, juntamos o velho com o novo, a vida com a morte, o superior com o inferior e com ajuda do nobre e mero álcool e dos “fogos de artifício” (fogos de mentira, porque os de verdade, matam); cortamos a água do grandioso rio do tempo que corre sem parar e não pode ser pisada duas vezes.
Herdeiros de Herodes
Anjos entoando cânticos celestiais, estrela-guia, paz na Terra, animais amigos aquecendo a manjedoura, humildes pastores reverenciando o Deus-menino, reis poderosos atravessando o deserto para trazer oferendas preciosas...
A temporada natalina traz símbolos positivos de todo tipo no campo espiritual. E, mais valioso que tudo, para os cristãos, a constatação de que Deus encarnou seu Filho, transformando-o em gente como nós, para trazer redenção a toda a humanidade e nos abrir novamente a possibilidade de cruzar as portas do paraíso.
Toda essa idílica e alegre celebração da paz e harmonia entre os homens, que celebramos nestes dias de Natal, é bruscamente interrompida a seguir, antes mesmo da grande festa de confraternização universal do Ano Novo e da celebração da chegada dos reis Magos, quando o calendário litúrgico relembra os chamados Santos Inocentes. Ou seja, os mártires de Herodes. Um episódio de terror.
A história se encadeia com a do Natal. Vale lembrá-la para quem não guarda a crueldade de sua ameaça numa memória infantil em pânico, a acenar com os bastidores do presépio alimentando pesadelos, em cenas fora da vista mas vivas nas palavras.
Ao tentarem visitar o recém-nascido, os reis ou magos vindos do Oriente em sua longa jornada pelo deserto, montados em camelos, seguindo uma estrela muito mais brilhante que as outras, chegaram a Jerusalém, em cujas cercanias acabara de nascer Jesus num estábulo, em Belém de Judá.
Mas essa precisão de endereço eles ainda não tinham. Procuraram descobrir, pois queriam “adorar o Rei dos Judeus.” Informado de sua presença na cidade, o rei Herodes, governador da província romana da Judeia, os recebeu, indagou sobre prazos da sua busca, consultou sacerdotes e escribas para conhecer as profecias, deu aos magos as coordenadas gerais e tratou de usá-los, pedindo que transmitissem seus cumprimentos e, na volta, lhe dissessem exatamente onde poderia achar o menino e sua família.
Mas eles regressaram por outro caminho, avisados em sonhos sobre as intenções do tirano. Ao constatar sua demora, Herodes não teve dúvidas e partiu para a ação. Mandou matar todas as crianças de Belém com menos de dois anos. A Sagrada Família escapou porque um anjo aparecera a José para alertá-lo do perigo e eles fugiram para o Egito.
Dois mil anos depois, Herodes deve esfregar as mãos de contente quando olha para o Brasil, se lá do fogo do inferno memória desta vida se consente. Diariamente estão morrendo entre nós, de morte violenta, mais crianças do que todas as vítimas desse Massacre dos Inocentes — como ficou conhecido o episódio.
Calcula-se que, dada a população de Belém na época, as vítimas infantis da matança bíblica tenham sido em torno a 20. No Brasil é muito mais, vencemos de goleada. Sem contar os pequenos de todas as idades que são abatidos pela miséria, desnutrição, falta de saneamento, ignorância.
Os números são assustadores, maiores do que os de países em guerra. Balas perdidas, tiroteios cruzados, assaltos, acidentes de trânsito, assassinatos, chacinas, as modalidades são incontáveis. Incluem até incêndio proposital em creche, com gasolina jogada nos bebês. Abarcam até disparos em bebês ainda não nascidos, pretensamente resguardados no ventre da mãe.
Inimaginável. Mas real.
Como se não bastasse, uma proporção não calculada dos sobreviventes que poderiam ter sido vítimas, mal conseguem crescer um pouquinho, inteiramente desprotegidos, analisam suas chances de sobrevivência e apostam em passar para o outro lado da arma, assim que têm uma chance.
