quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Brasil com nova comissão


O falso mito

Tinha de acontecer. Ao ver o presidente Jair Bolsonaro ser chamado de "Mito! Mito!" por claques profissionais e inocentes úteis, onde quer que apareça, os verdadeiros mitos brasileiros resolveram se unir e protestar contra o que consideram uma usurpação de seus direitos na lenda nacional. Os mitos são figuras simbólicas, que pertencem ao folclore —lendas construídas pelo povo, com o objetivo de nos ensinar ou explicar alguma coisa, mas sempre benignas.

A Mula-Sem-Cabeça, por exemplo, é uma mulher que foi seduzida por um padre e, por isso, nas noites de quarta-feira, transforma-se num animal que, apesar de sem cabeça, relincha e lança chispas pelas narinas. O Boto é o contrário. Nos fins de tarde na Amazônia, aparece para as moças como um rapaz de branco, engravida-as e, depois, novamente boto, volta para o rio. Os dois têm uma conotação moral, mas Bolsonaro só deve ver neles imoralidade.

O Saci-Pererê é o menino negro, de uma perna só, cachimbo na boca e carapuça vermelha, que dá o exemplo pelo contraste, tipo "não façam o que eu faço". Por isso cria confusão na floresta, assusta o gado, lança pistas falsas, joga uns contra os outros. É o que Bolsonaro está fazendo com o país, só que para valer.

Os mais revoltados são o Curupira e o Boitatá —por serem os protetores das florestas e de seus habitantes. O Curupira é o menino de cabelos ruivos e pés com os calcanhares para frente. Os pés ao contrário são para despistar os caçadores, pecuaristas, mineradores, grileiros e outros que não hesitam em devastar ou matar os que interferem com seus interesses. O Boitatá é a cobra-de-fogo, o fogo purificador, também guardião dos animais e das árvores. Gosta de aparecer à noite, quando os depredadores se julgam a salvo, para lhes infundir pavor.

Para eles, o mito Bolsonaro é não apenas falso, como prega e pratica o contrário do que se espera dos mitos dignos deste nome.

Muda só a cor

O bolsonarismo se constrói como um PT ao contrário. Algo como “se o PT fez, Bolsonaro também pode fazer”. Ele não tem projeto de Governo, mas apenas de poder. Seu único plano é manter o domínio sobre 30% do eleitorado e se tornar uma espécie de Lula de direita nos próximos anos. É um anti-Lula, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução em modo reverso
Christian Lynch

Sem senso de urgência ao arrumar a economia

A economia brasileira está perto de completar cinco anos desde que, em 2015 e 2016, afundou num buraco onde ainda está, sem saída à vista. Uma imagem dessa tragédia veio na capa do suplemento Eu & Fim de Semana, do jornal Valor do último dia 12. É uma visão do fundo do buraco para fora, e as margens dele na superfície mostram o mapa do Brasil.


A respeito do que nos levou a esse buraco, usualmente são apontadas as más ações do governo Dilma Rousseff, como nas contas públicas e em mercados como os de energia elétrica e petróleo. Mas também é preciso atentar para a dificuldade de, em seguida, adotar medidas para sair do buraco e, não menos importante, de perceber que ele surgiu no caminho de uma estagnação de longo prazo que desde 1980 marca a economia. Estagnação é o crescimento do produto interno bruto (PIB) abaixo do potencial de um país, e não a interrupção desse crescimento.

Quanto a essa estagnação, há vários mecanismos atuantes e, subjacentes a eles, causas econômicas e político-institucionais. Um dos mecanismos opera assim: pós-Constituição de 1988 a carga tributária bruta subiu até 2008, depois caiu um pouco e voltou a subir; em 2018 bateu o recorde da série histórica iniciada em 1947, o novo valor é de 35,1% do PIB, conforme este jornal do dia 29/7. Além disso, com os empréstimos que toma, principalmente para pagar juros de sua dívida crescente, o governo absorve mais uns 6% do PIB, tomando assim cerca de 41% do setor privado, o das empresas e famílias. Mas atuando dessa forma o governo retira recursos de um setor que investe, em expansão da capacidade produtiva, muito mais do que ele, que fica em apenas cerca de 2% do PIB, enquanto o setor privado alcança perto de 13% do PIB.

