sexta-feira, 4 de outubro de 2019
Propaganda sobre pacote de Moro chega tarde
A solenidade de lançamento da campanha publicitária sobre o pacote anticorrupção e anticrime organizado de Sergio Moro ocorreu numa conjuntura crivada de ironias. A primeira ironia é que o governo tenta esboçar o futuro do combate ao crime numa hora em que o Supremo Tribunal Federal se ocupa de desfazer sentenças passadas. Ao discursar, Bolsonaro privilegiou a segurança pública, não a corrupção. E rendeu homenagens aos policiais que matam mais. Moro, sem desprezar o tema da violência, deu ênfase à necessidade de aprimorar o combate à corrupção.
A campanha do governo fala de mudanças legislativas para melhorar ações futuras. O problema é que a recente decisão do Supremo de reconstituir o passado de sentenças já julgadas transforma a campanha oficial num novo exemplo de dinheiro público jogado pela janela. E faz de Sergio Moro um orador de conversa mole.
Os planos que o ministro pretendia aprovar no Congresso em seis meses tornam-se ainda mais oníricos quando se recorda que o seu chefe é um presidente da República cujo filho, Flávio Bolsonaro, foi superblindado por duas liminares do Supremo, uma do ministro Dias Toffoli, outra de Gilmar Mendes. Liminares que suspenderam processo em que o primeiro-filho era investigado por suspeita de peculato e lavagem de dinheiro.
Num cenário assim, o presidente tende a se aliar ao bloco de culpados e cúmplices do Congresso que esvazia o pacote de Moro e trama para desligar investigações da tomada. Para retirar o seu projeto do limbo, Moro teria de dialogar no Congresso com gente que merece interrogatório, não diálogo. Isso num momento em que a atuação do próprio ministro como ex-juiz da Lava Jato está sob questionamento. Num ambiente assim, é impossível ser otimista em relação ao futuro do combate à corrupção no Brasil.
Incentivo de Bolsonaro à matança policial ofende vítimas de tiroteios
Jair Bolsonaro lançou oficialmente seu programa de incentivo à carnificina generalizada. Num evento para divulgar a campanha publicitária do pacote de projetos do ministro Sergio Moro, o presidente ignorou quase todas as propostas objetivas e disse, basicamente, que a polícia deveria matar mais.
A ampliação das circunstâncias em que agentes armados podem atirar sem sofrer punição é uma conhecida fixação de Bolsonaro. Além de refletir um desprezo total pela inteligência nas políticas de segurança pública, o discurso ofende vítimas de violência policial, de balas perdidas e de grupos de extermínio.
O presidente falou por dez minutos na cerimônia realizada nesta quinta. Gastou 40 segundos com ações efetivas do governo, como a transferência de presos perigosos para regimes de isolamento. No resto do tempo, exaltou o bangue-bangue.
Bolsonaro reclamou da prisão de policiais acusados de excessos em operações. Disse que visitou alguns e concluiu: "Tinha culpado? Tinha, mas também tinha muito inocente".
Seu histórico mostra que ele não sabe fazer essa distinção. No evento, falou com orgulho das homenagens que já fez a agentes de segurança. Um dos agraciados, em 2005, foi o policial Adriano Nóbrega. Ele acabara de ser condenado por assassinar um homem que havia denunciado PMs por extorsão.
Hoje, é apontado como chefe do maior grupo de matadores de aluguel do Rio.
O presidente diz que a lei aplicada aos policiais deve ser mais branda para que "seja temida pelos marginais, e não pelo cidadão de bem". Ele poderia dizer como enquadra a menina Ágatha Félix, que levou um tiro nas costas durante uma operação há 13 dias. A revista Veja revelou que PMs tentaram roubar a bala que a matou para evitar punições.
O presidente diz que a lei aplicada aos policiais deve ser mais branda para que "seja temida pelos marginais, e não pelo cidadão de bem". Ele poderia dizer como enquadra a menina Ágatha Félix, que levou um tiro nas costas durante uma operação há 13 dias. A revista Veja revelou que PMs tentaram roubar a bala que a matou para evitar punições.