Como policiais, milicianos ou bandidos, pressionam o gatilho, empunham a faca ou baixam o sarrafo. Antes que chegue sua vez de ser morto, todos jogam um jogo de cálculos com a sorte, sobre quanto tempo ainda pode dar para viver intensamente, na impunidade. Sem se preocupar com o dado de quantas vidas irão levar com a sua, quando em breve chegar a hora da contagem final.
Homens e mulheres de boa ou má vontade, estamos todos reféns da situação de herdeiros de Herodes. Ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices de matanças, chacinas e massacres. Na certeza de que o país não tem a menor eficiência para evitar isso e não consegue agir, a não ser recorrendo a mais violência de todo tipo e perpetuando mecanismos de impunidade. E sentindo dor. Muita dor. Sem saber o que fazer com ela. Neste Natal e em todos os dias do ano.
A temporada natalina traz símbolos positivos de todo tipo no campo espiritual. E, mais valioso que tudo, para os cristãos, a constatação de que Deus encarnou seu Filho, transformando-o em gente como nós, para trazer redenção a toda a humanidade e nos abrir novamente a possibilidade de cruzar as portas do paraíso.
Toda essa idílica e alegre celebração da paz e harmonia entre os homens, que celebramos nestes dias de Natal, é bruscamente interrompida a seguir, antes mesmo da grande festa de confraternização universal do Ano Novo e da celebração da chegada dos reis Magos, quando o calendário litúrgico relembra os chamados Santos Inocentes. Ou seja, os mártires de Herodes. Um episódio de terror.
Ao tentarem visitar o recém-nascido, os reis ou magos vindos do Oriente em sua longa jornada pelo deserto, montados em camelos, seguindo uma estrela muito mais brilhante que as outras, chegaram a Jerusalém, em cujas cercanias acabara de nascer Jesus num estábulo, em Belém de Judá.
Mas essa precisão de endereço eles ainda não tinham. Procuraram descobrir, pois queriam “adorar o Rei dos Judeus.” Informado de sua presença na cidade, o rei Herodes, governador da província romana da Judeia, os recebeu, indagou sobre prazos da sua busca, consultou sacerdotes e escribas para conhecer as profecias, deu aos magos as coordenadas gerais e tratou de usá-los, pedindo que transmitissem seus cumprimentos e, na volta, lhe dissessem exatamente onde poderia achar o menino e sua família.
Mas eles regressaram por outro caminho, avisados em sonhos sobre as intenções do tirano. Ao constatar sua demora, Herodes não teve dúvidas e partiu para a ação. Mandou matar todas as crianças de Belém com menos de dois anos. A Sagrada Família escapou porque um anjo aparecera a José para alertá-lo do perigo e eles fugiram para o Egito.
Dois mil anos depois, Herodes deve esfregar as mãos de contente quando olha para o Brasil, se lá do fogo do inferno memória desta vida se consente. Diariamente estão morrendo entre nós, de morte violenta, mais crianças do que todas as vítimas desse Massacre dos Inocentes — como ficou conhecido o episódio.
Calcula-se que, dada a população de Belém na época, as vítimas infantis da matança bíblica tenham sido em torno a 20. No Brasil é muito mais, vencemos de goleada. Sem contar os pequenos de todas as idades que são abatidos pela miséria, desnutrição, falta de saneamento, ignorância.
Os números são assustadores, maiores do que os de países em guerra. Balas perdidas, tiroteios cruzados, assaltos, acidentes de trânsito, assassinatos, chacinas, as modalidades são incontáveis. Incluem até incêndio proposital em creche, com gasolina jogada nos bebês. Abarcam até disparos em bebês ainda não nascidos, pretensamente resguardados no ventre da mãe.
Inimaginável. Mas real.
Como se não bastasse, uma proporção não calculada dos sobreviventes que poderiam ter sido vítimas, mal conseguem crescer um pouquinho, inteiramente desprotegidos, analisam suas chances de sobrevivência e apostam em passar para o outro lado da arma, assim que têm uma chance.