Conforme o economista Carlos Antônio Rocca, famílias e empresas poupam perto de 20% do PIB, mas emprestando cerca de 6% do PIB ao governo, este, nada propenso a investir, consome ou “despoupa” esses recursos, o que prejudica o crescimento da economia, pois o investimento é a força mais importante a impulsioná-lo. Aliás, Rocca receberá neste mês o prêmio de Economista do Ano, da Ordem dos Economistas do Brasil. Já lhe era devido há muito tempo. Especialista em fluxo de fundos, o “siga o dinheiro”, ou o “follow the money” da economia como um todo, só ao mostrar esse desvio, de uma grande poupança que não chega ao investimento, o credenciaria para essa premiação.

A ampliação da carga tributária veio porque a Constituição de 1988 criou mais obrigações para o governo, que, ao concedê-las, mais outras benesses, ampliou essa carga, levando-a a sucessivos recordes, culminando com o citado, de 2018, que agravou o mecanismo apontado.

Noutro mecanismo danoso, na Constituição há várias regras que carecem de mudanças, pois a realidade é dinâmica e exige flexibilidade em regras jurídicas de alcance econômico e social. O resultado é uma inflexibilidade decisória que prejudica o crescimento econômico, entre outras nefastas consequências.

O caso da Previdência Social é ilustrativo dessas dificuldades. É sabido que as regras previdenciárias atuais são incompatíveis com a saúde financeira do sistema, dado o rápido envelhecimento da população, que diminui a proporção entre contribuintes e beneficiários. Nesse contexto, as aposentadorias precoces, sem adequados limites de idade, somam-se às dificuldades demográficas que o sistema enfrenta. E há ainda outras regras frouxas na concessão de benefícios.

A reforma previdenciária ainda depende de mais votações no Congresso. Mesmo que não seja de novo reduzida em seu impacto fiscal, já se fala que uma nova reforma será necessária na próxima década, e excluiu-se do projeto original de reforma a supressão do assunto do texto constitucional, o que facilitaria mudanças. Ou seja, mais procrastinação do problema e encrencas políticas no caminho de resolvê-lo.

Noutra visão, é como se a Constituição operasse num sistema analógico, enquanto o universo a que ela se aplica tem uma dinâmica digital muito acelerada, gerando e acentuando desequilíbrios de todo o tipo.

Com isso ela perde eficácia, que se soma à maléfica ação de políticos aéticos ao não se pautarem pelo bem comum, com exceções cada vez mais excepcionais. Essa falta de ética é falta de educação e não sei como resolver. Mas para buscar maior eficácia na gestão há duas lições de Stephen Covey, cujo principal livro conheci num seminário sobre gestão no qual a maioria dos presentes era de executivos empresariais, sem um único da área governamental. A primeira é que gestores eficazes devem, evidentemente, dar prioridade à solução dos problemas mais importantes e urgentes. A segunda é que eles também não podem negligenciar problemas importantes, mas na ocasião não tão urgentes, pois mais à frente essa negligência vai torná-los crônicos e de consequências muito mais sérias.

Aqui, no Brasil, essa procrastinação é um hábito dos nossos governantes, como demonstrado pelo próprio caso da Previdência Social; e conforme o noticiário dos últimos dias, há outros problemas evidentes, como o prisional e o saneamento básico, de solução também procrastinada.

Ainda na Previdência, o projeto de reforma do governo Michel Temer, sem êxito então, não foi aproveitado pelo governo atual, que poderia tê-lo apoiado e expandido mesmo antes da sua posse, para ganhar tempo. E numa nova procrastinação, a votação do projeto atual foi suspensa por um abominável recesso parlamentar, que deveria desaparecer até a adoção das medidas legislativas necessárias à saída do buraco.

Em síntese, há uma vocação nacional para procrastinar soluções de graves problemas. Falta um senso de urgência, sem o qual a economia vai seguir acumulando décadas perdidas num caminho agravado por um buraco hoje, outro amanhã.

'Lógica' de Bolsonaro aguça conflitos e aprofunda mal-estar

Após se certificar da aprovação da reforma da Previdência, o presidente Jair Bolsonaro se desvencilhou do bom senso e do comedimento exigidos ao chefe de Nação. Das declarações estapafúrdias a correspondentes estrangeiros até a agressão à memória das vítimas do regime militar, o Brasil se vê num processo vertiginoso em que o disparate do dia supera o anterior. Uma torrente de despautérios que deixa o País em transe.