A flexibilização das regras não dá segurança a policiais sérios, pois a lei já protege quem mata em legítima defesa. Por outro lado, a mudança pode amparar quem usa farda para praticar crimes e agentes que atiram primeiro para perguntar depois.
A verdade apud Bolsonaro
Era uma vez um país onde o presidente da República descobriu que bom mesmo era a campanha, os palanques, as palmas, os Vivas!, a alegria de ouvir ‘Mito!, Mito! Mito!’.
Governar, ficar atrás de uma mesa de trabalho, se aborrecendo com decisões que tinha que tomar, lendo e aguentando as críticas que recebia, achou muito chato. Um trabalho pra lá de maçante. Não era bem isso que ele pretendia quando fez o possível e o impossível para ser eleito.
Então ele armou um palanque no portão do palácio onde residia e por onde passava, diariamente, ao sair de casa e onde encontrava, sempre, admiradores entusiasmados e turistas encantados com o fato de estar vendo e ouvindo o presidente da República. O palanque passou a ser seu lugar favorito. Se fosse possível, ele passaria ali o dia todo... Nada lhe seria mais simpático.
Pausa: o que será que ele quis dizer com isso? Será que ele se esqueceu que tudo foi filmado e transmitido ao vivo e que os brasileiros puderam ver e ouvir tudo que ele disse? Será que ele deseja que a Imprensa crie uma nova narrativa, que fuja inteiramente da realidade?
Bem, por mais que seus filhos e seus apoiadores desejem isso, de coração, vai ser difícil conseguir, pois há testemunhas de peso. Além dos representantes de todos os países que lotavam o plenário da ONU, a imprensa estrangeira viu, ouviu, traduziu e filmou tudo o que ele disse e sabe perfeitamente o quanto ele foi agressivo e infeliz ao falar em nome do Brasil.
Foi, sem dúvida, o pior pronunciamento de um chefe de Estado brasileiro ali, naquela ocasião que tem tudo para ser o momento mais iluminado do Brasil na ONU. Basta olhar a expressão dos chefes de Estado mesmerizados pelo som de seus fones de ouvido.
A cada nova frase do discurso, eu ficava tensa à espera de vaias, ou de abandono do plenário, ou de risos incontroláveis. Mas a diplomacia tem essa grande vantagem: ensina como deve ser o comportamento diante de todo tipo de discurso, do mais brilhante ao mais infeliz. O máximo que se permite é o tipo de aplauso de Angela Merkel, as quatro palmas lentas e de uma ironia inconfundível.
Bolsonaro atacou os governos brasileiros que o antecederam e gabou-se de tirar o Brasil das garras do socialismo; condenou países, que não nominou, a respeito de suas opiniões sobre a Amazônia; acusou a ONU, que o recebia com fidalguia naquele momento, de “perverter a identidade biológica” quando foi a favor da diversidade de gênero.
Tudo isso após alegar que traria a verdade ao plenário da ONU. Pena que ele pouco tenha lido, sobretudo a obra magnífica da Winston Churchill. Pois se tivesse lido saberia que “A verdade é incontestável. A maldade pode atacá-la, a ignorância dela escarnecer, mas ao fim, lá estará ela, impávida.”
Um dia, assim espero, o capitão Bolsonaro encontrará a verdade neste pensamento de Fernando Pessoa: “Eu sou aquilo que perdi”.
Governar, ficar atrás de uma mesa de trabalho, se aborrecendo com decisões que tinha que tomar, lendo e aguentando as críticas que recebia, achou muito chato. Um trabalho pra lá de maçante. Não era bem isso que ele pretendia quando fez o possível e o impossível para ser eleito.
Então ele armou um palanque no portão do palácio onde residia e por onde passava, diariamente, ao sair de casa e onde encontrava, sempre, admiradores entusiasmados e turistas encantados com o fato de estar vendo e ouvindo o presidente da República. O palanque passou a ser seu lugar favorito. Se fosse possível, ele passaria ali o dia todo... Nada lhe seria mais simpático.
Logo a Imprensa descobriu que ali era o melhor local para encontrar o presidente e ficar sabendo como andava seu humor. Aquele passou a ser o ponto de encontro, dos mais animados, do capitão com a Imprensa, sempre ágil em descobrir novidades.