Como policiais, milicianos ou bandidos, pressionam o gatilho, empunham a faca ou baixam o sarrafo. Antes que chegue sua vez de ser morto, todos jogam um jogo de cálculos com a sorte, sobre quanto tempo ainda pode dar para viver intensamente, na impunidade. Sem se preocupar com o dado de quantas vidas irão levar com a sua, quando em breve chegar a hora da contagem final.
Homens e mulheres de boa ou má vontade, estamos todos reféns da situação de herdeiros de Herodes. Ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices de matanças, chacinas e massacres. Na certeza de que o país não tem a menor eficiência para evitar isso e não consegue agir, a não ser recorrendo a mais violência de todo tipo e perpetuando mecanismos de impunidade. E sentindo dor. Muita dor. Sem saber o que fazer com ela. Neste Natal e em todos os dias do ano.
Balança, balanço, balança
Daqui a pouco começaremos a ver as plaquinhas nas portas arriadas – “Fechado para Balanço”. É o controle que muitos comerciantes fazem logo no início do ano. Nós, individualmente (creio que todo mundo, de alguma forma), fazemos nessa época, nos nossos cantinhos, com os nossos botões, o nosso balanço interno. Pomos tudo na balança. O ano que se vai, pensa só, foi deles, do balanço e da balança, e olha que nosso chão chacoalhou um bocado.
O século vai chegar à sua maioridade. A gente fica remoendo ali nos pensamentos se fez tudo o que tinha para fazer. Lembra tudo o que aconteceu – nessa hora a memória funciona que é uma beleza, principalmente para lembrar maus bocados. Aí imediatamente procuramos quais foram os momentos bons para contrapor, enquanto tentamos recordar tudo o que prometemos, lá no final do outro ano, que faríamos neste ano. Fizemos? Ainda bem que muita coisa só a gente sabe que se prometeu, melhor assim, menos mal. Fica mais fácil falhar.
Passou rápido demais. Se me permitem, sinto que está mesmo passando tudo mais rápido. Deve ser esse afã impressionante que o mundo digital abriu diante de nós. Fica tudo tão em constante mutação que ficamos correndo atrás, numa infrutífera tentativa de alcançar a ponta da linha. E ela corre de nós.
Viver nesses tempos é distante da calmaria da imagem do balanço, aquele dos parques, das redes, das cordas nas árvores, dos playgrounds, e que alguém vem por detrás e empurra para dar impulso, e que a gente dá aquela risada nervosa quando vai lá na frente, tentando não se estabacar no chão.
Estamos mais para o navio que balança no mar bravio. Enquanto o samba toca, a gente balança, requebra, dá um remelexo. Assim superamos os solavancos, os abalos, que nos deixam tão balançados. Ô, marinheiro marinheiro/Marinheiro só/Ô, quem te ensinou a nadar/Marinheiro só/Ou foi o tombo do navio/Marinheiro só/Ou foi o balanço do mar…
Amor, amor deixa balançado. Desamor também. Tomar decisão deixa balançado. Medo de tomar algum revertério.
Ficar doente deixa tudo muito balançado. O corpo da gente também vive entre a balança e o balanço, às vezes bom, dançando. Balançamos a cabeça, os ombros, os braços, as pernas quando a cadeira em que sentamos é maior do que nós.
A balança que não serve só para nos fazer prometer regime, corta isso, corta aquilo, é também equilíbrio, harmonia, proporção. Os dois pratinhos paralelos. Quando a gente pesa os prós e os contras a sua imagem é recorrente. Uma balança ajuda em muita coisa. Tanto foi ano dela que em boa parte do tempo estivemos ligados em decisões de tribunais, que andam regendo os movimentos e desígnios do nosso país. Ritmos loucos.