A pergunta repetida é: o que pretende Bolsonaro? Difícil responder. No destempero habitual, fruto de personalidade autoritária, o presidente dá tiros a esmo. É o estilo do homem. Aparenta ser mais instintivo que estratégico. Mesmo assim, é claro que sua ação não deixa de ter aqui e ali objetivos e inevitáveis consequências.

O certo é que não fala para a Nação. Nem a totalidade dos 57 milhões de eleitores que o sufragaram sancionaria, na íntegra, o que tem dito. É interessante notar o número de visitas que, presidente, já fez ao Congresso Nacional. Seria a nostalgia dos tempos de deputado, quando qualquer declaração era impune? Estaria governando como se ainda deputado fosse?

Tematicamente, é possível. Mesmo assim, há inegável salto político: dirigindo-se apenas aos que aprovam seu governo – em torno de 30%, de acordo com as pesquisas –, Bolsonaro forja e consolida um relevante campo eleitoral. Na desorientação da oposição e na fragmentação do centro, confiando no alheamento político-eleitoral e na perplexidade das instituições, os destemperos do presidente mantêm sua tropa unida, agregam e dão sentido a setores tão reacionários quanto ele.

Está longe de ser a maioria, mas acaba por somar um contingente que, hoje, o coloca como a principal força política do País. Nada mau para quem há um ano não tinha maiores perspectivas e ainda hoje carece de propostas. O problema é que essa lógica aguça conflitos, aprofunda o mal-estar, no Brasil e no exterior, assusta e afugenta investidores. Pior, pode ao final desagregar o que ainda entendemos como Nação.
Carlos Melo

Paisagem brasileira

Casario, Gabriel de Andrade

Está na hora de o Brasil cair na realidade

Ultimamente tenho um certo receio de olhar as notícias. Quase diariamente se ouve mais uma crueldade, um comentário infantil, uma mentira ou uma ameaça do presidente Jair Bolsonaro ou de um de seus ministros. É desesperador, é frustrante, é de sentir vergonha alheia. É também de dar medo.

O trágico é que estamos vivendo um momento-chave da história. Se a humanidade não agir depressa e coletivamente, dentro de não muito tempo viveremos uma reviravolta inimaginável. O mundo como existe hoje se transformará dramaticamente.

Quem diz isso não são teóricos da conspiração, mas sim instituições científicas de todo o mundo. É consenso entre os especialistas: a mudança climática global está chegando! A questão é só com que força vai se abater. Ela é a maior ameaça a nossa segurança. A situação é de emergência.

É claro que a mudança climática também atingirá o Brasil. No entanto, a maioria dos brasileiros age como se vivesse em outro planeta. Os especialistas dizem que as condições meteóricas extremas vão se agravar no Brasil. Ficará mais quente e mais seco, vai haver mais secas e carência d'água. Também as tempestades fortes e chuvas apocalípticas aumentarão; graves inundações serão cada vez mais frequentes. Tudo isso já se faz sentir, de forma incipiente.

Nas democracias ocidentais, o consenso é que se atingiu um ponto crítico, e seria necessário agir de forma rápida e decidida. Consenso, com duas grandes exceções: os Estados Unidos e o Brasil. Lá, quem governa é a vulgar nova direita, que declarou a mudança climática uma invenção da esquerda.

De que o presidente do Brasil se ocupou nas últimas duas semanas? Uma seleção aleatória:

– Ele elogia o trabalho infantil.

– Ele nega a fome no Brasil.

– Ele ofende o Nordeste.

– Ele não conhece os dados das repartições governamentais sobre o desmatamento da Amazônia. Quando é informado sobre eles, diz que são falsos.

– Ele quer tornar seu filho embaixador nos Estados Unidos, "porque pretendo beneficiar filho meu, sim".

– Ele distribui "abraços héteros".

– Ele divulga o Instagram da esposa para ter "alguma recompensa hoje em casa".

– Ele ameaça o jornalista de renome mundial Glenn Greenwald de "pegar cana no Brasil".

– Ele tacha de "idiotas" as perguntas sobre o uso de verbas públicas no casamento de seu filho.

– Ele anuncia que quer explorar as terras indígenas protegidas pela Constituição.

– Ele ataca da pior maneira possível o presidente da OAB e sua família.