Anteontem, ao passar por esse palanquete, os jornalistas logo viram que o humor do capitão estava dos mais amargos. Foi assim que ele se dirigiu aos representantes da Imprensa: "não vou falar com vocês enquanto vocês não noticiarem o que de verdade aconteceu na abertura da Assembleia-Geral da ONU".
Pausa: o que será que ele quis dizer com isso? Será que ele se esqueceu que tudo foi filmado e transmitido ao vivo e que os brasileiros puderam ver e ouvir tudo que ele disse? Será que ele deseja que a Imprensa crie uma nova narrativa, que fuja inteiramente da realidade?
Bem, por mais que seus filhos e seus apoiadores desejem isso, de coração, vai ser difícil conseguir, pois há testemunhas de peso. Além dos representantes de todos os países que lotavam o plenário da ONU, a imprensa estrangeira viu, ouviu, traduziu e filmou tudo o que ele disse e sabe perfeitamente o quanto ele foi agressivo e infeliz ao falar em nome do Brasil.
Foi, sem dúvida, o pior pronunciamento de um chefe de Estado brasileiro ali, naquela ocasião que tem tudo para ser o momento mais iluminado do Brasil na ONU. Basta olhar a expressão dos chefes de Estado mesmerizados pelo som de seus fones de ouvido.
A cada nova frase do discurso, eu ficava tensa à espera de vaias, ou de abandono do plenário, ou de risos incontroláveis. Mas a diplomacia tem essa grande vantagem: ensina como deve ser o comportamento diante de todo tipo de discurso, do mais brilhante ao mais infeliz. O máximo que se permite é o tipo de aplauso de Angela Merkel, as quatro palmas lentas e de uma ironia inconfundível.
Bolsonaro atacou os governos brasileiros que o antecederam e gabou-se de tirar o Brasil das garras do socialismo; condenou países, que não nominou, a respeito de suas opiniões sobre a Amazônia; acusou a ONU, que o recebia com fidalguia naquele momento, de “perverter a identidade biológica” quando foi a favor da diversidade de gênero.
Tudo isso após alegar que traria a verdade ao plenário da ONU. Pena que ele pouco tenha lido, sobretudo a obra magnífica da Winston Churchill. Pois se tivesse lido saberia que “A verdade é incontestável. A maldade pode atacá-la, a ignorância dela escarnecer, mas ao fim, lá estará ela, impávida.”
A História, no futuro, nos dirá se essa campanha estendida no palanque do portão do Alvorada foi boa ou má para o Brasil e para seu presidente, o ex-capitão do Exército.
Um dia, assim espero, o capitão Bolsonaro encontrará a verdade neste pensamento de Fernando Pessoa: “Eu sou aquilo que perdi”.
'Ele sobreviveu com sua armadura de livros e letras'
A trajetória do protagonista Ariel em certa medida parafraseia o provérbio africano que diz: “Até que os leões tenham suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”. Jovem negro, morador do Nordeste de Amaralina, bairro pobre da capital baiana, preso sem entender sob que acusação, sem direito a um julgamento justo, violentado nas instalações do sistema prisional, é o sujeito em primeiro plano de uma revolução que se dá pela soma da consciência das fissuras do sistema e da corrupção do Estado, da força das ações coletivas e do acesso, ainda que mínimo, ao conhecimento. A narrativa da vida de Ariel, antes e durante quatro anos na prisão, mescla ficção e realidade de vários jovens negros como ele. A partir de sua experiência carcerária, conhecemos diferentes perfis de homens pretos marcados pelo racismo, extremamente eficiente, pode-se dizer, em suas práticas de exclusão e morte.
A cadeia, narrada por Borges, acumula memórias das pequenas humilhações cotidianas da população negra da Bahia, do medo de ser confundido com bandido na rua ou de acabar “esquecido” na prisão por falta de um defensor público. Além disso, as condições de alimentação, higiene e atendimento médico precários são explorados com a honestidade que falta muitas vezes em outros tipos de relatos, como os dos programas policiais de televisão. Destaca-se também o protagonismo das mulheres na luta, na contracorrente dos constrangimentos a que são submetidas mães e companheiras dos homens presos durante as visitas ou nas abordagens policiais nos bairros.