O balanço geral, hoje chamado muito pomposamente de demonstração contábil, é parecido ao que fazemos pessoalmente – especialmente nesta última semana do ano, quando a coisa “bate” que o tempo passa. Medindo ativos, quantas vezes o fomos; passivos, quantas vezes nos submetemos. Mais: o capital que conquistamos, os lucros, os prejuízos, o aspecto geral de nossos negócios.
Anote bem os resultados. Esse ano, quando o século chega à maioridade, devemos estar mais maduros, responsáveis, prontos para encarar o futuro. Esse futuro aí, o da realidade, não aquele que ganha voz de conselheira nos comerciais de final de ano dos bancos na tevê – logo eles que na realidade tanto empatam o nosso.
Vamos pular essas ondas. Que venha 2018. Tomara que nele o maior balanço seja mesmo o do nosso andar faceiro, da nossa ginga por todas as boas estradas que o destino nos levar.
Marli Gonçalves
O século vai chegar à sua maioridade. A gente fica remoendo ali nos pensamentos se fez tudo o que tinha para fazer. Lembra tudo o que aconteceu – nessa hora a memória funciona que é uma beleza, principalmente para lembrar maus bocados. Aí imediatamente procuramos quais foram os momentos bons para contrapor, enquanto tentamos recordar tudo o que prometemos, lá no final do outro ano, que faríamos neste ano. Fizemos? Ainda bem que muita coisa só a gente sabe que se prometeu, melhor assim, menos mal. Fica mais fácil falhar.
Passou rápido demais. Se me permitem, sinto que está mesmo passando tudo mais rápido. Deve ser esse afã impressionante que o mundo digital abriu diante de nós. Fica tudo tão em constante mutação que ficamos correndo atrás, numa infrutífera tentativa de alcançar a ponta da linha. E ela corre de nós.
Viver nesses tempos é distante da calmaria da imagem do balanço, aquele dos parques, das redes, das cordas nas árvores, dos playgrounds, e que alguém vem por detrás e empurra para dar impulso, e que a gente dá aquela risada nervosa quando vai lá na frente, tentando não se estabacar no chão.
Estamos mais para o navio que balança no mar bravio. Enquanto o samba toca, a gente balança, requebra, dá um remelexo. Assim superamos os solavancos, os abalos, que nos deixam tão balançados. Ô, marinheiro marinheiro/Marinheiro só/Ô, quem te ensinou a nadar/Marinheiro só/Ou foi o tombo do navio/Marinheiro só/Ou foi o balanço do mar…
Amor, amor deixa balançado. Desamor também. Tomar decisão deixa balançado. Medo de tomar algum revertério.
Ficar doente deixa tudo muito balançado. O corpo da gente também vive entre a balança e o balanço, às vezes bom, dançando. Balançamos a cabeça, os ombros, os braços, as pernas quando a cadeira em que sentamos é maior do que nós.
A balança que não serve só para nos fazer prometer regime, corta isso, corta aquilo, é também equilíbrio, harmonia, proporção. Os dois pratinhos paralelos. Quando a gente pesa os prós e os contras a sua imagem é recorrente. Uma balança ajuda em muita coisa. Tanto foi ano dela que em boa parte do tempo estivemos ligados em decisões de tribunais, que andam regendo os movimentos e desígnios do nosso país. Ritmos loucos.
O balanço geral, hoje chamado muito pomposamente de demonstração contábil, é parecido ao que fazemos pessoalmente – especialmente nesta última semana do ano, quando a coisa “bate” que o tempo passa. Medindo ativos, quantas vezes o fomos; passivos, quantas vezes nos submetemos. Mais: o capital que conquistamos, os lucros, os prejuízos, o aspecto geral de nossos negócios.
Anote bem os resultados. Esse ano, quando o século chega à maioridade, devemos estar mais maduros, responsáveis, prontos para encarar o futuro. Esse futuro aí, o da realidade, não aquele que ganha voz de conselheira nos comerciais de final de ano dos bancos na tevê – logo eles que na realidade tanto empatam o nosso.