– Ele corta os cabelos ao vivo.

Com seu sadismo, sua infantilidade, sua fanfarronice, sua preguiça intelectual e suas mentiras, Bolsonaro domina o discurso no dia a dia do Brasil. Uma das muitas desvantagens dos sistemas presidencialistas do continente americano é uma só pessoa poder definir a agenda de todo um país. Pois: e se essa pessoa não bater muito bem da bola?

O ser humano é um animal altruísta, que deve seu sucesso no planeta, acima de tudo, à cooperação. Provavelmente, todos os leitores concordam com essa frase. Portanto, a grande questão é: por que somos cada vez mais governados por psicopatas?

Uma sociedade é sempre bem-sucedida quando reconhece desafios, procura soluções e as implementa – essa sempre é uma enorme chance de progresso e crescimento. A mudança climática é um desses desafios, ela exige que raciocinemos diferente. Faz parte da tragédia de nossa época as duas maiores e mais populosas nações das Américas serem governadas por homens condicionados pelo velho raciocínio, respectivamente, raciocínio nenhum. Eles vivem em mundos paralelos, onde a mudança climática não acontece.

Em sua obra Colapso, o biólogo e evolucionista americano Jared Diamond enumera alguns fatores importantes que contribuíram para o ocaso de sociedades, na história. Entre eles: ignorância diante de problemas existenciais como carência d'água ou desflorestamento; fanatismo religioso ou político; conflitos internos graves; líderes com mais interesse na manutenção de poder no curto prazo do que em mudanças de longo prazo. Soa familiar?

O Brasil é o quinto maior emissor de gases do efeito estufa do mundo, atrás apenas de China, EUA, Rússia e Índia. Cerca de 75% das emissões do Brasil estão associadas a usos da terra, como agropecuária e sobretudo desmatamento. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento avança rapidamente em 2019. A devastação das florestas cresceu 54% entre janeiro e julho, em relação ao mesmo período em 2018.

O governo do Brasil não quer reconhecer isso. Jair Bolsonaro prefere chamar os dados de "mentiras". A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, diz: "Não podemos cair nessa histeria." O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, afirma que a Amazônia tem "desmatamento relativo zero" e faz propaganda no Twitter para a montadora americana Chevrolet.

Na mudança climática, a questão não são as asneiras e vaidades de Jair Bolsonaro ou Donald Trump. Os interesses especiais dos seus ministros. Ou esquerda ou direita. A questão somos todos nós.
Philipp Lichterbeck

Novo tratamento


Ninguém quer presos mortos, mas é o habitat deles, né?
Jair Bolsonaro

Biolsonaro promove hiperinflação perigosa das palavras

Franz Kafka e Adolf Hitler teriam se encontrado numa das noites boêmias de Praga, no período entreguerras. O escritor judeu, considerado um ótimo ouvinte por seus amigos, teria por acaso escutado os delírios racistas e autoritários daquele austríaco aspirante a pintor e a ditador. Kafka teria se arrepiado: o que se diz abre caminho para o que se quer fazer, o que se pode fazer, e aquelas palavras abjetas prenunciavam a barbárie em escala industrial. A cena termina com um paralelo de dois momentos, em meados dos anos 1920: o autor de O Processo agoniza no leito de morte enquanto o autor de Mein Kampf discursa a seus apoiadores numa cela de prisão. O fio de pólvora do século XX está aceso.

Quem imagina essa história é Ricardo Piglia, num dos maiores romances argentinos do século passado, Respiração Artificial . Publicado em 1980, o livro comentava de modo oblíquo a ditadura no país, instalada entre 1976 e 1983, uma das mais sanguinárias da América do Sul, que nesses anos estava quase toda sob o autoritarismo: Uruguai, Chile, Paraguai e, evidentemente, Brasil, entre outros.


A cena narrada por Piglia não me saiu da cabeça nos últimos dias, conforme o tiete de torturadores e assassinos Jair Bolsonaro disparava barbaridades verbais (Antonio Prata encontrou a palavra exata: “ logorreia ”). Foram tantas, que não vale a pena enumerá-las, e isso levando em conta apenas os últimos quinze dias. Imaginem quantas vezes elas se multiplicariam se incluíssemos seus sete meses e poucos dias de Presidência, ou suas décadas como deputado federal, de muita verborragia e quase nenhum projeto. A primeira vítima de Bolsonaro, a que ele volta todo dia para atacar e degradar, são as palavras.