Um elemento fundamental do enredo é a recuperação da Chacina do Cabula, o que coloca o livro inevitavelmente na encruzilhada entre ficção e documento. Na chacina, doze jovens, entre 16 e 27 anos, foram mortos pela Polícia Militar da Bahia em fevereiro de 2015. Os laudos à época indicaram que foram disparados 143 tiros, 88 atingindo os corpos em posição de autodefesa. Os nove policiais militares indiciados pelo crime são réus e chegaram a ser julgados e absolvidos no mesmo ano, porém a sentença foi anulada após pedido do Ministério Público da Bahia.
Da trama real à escritura, o romance faz dois movimentos importantes; o primeiro, um recuo necessário na história recente da cidade de Salvador, para falar do genocídio da população negra e periférica, da militarização do sistema carcerário, das condições de vida dos presos, do racismo estrutural que marca previamente negros como população preferencial dos presídios e que nos serve de janela para pensar sobre o que ocorre em todo o país. O segundo, igualmente profundo, é o chamado sobre o poder transformador da literatura. Ariel mantém a sanidade quando preso graças ao amor pela namorada que o ajudou a aprender a ler longe da faixa etária prescrita pelo sistema de ensino, e por meio de uma escrita quase compulsiva praticada a contragosto das condições do presídio. Resumindo assim, pode soar romântico ou populista, mas não é, como não foi com Lima Barreto, Solano Trindade, Paulo Colina, Adão Ventura e tantos outros autores que deram tessitura a corpos negros. Ariel, sujeito que deve ser pensado no coletivo, e o livro que escreve nas paredes da penitenciária acabam por homenagear à literatura enquanto lugar de resistência e proteção.
Encontrar o equilíbrio entre ficção e história, forma literária e conteúdo, escrita e denúncia é a tarefa incontestável do autor. Ariel transmuda uma cela em biblioteca e as paredes de uma solitária em folhas de papel, convocando o leitor a pensar como a leitura pode mudar rumos. Como bem define Matheuza Xavier, militante da organização política “Reaja ou será mort@” e coordenadora da Escola Pan-africanista Winnie Mandela, ele é “o herói tão esperado de nossos tempos, da pele preta e com lápis na mão”.
Do livro também escorre uma atualidade desconfortante, comprovada de novo pelos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o assombroso número de pessoas mortas pela polícia. Para trazer à superfície a violência por que é marcada a vida da população negra, além de Ariel, conhecemos uma galeria de personagens invisíveis no cotidiano branco de classe média; são homens, vendedores ambulantes, catadores de material reciclável, porteiros e lixeiros que se deslocam para os bairros nobres durante o dia. São mulheres que carregam o mundo nas costas, porque maternar homens e mulheres negros sabendo como opera o sistema de exclusão é a primeira batalha das suas vidas, e depois porque elas vão para o front em nome da justiça e em defesa dos direitos de filhos, sobrinhos e companheiros.
Em termos de representação de personagens negros, dar humanidade a quem o tecido social muitas vezes renega é algo a ser mais explorado na literatura. Os novos nomes que despontam em festas literárias e selos editoriais preocupados com esta autoria fazem uma curva importante, mas ainda incipiente, sobretudo em se tratando de temáticas específicas, como é o caso de Hamilton Borges. Ciente disso, o autor assume a posição de um escritor que quer propor novas representações não apenas da população preta, mas daquela que ocupa talvez a mais perversa instituição de controle social. O desafio de denunciar o Estado e ao mesmo passo humanizar personagens que apenas mais recentemente deixam de ocupar papeis subalternos torna o livro necessário para qualquer leitor disposto a entender o mundo equivocado e cruel em que fomos arremessados. É um convite a conhecer outras perspectivas sociais, o que deveria bastar como experiência estética. Para além, é claro, de marcar em nossa literatura atual uma narrativa de compreensão da própria história em marcha a partir da visão de sujeitos sem privilégios, alijados em uma posição quase intransponível de mobilidade social.