Vamos pular essas ondas. Que venha 2018. Tomara que nele o maior balanço seja mesmo o do nosso andar faceiro, da nossa ginga por todas as boas estradas que o destino nos levar.
Marli Gonçalves
As emoções de 2018
O Brasil entra em 2018 com uma grande indefinição política e outra boa perspectiva econômica. Todos sabem: ano de eleição, de Copa do Mundo, de beligerância entre nações no plano externo. Não faltarão emoções. Um ano repleto de reviravoltas em várias direções e que traz, como cereja do bolo, a retomada interna — a depender, claro, de inúmeros fatores. Principalmente do andamento das reformas. Nesse tocante, o papel dos senhores parlamentares é fundamental. Logo eles, que não foram exemplos de responsabilidade e engajamento nas pautas mais decisivas para o País. O Congresso continua a se mover por conveniências de cada um dos seus membros. E, em inúmeras ocasiões, disposto a praticar exclusivamente o deplorável jogo do toma lá dá cá. A contaminação dos perrengues políticos na engrenagem de funcionamento de diversas áreas, na atividade produtiva e na mente de cada um dos brasileiros tem gerado incertezas. Levado a um quadro de quase paralisia. Como se todos sofressem uma espécie de catatonia coletiva, esperando pelo desfecho redentor, enquanto a balbúrdia dos escândalos públicos tomava conta. Esse fenômeno foi claramente verificado no ano que passou. Existiam razões de sobra para um resgate de ânimo da população. Os indicadores começavam a sinalizar a estabilidade. Medidas de ajustes saíam do papel. O compromisso fiscal era assumido, e cumprido, pelo Governo. Tudo seguia bem até que uma verdadeira bomba atômica de denúncias — que depois se mostraram vazias — quase coloca tudo a perder. As armações de alguns empresários, com a colaboração decisiva de membros da Justiça, reintroduziu o ambiente de tensão. Levaram-se meses de discussões e investigações sobre propinas, gravações, delações, enquanto o País aguardava ansioso. A safadeza explícita dos políticos galvanizou as atenções. A crise de expectativas tem sido uma praga a emperrar o desenvolvimento nacional. Enquanto ela perdura os brasileiros perdem um tempo precioso. A boa nova é que isso ficou para trás. Um movimento firme e consistente da maioria dos setores da sociedade resolveu dar as costas a Brasília e seguir adiante, independentemente da fuzarca e sem-vergonhice praticada na Capital Federal. A mudança de postura tem dado certo. Cada um no seu quadrado tratou de voltar à rotina. Os planos e investimentos saíram da gaveta. Os consumidores passaram a comprar. Varejo e indústria se movimentaram. O desemprego caiu. A inflação e os juros também. O ânimo é outro. A crença em dias melhores tomou conta. Reflexo desse rearranjo na engrenagem, o PIB passou a crescer em ritmo alvissareiro. Deve fechar 2017 perto de 1%, feito extraordinário para um País que vinha de seguidas quedas no patamar de 3% negativos anualmente. E para o ano que se avizinha as estimativas são ainda maiores. Os analistas falam em até 4% de crescimento. É outro estado de espírito, mas que está a depender, naturalmente, da confirmação de algumas condicionantes. No plano político, o atual clima de radicalização entre extremos não é nada bom. O Brasil está literalmente conflagrado entre esquerda e direita por obra e atuação direta de dois personagens: os presidenciáveis Lula e Bolsonaro. O primeiro, encalacrado até o último fio de cabelo, com incontáveis processos na Justiça que devem inviabilizar sua candidatura. O outro, movido por um perigoso saudosismo das Forças Armadas, tenta a todo custo restabelecer o regime autoritário no poder. Por enquanto, os demais adversários nesse tabuleiro polarizado são figurinhas batizadas e sem talento para encantar as massas. À espera do novo, a esmagadora maioria dos eleitores torce pelo fim do ressentimento, da depressão e do medo que essas duas alternativas, Lula e Bolsonaro, impõem nas urnas. Um carnaval de notícias falsas, as chamadas fake news, deverá agravar ainda mais a campanha. Por isso mesmo, a rápida definição de uma opção de centro consistente e promissora pode vir a desanuviar o cenário político e, por tabela, garantir a retomada econômica. De uma maneira ou de outra, serão muitas emoções em 2018.