Não há consenso entre seus críticos se o jato de atrocidades verbais é estratégia – de modo a desviar atenção e a tomar as rédeas do debate público – ou tosquice – ele agiu assim por toda sua carreira política, não mudaria agora que tem ainda mais poder. Uma coisa, aliás, não exclui a outra.

Há indícios sólidos, porém, de que a situação é insustentável, ainda mais num país como o Brasil, com pouca tradição de debate público e muitos fantasmas autoritários que permanecem no nosso cotidiano (por exemplo, o assassinato do cacique Emyra Wajãpi , liderança indígena, um tipo de atrocidade que ocorre desde, mais ou menos, 1500). A questão é: como responder ao vômito de barbaridades verbais do presidente, de modo a preservar a democracia e a civilidade? É possível?

Não há receitas. Podemos tentar medidas semelhantes às de países que vivem situações parecidas, como recomenda o crítico Idelber Avelar : a imprensa dos EUA usa em manchetes a expressão “Trump mente ao dizer que...” quando o mitômano deles agride a inteligência alheia com falsidades, calúnias e lorotas em geral. Isso provavelmente ajudaria, por dar concretude às palavras.

Afinal, este é um dos piores aspectos da disenteria verbal que caracteriza Bolsonaro: as palavras se esgarçam, se afrouxam e por fim se esvaziam. Poderíamos comparar esse desgaste a uma espécie de hiperinflação. A cada dia que passa, e a cada pesquisa ou manifestação que indique perda de apoio político, o presidente aumenta o volume de suas declarações cruéis e covardes. Seus apoiadores correm para naturalizá-las; a imprensa se atrapalha e provoca o mesmo efeito, por negligência, imperícia ou imprudência – às vezes pelo interesse mesmo. As palavras passam a valer menos, os limites do que pode ser dito se alargam. Segundo o romance de Piglia, não demora para que também se alarguem os limites do que pode ser feito – algo literalmente mortal num país como o Brasil.

Matadores de borboletas azuis

Diante da morte, e do julgamento mais iníquo da história, o inocente Nazareno perdoa incondicionalmente a seus algozes. Mas quem de nós pode perdoar a cruz imposta a Cristo? Como perdoar o desprezo e o falso julgamento de Caifás e as mãos lavadas de Pilatos? 

Estes são os legítimos ressentimentos, as razões daqueles cujas bandeiras estampam as cores da justiça e da verdade. São também, entre tantas, nossas razões de poetas, os motivos pelos quais cantamos, nossas licenças literárias, nosso encanto e desencanto, nosso íntimo e angustiante tribunal. 

Sabem os homens justos e sabemos os poetas que nossas denúncias e testemunhos, nossos líricos veredictos se escorrem, ignorados ou esquecidos, pelos ralos da inconsciência humana. Sabemos que o perdão pessoal é o único passaporte que cruza a fronteira da paz interior e da liberdade do espírito, e por isso a justiça deve ser impessoal e ser entregue aos tribunais inexoráveis da própria vida. Mas ainda não consegui visar esse precioso documento. 

Como perdoar a cicuta imposta a Sócrates, os que gargalharam no Coliseu ante os cristãos devorados pelas feras, como perdoar os crimes de Torquemada e a fogueira acesa a João Huss e a Giordano Bruno?

Nunca poderei perdoar uma Hiroshima arrasada, nem Auschwitz e nem Treblinka, e as crianças ardendo em napalm na Saigon bombardeada.
A Grande Alma da Índia, abençoando o assassino. Ele perdoou, e você? E o tiro em Luther King? Chico Mendes? Dorothy Stang? Por certo foram perdoados. 

Mas, na memória de Allende e dos mártires chilenos, não perdoo a Pinochet.
Não perdoo tanta dor por Caupolican empalado, Tupac Amaru, numa praça esquartejado e Otto René Castillo, durante três dias queimando.