Com O livro preto de Ariel, Borges parece encerrar uma primeira e bem realizada trilogia em diferentes gêneros (conto, poesia e romance), uma vez que nos livros anteriores, Salvador: cidade-túmulo (2018) e Teoria Geral do Fracasso (2017), o autor trata dos mesmos temas: violência contra negros, racismo antinegro, as condições e os modos de operar do sistema penitenciário. Na capital mais negra do país, na cidade mais negra fora da África, ter a pele preta, para usar o emblemático título de Ana Maria Gonçalves, já é “um defeito de cor”. O livro preto de Ariel chega em hora apropriada, quando não apenas a Bahia, mas todo o país, precisa com urgência enfrentar a crueldade que nos leva dois séculos para trás e nos recoloca num lugar de barbárie.
Edma de Góis
A porra da árvore
A maneira de Bolsonaro se referir à árvore é injusta. A árvore não é uma porra. É verdade que contém uma seiva que, à visão desarmada, pode ser confundida com o esperma --ambos são espessos, aderentes e viscosos. Mas a semelhança acaba aí, e Bolsonaro, matuto de origem, sabe disso. Seu uso de "porra", portanto, só pode ter se dado na forma chula, significando, segundo o Aurélio, "enfado, impaciência, desagrado". É o que as árvores lhe provocam, donde estar dedicando seu mandato a transformar o Brasil num pasto ou numa Serra Pelada sem volta. Deve isso aos patronos da sua candidatura.
O jovem Bolsonaro certamente se aplicava em chutar árvores, desfolhar galhos ou urinar em canteiros. Mas, se cursou a escola fundamental, talvez tenha aprendido que o Brasil nasceu de uma árvore: o pau-brasil, cujo ciclo econômico durou pouco, pela exploração irresponsável que o levou à quase extinção. Bolsonaro não gosta dos índios, mas sua mentalidade tem algo em comum com a deles --também é extrativista.
Quanto à porra, expressão que usou para desmerecer a árvore, é bom lembrar que, na origem, Bolsonaro também já foi uma. Pelo menos, foi chapinhando nela que se cruzaram os genes que o formaram. Em respeito ao leitor, vou me abster de entrar em detalhes.
Basta dizer que, embora talvez Bolsonaro não acredite, o processo de sua fecundação foi o mesmo que gerou o cacique Raoni.Ruy Castro*
Todos os poderes do Supremo
A decisão de Toffoli é problemática em si, pois traz prejuízos à luta contra a corrupção e se choca com compromissos internacionais do País. De sua parte, Bolsonaro escanteou o Coaf e o transformou num órgão de inteligência financeira no Banco Central.
Tudo começou com o dinheiro de Fabrício Queiroz e Flávio Bolsonaro. O mínimo que se pode dizer e que é difícil de explicar, senão não haveria tanto empenho em bloquear as investigações. Mas o Coaf numa outra dimensão estava também examinando as contas bancárias da mulher de Toffoli e da de Gilmar. Pobre Coaf: uniu o presidente e dois Poderes contra ele. Sem contar Senado e Câmara, cujos líderes não morrem de amores por quem segue o curso do dinheiro.
Para agravar o problema, surgiu um grupo corrupto na Receita Federal, precisamente em contato com a Lava Jato do Rio de Janeiro. Foi desmantelado nesta semana. Tudo indica que acessou ilegalmente os dados da mulher de Gilmar.
Quando Toffoli proibiu usar dados do Coaf, ainda não se sabia desses crimes dos fiscais, levantados pela própria Lava Jato. E sua decisão repercute em centenas de casos policiais no Brasil, paralisa investigações. A suspeita de corrupção na Polícia Federal, por exemplo, não poderia suspender todas as suas atividades no combate ao crime.
Toffoli criou uma delegacia própria dentro do STF. Alexandre de Moraes funciona como o delegado. Censurou a revista Crusoé, determinou buscas e apreensões na casa das pessoas.
Eles têm um canto próprio de poder e os outros ministros parecem conformar-se. As lamentáveis declarações de Janot serviram para fortalecer esse núcleo e, simultaneamente, revelar seu viés autoritário.