2018: A hora e a vez da política
A suposta supremacia da economia sobre a política povoou o senso comum durante muito tempo. A frase de James Carville, assessor de Bill Clinton, ainda ressoa: “é a economia, estúpido” fez escola na percepção da prevalência dos tais fatores de bem-estar econômico sobre o rondó sem fim, que é a discussão política – seus interesses dispersos, idiossincrasias e princípios mais ou menos abstratos.
No Brasil, esse sentimento foi reforçado por interpretações um tanto mecânicas dos planos Cruzado e Real. O primeiro, em 1986, ajudou o PMDB a eleger 22 governadores dentre 23 possíveis; o segundo fez Fernando Henrique Cardoso presidente da República, eleito ainda no primeiro turno de 1994.
Igualmente, o boom de commodities – que reelegeu Lula, em 2006, e operou o prodígio de eleger Dilma Rousseff duas vezes (2010 e 2014) presidente do Brasil – alimenta esse raciocínio. Além da presente crise econômica que contribuiu, decisivamente, para o afastamento da ex-presidente e a derrocada do PT nas eleições municipais de 2016.
Ora, é evidente que o momento econômico influencia o contexto social e político em qualquer país; é claro que pode definir eleições. Mas, como tudo na vida, nada é tão simples assim. Fenômenos econômicos como os descritos acima foram, antes, dependentes da política; são frutos de boas ou más escolhas políticas, e não o contrário. Logo, não há autonomia da economia sobre a política; há, na verdade, correlação e dependência mútuas.
No desconhecimento disso reside o principal erro analítico de quem vislumbrou e ainda vislumbra um ano eleitoral de 2018 de sucesso para o governo de Michel Temer, em virtude dos resultados econômicos que, eventualmente, o País possa alcançar nos próximos meses.
Primeiro porque, ao contrário de outros momentos – 1986, 1994 e 2010 –, o sistema político atual passa por uma crise sem registro na história, com índices rastejantes de popularidade. É dispensável recordar, aqui, os transtornos revelados pela Operação Lava Jato e seus efeitos para a credibilidade dos políticos.
Em segundo lugar, para que a economia possa ser determinante na disputa das urnas do próximo ano, sua euforia deveria ser comparável ao clima despertado pelo Cruzado, Real e o boom de commodities. Todavia, por mais que o quadro venha a ser positivo, o clima será, ainda, de recuperação. Para o cidadão comum, as perdas com a prolongada recessão não estarão plenamente compensadas. Será importante, mas insuficiente.
Analistas de mercado têm se animado com resultados já alcançados pela equipe econômica do governo e, provavelmente, ainda alcançáveis no próximo ano. Com efeito, a inflação retroagiu – está mesmo abaixo da meta do Copom, os juros caíram ao menor patamar histórico, os preços dos ativos estão baixos e é grande o potencial das concessões e privatizações.
Porém, a continuidade do processo depende da sustentabilidade política. Reformas estruturais, nas mãos do Congresso Nacional, capazes de elevar a confiança dos agentes econômicos e o ânimo para investimentos que potencializem a economia, reduzindo gargalos e higienizando o ambiente de negócios.
O quadro é, porém, conhecido: sistema político anacrônico e disfuncional, elevadíssimas taxas morais e fiscais que debilitam a confiança de eleitores e investidores. Um corpo político fraco, com enorme dificuldade para dar luz ao novo, no campo econômico. E nem se trata de crítica moral ao natural fisiologismo de qualquer sistema, mas de alerta para o estágio de hiperfisiologismo, com crescente ineficácia nos processos de discussão, negociação e aprovação de projetos.