 Alex Frechette
Federico García Lorca…,
já não tinhas mais abrigo,
campo frio, amanhecendo,
caminhavas entre os fuzis….
e naquela hora em Granada fomos crivados contigo.
Morremos com Lord Byron,
pela liberdade da Grécia.
Morremos com Victor Jará,
com Ariel Santibañez
torturados até a morte nas prisões de Santiago.
Javier Heraud, ainda infante,
cinco livros publicados o poeta guerrilheiro,
no verde vale do Cuzco,
com vinte e um anos apenas ele caiu emboscado.
Não perdoo, não perdoo,
tantos poetas sangrados,
pelas vidas silenciadas nos horrores dos DOI-CODI,
e os carrascos do Regime, só aqui anistiados.
Não perdoo, não perdoo, os crimes da ditadura,
a MEMÓRIA não perdoa
e a pátria jamais perdoa seus filhos sem sepultura.


Consola-me acreditar que, apesar da impunidade dos códigos da Terra e da nossa impotência ante a crueldade humana, há uma instância superior da justiça onde se colhe, obrigatoriamente, os frutos amargos dos actos humanos, semeados livremente, mas sem a noção do dever.
Manoel de Andrade, "As palavras no espelho"

Pensamento do Dia

Pawel Kuczynski

Sarcófago do passado

Das muitas faces do fascismo como regime político, a que determina a essência de sua natureza é o terrorismo de Estado. A existência de um partido de massas organizado e militarizado, com um braço armado, que foi a característica principal dos partidos de Benito Mussolini, na Itália, e de Adolf Hitler, na Alemanha, não seria suficiente para a caracterização do regime se não houvesse implementado, de forma sistemática, o terrorismo de Estado.

A supressão de liberdades e garantias individuais e a perseguição sistemática de oposicionistas são suficientes para caracterizar um regime autoritário, seja de direita, seja de esquerda, como na Hungria e na Venezuela, respectivamente. O fascismo aberto se instala, porém, quando a repressão policial é acionada de forma sistemática contra a população em geral, a pretexto de manter a ordem pública, e a perseguição seletiva aos oposicionistas se estabelece com objetivo de eliminar fisicamente os adversários, por meio de prisões, sequestros, torturas e assassinatos.

Foi o que aconteceu, por exemplo, nos regimes militares que se instalaram na América Latina nas décadas de 1950 (Guatemala e Paraguai), 1960 (Argentina, Brasil, Bolívia, República Dominicana, Nicarágua e Peru) e 1970 (Uruguai e Chile), com forte apoio dos Estados Unidos, em razão da guerra fria com a União Soviética e demais países da então chamada Cortina de Ferro. A maioria desses países transitou para a democracia e se manteve na órbita do Ocidente, a partir do governo de Jimmy Carter, o presidente norte-americano que adotou a defesa dos direitos humanos como vértice de sua política externa, no fim dos anos 1970.

No Brasil, o processo de democratização foi uma longa transição, iniciada nessa época, com a “anistia geral, ampla e recíproca” aprovada pelo Congresso em 1979, depois de muita negociação entre os militares e a oposição. A redemocratização do país foi concluída em 1985, quando os militares deixaram o poder, com a eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral e a convocação de uma Constituinte pelo presidente José Sarney, o vice que assumiu devido à morte do presidente eleito.

A chave desse processo foi, de um lado, a volta dos exilados e a libertação dos presos políticos; de outro, a impunidade dos torturadores e assassinos que, nos porões do regime militar, fizeram o serviço sujo para os generais que ocuparam o poder. Esse é nó górdio da democracia brasileira, assunto pacificado entre as Forças Armadas, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) pela Constituição de 1988. Todas as tentativas de rever a Lei da Anistia fracassaram, inclusive nos governos Lula e Dilma; agora, com sinal trocado, para o bem da democracia, não deve ser diferente.


No lamentável episódio dos comentários do presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre o sequestro e o assassinato do líder estudantil Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o mais grave não é o desrespeito para com a família do desaparecido e a insensibilidade do presidente Bolsonaro diante de um tema tão delicado (a perda de um parente próximo), é a defesa que fez do terrorismo de Estado praticado durante o regime militar, na contramão de tudo o que já foi feito para cicatrizar essa ferida purulenta. Revelou um viés autoritário que confronta a Constituição de 1988, suas instituições e compromisso claro com os direitos humanos. A rigor, confrontou o decoro e a responsabilidade do próprio cargo que exerce por vontade popular: a Presidência da República.