Considero razoável que, depois do que disse, fosse apreendida a arma de Rodrigo Janot. Para evitar recaídas. No entanto, é completamente inexplicável apreender celulares, computadores e tablets na casa do ex-procurador. Não esclarece nada sobre o caso, todavia abre um leque de informações valiosas no jogo do poder.
Da mesma forma, é exagerado proibir que Janot se aproxime de qualquer ministro do Supremo. Não há nenhum indício de que represente perigo para os dez restantes. É supor que Janot encontrasse um ministro e dissesse: não tem o Gilmar, vai você mesmo.
São passos de uma dança velha como a política. A pretexto de combater os métodos autoritários, enveredam pelo caminho que querem combater.
Numa decisão do plenário, o Supremo deu a entender que poderia suspender muitas condenações da Lava Jato. Minha presunção é de ter sido apenas um bode na sala: restringir a anulação da sentença aos casos de quem recorreu.
Apenas uma presunção. O Supremo sabe que não há uma oposição pequena no Congresso e Jair Bolsonaro foi neutralizado pelo flanco aberto no caso de Flávio e Queiroz. A única modulação possível nasce na sociedade, embora algumas manifestações que pedem o fechamento do STF acabem por fortalecê-lo, tal como é. É uma situação complicada e no fundo está em jogo não a extinção da Lava Jato, mas o limite do freio de arrumação.
Se as coisas marcham nesse ritmo, o limite será dado com o fim da prisão em segunda instância. Suponho que esse seja o marco que pretendem atingir.
Não considero surpreendente que Lula tenha desprezado a progressão de sua pena e se recusado a deixar a prisão. Empregou toda a sua energia na tese de que é inocente e nega o processo de corrupção. Por que, agora, sair da cadeia e enfraquecer a própria narrativa? Sobretudo porque no horizonte está a decisão do Supremo sobre a prisão em segunda instância, ou mesmo a suspeição de Sergio Moro. Ele se mostra mais experiente que seus conselheiros.
Num mundo em que as narrativas atropelam as evidências, elas são a matéria-prima do processo eleitoral. Narrativas contra narrativas, as do populismo de direita ou de esquerda continuam sendo as que mais polarizam. Esse confronto é previsível e existe em outros países. O que há de singular é ver como a política caiu nas mãos da Justiça. De um lado, pela incapacidade de resolver no espaço próprio grandes temas nacionais. O Supremo decide pelos parlamentares. Além disso, tanto esquerda como direita têm seus problemas criminais e precisam sempre da boa vontade dos ministros.
Não creio que Toffoli, Gilmar e Moraes queiram o poder apenas para si. Duvido que contestassem o surgimento de outro núcleo, com objetivos próprios e, quem sabe, sua própria delegacia informal. Poderes monocráticos ou mesmo grupais na alta Corte são apenas um reflexo do vazio em torno dela.
O que é possível hoje, e nesse sentido a democracia está de pé, é protestar, mesmo sabendo que são eles que decidem se ouvem ou não. Como disse acima, é uma democracia. Mas não do tipo que você está satisfeito com seu funcionamento.
O processo de redemocratização foi tocado com consensos bastante amplos, como o da luta pelas eleições diretas. Os próprios atores o levaram para um impasse. Vieram a Lava Jato, as delações do fim do mundo.
As eleições eram um caminho para recomeçar. Mas a renovação foi insuficiente no Congresso. E Bolsonaro é um museu de novidades.
O próprio calendário eleitoral pode reanimar a energia renovadora, voltada para as cidades e seus problemas. Ainda assim, o quadro nacional continua inquietante.
É algo que pode ser também retomado com novas batalhas eleitorais. Mas não suprime a questão: o que fazer até lá, como se mover nesse labirinto?