Impõe-se um dilema: como ajudar a economia a ajudar a política se a política não apenas não se ajuda como também compromete a economia? É evidente que abrir mão da política e da democracia não são alternativas.
Dizem a literatura e a experiência internacionais que o principal dado econômico, com capacidade de influenciar eleições, são os índices de emprego. Quanto menores, maior o receio do futuro e pior o humor do eleitor, maior sua tendência ao protesto e à mudança – ou à nostalgia do passado, idealizado como “bons tempos”. Neste quesito, o desempenho nacional é ainda insatisfatório: haverá tempo para reverter o processo com a celeridade necessária para interferir no clima eleitoral?
Políticas públicas como segurança, saúde e educação são fundamentais, sobretudo num quadro de desemprego elevado. Como estarão as finanças de Estados e municípios, responsáveis e provedores de políticas desse tipo? Embora relevante, neste 2018 que se aproxima, a economia dependerá mais da política do que o contrário. Na realidade dura e crua, a economia poderá fazer pouco pela política.
O fato é que o País perdeu o timing do choque de expectativas, após o impeachment. Mais recentemente, perdeu também o ritmo das reformas. No autoengano houve desídia do mercado, embaraço moral e oportunismo do sistema político, ilusão e desconhecimento daqueles que, mais uma vez, negligenciaram importantes detalhes políticos. Isto tudo retirou da economia todo ou parte do potencial eleitoral que teria.
Óbvio que candidatos do autodenominado “centro democrático” tocarão o bumbo da recuperação econômica. Naturalmente, o presidente e sua base já tremulam bandeiras de um suposto legado econômico – qual seria o “legado” político? –, mas isso pode ser menos relevante do que gostariam.
Candidatos de oposição enfatizarão problemas econômicos, lacunas e insatisfações, apontando também o agravamento de questões sociais. E, claro, aqueles que puderem cuspir para o alto destacarão as mazelas e a deterioração da credibilidade do sistema.
A pregação econômica, metódica e racional, do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, ou do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, fala à razão de iniciados em relatórios e projeções econômicas, alegra convertidos. Mas, enquanto isso tudo não for percebido concretamente no cotidiano das pessoas comuns, o efeito eleitoral será pequeno. No Brasil, tudo é duvidoso, mas o mais provável é que 2018 seja o ano da política.
Carlos Melo
No Brasil, esse sentimento foi reforçado por interpretações um tanto mecânicas dos planos Cruzado e Real. O primeiro, em 1986, ajudou o PMDB a eleger 22 governadores dentre 23 possíveis; o segundo fez Fernando Henrique Cardoso presidente da República, eleito ainda no primeiro turno de 1994.
Igualmente, o boom de commodities – que reelegeu Lula, em 2006, e operou o prodígio de eleger Dilma Rousseff duas vezes (2010 e 2014) presidente do Brasil – alimenta esse raciocínio. Além da presente crise econômica que contribuiu, decisivamente, para o afastamento da ex-presidente e a derrocada do PT nas eleições municipais de 2016.
Ora, é evidente que o momento econômico influencia o contexto social e político em qualquer país; é claro que pode definir eleições. Mas, como tudo na vida, nada é tão simples assim. Fenômenos econômicos como os descritos acima foram, antes, dependentes da política; são frutos de boas ou más escolhas políticas, e não o contrário. Logo, não há autonomia da economia sobre a política; há, na verdade, correlação e dependência mútuas.
No desconhecimento disso reside o principal erro analítico de quem vislumbrou e ainda vislumbra um ano eleitoral de 2018 de sucesso para o governo de Michel Temer, em virtude dos resultados econômicos que, eventualmente, o País possa alcançar nos próximos meses.
Primeiro porque, ao contrário de outros momentos – 1986, 1994 e 2010 –, o sistema político atual passa por uma crise sem registro na história, com índices rastejantes de popularidade. É dispensável recordar, aqui, os transtornos revelados pela Operação Lava Jato e seus efeitos para a credibilidade dos políticos.