Não cabe ao presidente Bolsonaro, no âmbito das suas atribuições, fazer a exegese da Lei da Anistia, muito menos da Constituição que jurou cumprir e defender ao tomar posse, assunto sobre o qual quem se pronuncia é o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Sua insistência em revisitar, no sarcófago da ditadura, os fantasmas de um passado que não deve ser resgatado como modelo político, embora jamais deva ser esquecido, revela uma personalidade que se coloca acima do Estado democrático de direito, confundindo as próprias idiossincrasias com as prerrogativas do cargo.

Grosso modo, o atual governo tem características bonapartistas, por se colocar acima das classes sociais e se sustentar no “partido das armas”. Mas foi eleito num processo democrático, legitimamente, e a oposição precisa aprender a conviver com isso, sem abrir mão do direito ao dissenso e de lutar pelo poder. Entretanto, o presidente Bolsonaro também precisa aprender a respeitar as regras do jogo democrático e valorizar mais os consensos construídos ao longo de décadas para garantir a coesão da sociedade.

Quando um governo começa a promover rupturas com a sociedade civil e impor diretrizes verticais às políticas públicas, como vem ocorrendo em diversas áreas, gera tensões sociais e políticas desnecessárias, que podem dificultar e até agravar a solução dos verdadeiros problemas do país.
Luiz Carlos Azedo

A falta que nos faz uma boa direita

Vou falar francamente, de novo: uma Thatcher, hoje, seria perfeita para o Brasil. Mas uma Thatcher em grande estilo: líder de partido, ganhando eleições com uma agenda liberal. Seria bom até para modernizar a cultura estatizante amplamente dominante no Brasil.

Um pouco de história: a longa administração conservadora de Margaret Thatcher fez o trabalho, digamos, sujo de demitir funcionários excedentes, cortar gastos públicos, controlar o poder dos sindicatos de empresas estatais (e depois privatizá-las), além de desregulamentar a economia, reformar a legislação trabalhista e reduzir a pesada burocracia do Estado.

Depois de um início custoso, com greves e desemprego em alta, funcionou. Com investimentos privados, o país voltou a crescer e gerar emprego e renda. Não por acaso, Thatcher ganhou três eleições seguidas.

Quando veio o desgaste até normal da administração conservadora, o serviço principal estava feito. Aí veio Tony Blair com a suave conversa do “Novo Trabalhismo”: retomada dos investimentos públicos em educação, saúde e segurança, mas em uma economia livre, aberta e competitiva.


Já entre nós, quando o eleitorado comprou a ideia de que era preciso desmontar o Estado excessivo e abrir a economia, porque só produzíamos carroças protegidas, acabou elegendo Fernando Collor, cuja agenda correta para o momento não resistiu ao caixa de PC. E terminou que a agenda liberal caiu no colo de Fernando Henrique.

FH não liderou um movimento dentro de seu partido e junto aos aliados para construir uma agenda comum de reformas. Para dizer francamente, pelo menos no começo, foi tudo no vai da valsa. As trapalhadas seguidas de Itamar Franco acabaram jogando o Ministério da Fazenda no colo de FH. Aí valeram a sabedoria e aguda percepção política do professor, que definiu logo o inimigo imediato — a superinflação — e escalou a equipe certa para atacá-lo.

Então, foi na sequência: para consolidar o combate à inflação, era preciso controlar o déficit das contas públicas, para o que eram necessárias as reformas, incluídas as privatizações.

Vindo da esquerda, eleito com base nas novíssimas notas de real, FH precisou construir essa agenda momento a momento. Excetuada a equipe econômica, quase ninguém entre seus colaboradores e seguidores estava preparado para a missão. Tratava-se de uma elite intelectual criada nas ideias socialistas e social-democratas, que viu ruir o Muro de Berlim e alcançou o poder em um mundo em que só existia capitalismo — e numa fase de liberalismo à americana ou “thatcherista”.

Além dessa turma, havia os velhos políticos, todos acostumados a viver em torno do Estado. A gente até se espanta de ver quanto o governo FH avançou na agenda modernizadora.

Mas, é claro, não terminou o serviço. E parte desse serviço, eis outra peça do destino, ficou para o governo Lula. É a origem de nossos problemas atuais; o eleitorado se cansou de uma agenda liberal antes que ela tivesse sido completada. E elegeu um governo propondo mudar tudo para a esquerda, mas topando com os entraves causados justamente pela não conclusão da agenda liberal.