Planos para o passado
Eu queria escrever aqui alguma coisa que fizesse sentido em meio a esta absurda distopia em que estamos metidos. Mas não consigo. A realidade me engole, mastiga e me cospe. Eu só queria dizer que tenho um monte de motivos para acreditar que vai dar tudo certo, e que vamos sair desta ainda mais fortes como nação. Mas não posso. Os diários populares saltam na minha garganta e me sufocam cotidianamente. Eu ficaria feliz da vida se no horizonte, mesmo que distante, assim, apagadinha, alguma esperança acenasse com um lenço branco. Mas não vejo sequer a miragem de uma saída honesta. Muito antes pelo contrário. São trevas que nos assolam. Há em curso um movimento de ataque à inteligência e às liberdades individuais. Seria prazeroso trazer aqui as últimas conquistas nas áreas da ciência e da pesquisa, os resultados dos nossos projetos em educação e saúde. Mas foram todos guilhotinados. Serviram suas cabeças em bandejas de nióbio. Como me faria bem revelar, em primeira mão, algum avanço, qualquer que seja, na direção de um futuro digno. Acontece que estamos marchando em uma esteira elétrica ensaboada, os que ainda não caíram não saem do lugar. É triste. É mais que triste. É nojento. Alguém poderia, por favor, me trazer um Fontol?! Perdoem, caríssimos, minha desesperança, mas é que eu não consigo mais fingir que não é comigo. Não me comove fazer planos para o passado.
Licença para matar (e ocultar provas)
O governo vai gastar R$ 10 milhões para promover o chamado pacote anticrime. As peças publicitárias foram apresentadas ontem, em solenidade no Planalto. Usam viaturas cenográficas e linguagem sensacionalista, no tom dos programas policiais de TV.
Desde a campanha, Bolsonaro repete que o policial que mata “tem que ser condecorado e não processado”. Ontem a Polícia Civil prendeu quatro pessoas ligadas ao PM reformado Ronnie Lessa, acusado de executar a vereadora Marielle Franco. De acordo com as investigações, o grupo jogou a arma do crime no mar.
A suspeita de ocultação de provas também ronda a morte da menina Ágatha Félix, de oito anos. A PM alega que ela morreu durante tiroteio, versão contestada pela família. Dos onze policiais chamados para a reconstituição do crime, só dois apareceram. O caso mobilizou o país, mas Bolsonaro se recusa a comentá-lo.
Ontem a PM prometeu apurar o relato, publicado pela revista “Veja”, de que agentes teriam ido ao hospital para pegar a bala que matou a menina. Em Brasília, Moro foi questionado sobre o silêncio do presidente. “A pergunta não é apropriada”, desconversou.
A campanha tem lances de propaganda enganosa. Um dos anúncios trata da prisão em segunda instância, que os deputados já retiraram do texto original. Quem assistir aos comerciais ficará com a impressão de que a proposta está prestes a ser aprovada.
O pacote tem sido criticado por proteger policiais que cometem excessos “sob escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Ontem o ministro Sergio Moro insistiu que isso não significa uma licença para matar. Faltou combinar com o presidente Jair Bolsonaro, que voltou a defender PMs acusados de execuções.
“Muitas vezes, a gente vê um policial militar que é mais conhecido ser alçado para uma função e vem a imprensa dizer: ‘Ele tem 20 autos de resistência’. Tinha que ter 50! É sinal de que ele trabalha”, disse. O presidente contou que batia ponto na cadeia de Benfica para visitar PMs presos. Ele acrescentou que muitos seriam vítimas de “ativismo” da Justiça e do Ministério Público. “Um absurdo isso daí!”, esbravejou.
Desde a campanha, Bolsonaro repete que o policial que mata “tem que ser condecorado e não processado”. Ontem a Polícia Civil prendeu quatro pessoas ligadas ao PM reformado Ronnie Lessa, acusado de executar a vereadora Marielle Franco. De acordo com as investigações, o grupo jogou a arma do crime no mar.
A suspeita de ocultação de provas também ronda a morte da menina Ágatha Félix, de oito anos. A PM alega que ela morreu durante tiroteio, versão contestada pela família. Dos onze policiais chamados para a reconstituição do crime, só dois apareceram. O caso mobilizou o país, mas Bolsonaro se recusa a comentá-lo.
Ontem a PM prometeu apurar o relato, publicado pela revista “Veja”, de que agentes teriam ido ao hospital para pegar a bala que matou a menina. Em Brasília, Moro foi questionado sobre o silêncio do presidente. “A pergunta não é apropriada”, desconversou.
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