Em segundo lugar, para que a economia possa ser determinante na disputa das urnas do próximo ano, sua euforia deveria ser comparável ao clima despertado pelo Cruzado, Real e o boom de commodities. Todavia, por mais que o quadro venha a ser positivo, o clima será, ainda, de recuperação. Para o cidadão comum, as perdas com a prolongada recessão não estarão plenamente compensadas. Será importante, mas insuficiente.
Analistas de mercado têm se animado com resultados já alcançados pela equipe econômica do governo e, provavelmente, ainda alcançáveis no próximo ano. Com efeito, a inflação retroagiu – está mesmo abaixo da meta do Copom, os juros caíram ao menor patamar histórico, os preços dos ativos estão baixos e é grande o potencial das concessões e privatizações.
Porém, a continuidade do processo depende da sustentabilidade política. Reformas estruturais, nas mãos do Congresso Nacional, capazes de elevar a confiança dos agentes econômicos e o ânimo para investimentos que potencializem a economia, reduzindo gargalos e higienizando o ambiente de negócios.
O quadro é, porém, conhecido: sistema político anacrônico e disfuncional, elevadíssimas taxas morais e fiscais que debilitam a confiança de eleitores e investidores. Um corpo político fraco, com enorme dificuldade para dar luz ao novo, no campo econômico. E nem se trata de crítica moral ao natural fisiologismo de qualquer sistema, mas de alerta para o estágio de hiperfisiologismo, com crescente ineficácia nos processos de discussão, negociação e aprovação de projetos.
Impõe-se um dilema: como ajudar a economia a ajudar a política se a política não apenas não se ajuda como também compromete a economia? É evidente que abrir mão da política e da democracia não são alternativas.
Dizem a literatura e a experiência internacionais que o principal dado econômico, com capacidade de influenciar eleições, são os índices de emprego. Quanto menores, maior o receio do futuro e pior o humor do eleitor, maior sua tendência ao protesto e à mudança – ou à nostalgia do passado, idealizado como “bons tempos”. Neste quesito, o desempenho nacional é ainda insatisfatório: haverá tempo para reverter o processo com a celeridade necessária para interferir no clima eleitoral?
Políticas públicas como segurança, saúde e educação são fundamentais, sobretudo num quadro de desemprego elevado. Como estarão as finanças de Estados e municípios, responsáveis e provedores de políticas desse tipo? Embora relevante, neste 2018 que se aproxima, a economia dependerá mais da política do que o contrário. Na realidade dura e crua, a economia poderá fazer pouco pela política.
O fato é que o País perdeu o timing do choque de expectativas, após o impeachment. Mais recentemente, perdeu também o ritmo das reformas. No autoengano houve desídia do mercado, embaraço moral e oportunismo do sistema político, ilusão e desconhecimento daqueles que, mais uma vez, negligenciaram importantes detalhes políticos. Isto tudo retirou da economia todo ou parte do potencial eleitoral que teria.
Óbvio que candidatos do autodenominado “centro democrático” tocarão o bumbo da recuperação econômica. Naturalmente, o presidente e sua base já tremulam bandeiras de um suposto legado econômico – qual seria o “legado” político? –, mas isso pode ser menos relevante do que gostariam.
Candidatos de oposição enfatizarão problemas econômicos, lacunas e insatisfações, apontando também o agravamento de questões sociais. E, claro, aqueles que puderem cuspir para o alto destacarão as mazelas e a deterioração da credibilidade do sistema.
A pregação econômica, metódica e racional, do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, ou do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, fala à razão de iniciados em relatórios e projeções econômicas, alegra convertidos. Mas, enquanto isso tudo não for percebido concretamente no cotidiano das pessoas comuns, o efeito eleitoral será pequeno. No Brasil, tudo é duvidoso, mas o mais provável é que 2018 seja o ano da política.
Carlos Melo
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