Daí o Lula do primeiro mandato, uma mistura de esquerdismo estatizante e reformas. Até que se sentiu seguro, jogou fora qualquer coisa perto de liberal, trouxe os velhos políticos e exacerbou na corrupção. E deu no governo Dilma, que acabou de desmoralizar a esquerda e a política.

Era a hora da direita, entendeu o eleitorado. Mas o voto foi mais anti-PT do que pró-agenda liberal. E deu Bolsonaro, extrema direita autoritária e atrasada.

É verdade que carregou Paulo Guedes, este, sim, um verdadeiro liberal e que, surpresa, consegue tocar o seu programa. Mas ele não é o presidente, é demissível. E a política econômica fica constantemente em risco pelos modos e falas do presidente Bolsonaro.

Tudo considerado, eis o que sempre nos faltou: uma boa direita, moderna, capaz de ganhar uma eleição com uma agenda liberal e implementá-la rigorosamente. E depois — por que não? — abrir espaço para uma esquerda contemporânea. Os dois lados colocando para fora os velhos políticos corruptos.
Carlos Alberto Sardenberg

Presidente não é proprietário

Nenhum presidente, em nenhum país democrático do mundo, pode se arvorar em proprietário daquilo que o Estado produz ou ajuda a produzir, determinando o que deve e o que não deve ser produzido 

Família como negócio

Deve ser confortável além de divertido dizer o que passa pela cabeça sem assumir nenhum compromisso com o que disser. Sem precisar explicar por que antes havia dito o contrário. E, se ainda não tiver dito, sem preocupação alguma com o que dirá no futuro que possa soar como incoerência.

Penso que só as crianças em sua inocência podem desfrutar de semelhante condição. Ou os adultos que não amadureceram. Ou os que vieram ao mundo só para confundir (alô, alô, seu Chacrinha!). Ou ainda gente do tipo Jair Bolsonaro que se vê de repente incumbida de uma missão para a qual jamais se preparou.


Incumbido de uma missão que nunca teve no seu radar. No radar do capitão, depois de 30 anos como deputado do baixo clero, estava o plano de disputar a presidência da República para apenas garantir a eleição ou reeleição dos seus três garotos, sem se esquecer do quarto, por ora em fase de treinamento intensivo.

“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” foi um bom slogan de campanha, longe, porém, de refletir o que de fato importa a Bolsonaro, o que sempre importou. Acima de tudo para ele está o empreendimento comercial da sua família, uma mistura de política com negócios. Vá lá que Deus possa ficar acima de todos.

Quando chegará o dia de se conhecer a lista por enquanto incompleta de parentes do capitão, e dos parentes dos parentes dele que Bolsonaro e seus filhos empregaram sem nenhum pudor em gabinetes da Câmara dos Deputados, da Assembleia Legislativa do Rio e da Câmara Municipal do Rio? O povo tem direito a saber.

Causará espanto quando se tornar conhecida. Ela deixará em estado de choque as almas mais sensíveis. Fará certos corpos de políticos do passado se revirarem nos túmulos. Porque eles também empregaram parentes à falta de regras sobre nepotismo. Mas nenhum deles como Bolsonaro apesar das regras.

Na maioria das ocasiões, Bolsonaro se comporta como o sub do Trump. Ou se for um exagero, como o sub, do sub, do sub de Trump. É por isso que o presidente americano tanto gosta dele como confessa. Na verdade, Tump gosta de Trump. É também por isso que Trump disse o que disse ontem.

Interpelado por uma jornalista brasileira depois de ter concedido uma entrevista coletiva à imprensa, Trump derramou-se em elogios a Eduardo, o Zero Três de Bolsonaro, e aprovou sua indicação para embaixador do Brasil em Washington. A história da diplomacia brasileira não registra nada de parecido com isso.

O presidente americano foi além. Para ele, a indicação do garoto não configura nepotismo. Como nepotismo não é o fato de a Casa Branca abrigar como assessores de Trump sua filha Ivana, empenhada em aumentar a própria fortuna, e o genro, um homem de negócios. Money, money, money, é o que move o mundo.

Tal desfaçatez ainda não é permitida por estas bandas à luz do dia. Bolsonaro quis fazer do filho Carlos, o Zero Dois, seu ministro da Comunicação. Esbarrou na oposição de auxiliares. Mas a nomeação de Eduardo abrirá uma brecha por onde mais adiante poderá passar um monte de coisas. É só esperar para ver.