sábado, 31 de março de 2018

Capitalism reality

O Waterloo da Lava Jato

As ruas têm sido decisivas nas páginas de nossa história recente. Sem elas, não haveria o impeachment de Dilma Rousseff, Eduardo Cunha e Sérgio Cabral não estariam na cadeia, Lula e José Dirceu não teriam sido condenados. E Marcelo Odebrecht e Wesley Batista estariam por aí livres, leves e soltos, operando como sempre.

A Lava Jato só chegou onde chegou porque a ação firme da Polícia Federal, do Ministério Público, e de juízes da primeira e segunda instâncias tiveram o respaldo de manifestações multitudinárias.

A combinação desses dois fatores – ação republicana de algumas instituições permanentes de Estado e pressão da sociedade – emparedou, por um momento, boa parte das elites política e econômica, secularmente acostumadas à impunidade.

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Parecia que, finalmente, marchávamos para um novo Brasil, no qual o capitalismo se desenvolveria pela livre concorrência e a lei seria igual para todos. Valeria para o pobre, mas também para um ex-presidente da República.

A primavera brasileira durou pouco.

Encasteladas no aparato do Estado, as forças patrimonialistas articularam sua contraofensiva. O Congresso Nacional aprovou normas eleitorais que impedem a renovação política e o presidente da República abandonou as necessárias reformas para cuidar de uma agenda de pegada populista.

Já a instância máxima do judiciário passou a se pautar pelo casuísmo. O ápice da blitzkrieg da impunidade foi a última sessão do STF, na qual decidiu não decidir sobre o habeas corpus de Lula, mas decidiu que ele não pode ser preso enquanto a Corte não decidir. Por aí, passará uma boiada e todo o trabalho da Lava Jato poderá ir por água abaixo.

O STF pesou a mão, cometeu um erro de cálculo ao apostar na catatonia da sociedade.

As ruas estão dispostas a mostrar que não estão mortas. Os movimentos cívicos responsáveis pelas jornadas do impeachment agendaram manifestações em todo o país, para a véspera do julgamento do habeas corpus de Lula.

A batalha do dia três de abril é um pouco o dia D da luta contra a impunidade, o Waterloo da Lava Jato. Se as manifestações forem um fiasco, as forças interessadas na manutenção de seus privilégios se sentirão encorajadas a promover novos retrocessos. O passo seguinte pode ser uma “interpretação criativa” da Lei da Ficha Limpa para tornar Lula elegível.

No quatro de abril estará em jogo muito mais do que a punição de Lula pelos crimes que cometeu. Estarão também o futuro da Lava Jato e a esperança dos brasileiros.

Se a caravana da impunidade passar, o desencanto se espraiará pelo país e contaminará as eleições.

Hubert Alquéres

O STF e o tribunal da opinião pública

A situação política atual, após o julgamento em 22 de março no STF, revelou o desdobramento lógico da disposição de mudar a decisão do plenário sobre a prisão após decisão condenatória de segunda instância. Não que o STF estivesse proibido de mudar seu entendimento. Mas supõe-se que o Tribunal Supremo, quando decide uma matéria que terá repercussão geral, seja superiormente prudente para julgar antes se ela está madura para adquirir o poder que por sua aprovação passará a ter.

Imagina-se que, não estando suficientemente madura a matéria no entendimento dos juízes, o tribunal terá a sabedoria de evitar decidir ou, então, limitar-se a aprovar decisões aplicáveis exclusivamente aos casos concretos, diante de circunstâncias muito específicas. Assegura-se com esses cuidados que a inevitável turbação da ordem jurídica se encontra plenamente justificada; que suas consequências são necessárias, terapêuticas, virtuosas e que sua aplicabilidade exige repercussão geral.

O que não é aconselhável, do ponto de vista da prudência e legitimidade dos juízes e da instituição, é substituir o novo entendimento, recém-adotado, por outro que lhe é oposto, dentro de espaço de tempo reduzido. Nessas situações se estimulam cogitações que deveriam ser incogitáveis; questionam-se intenções; trazem-se para o plenário do Supremo suspeitas que não deviam transpor seus umbrais.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Como não imaginar que a decisão de revogação do entendimento vigente há menos de dois anos atenderia ao interesse político do ex-presidente Lula, quando se tratava de um habeas corpus preventivo por ele impetrado após condenação em primeira e segunda instâncias e eram de conhecimento público as declarações dele acusando os membros do tribunal de acovardados? Quando se referiu a uma ministra de maneira totalmente reprovável e desrespeitosa, como se fora uma devedora de quem se cobrava o voto pela indicação, como já o fizera com a referência igualmente reprovável ao ex-ministro Joaquim Barbosa, durante o mensalão?

Fragilizou-se assim a segurança jurídica, bem maior que a sociedade entrega ao Poder Judiciário para tutelar e que a previsibilidade dos comportamentos pretende agregar ao ordenamento jurídico. Como sói acontecer em decisões sob pressão, há erros que, uma vez cometidos, tendem a exigir outros para corrigi-los ou justificá-los, numa sequência entrópica de desfecho autodestrutivo para a instituição e seus titulares.

Para obviar a suspeita de que essa onerosa disposição ganhara corpo foi necessário recorrer a uma longa discussão sobre a preliminar de conhecimento. Quando o relator propôs uma decisão prévia sobre o conhecimento ou não do pedido de habeas corpus, a sessão arrastou-se numa atmosfera de absoluta serenidade, densa erudição e mútuos elogios, marchando ao passo de um bicho-preguiça cansado para um final sem julgamento do mérito.

Em má hora o ministro relator suscitara essa questão, supondo uma deliberação breve, como indicou seu voto sucinto e seu antecipado reconhecimento de que seria voto vencido. O que se seguiu foram longos votos que iam esgotando o tempo útil sem que nem ministros nem a presidente alertassem os colegas para – quando possível – reduzirem suas exposições e declarassem seus votos com economia de tempo. A comprovar que o tempo útil não era uma preocupação dos ministros, o próprio intervalo da sessão arrastou-se muito além do que a presidente anunciara.

Para corrigir, ou ao menos amenizar suspeitas quanto ao tempo dedicado a uma preliminar quase consensual, já mais bastava explicar-se, era agora necessário buscar a ajuda de expedientes administrativos para justificar um provável adiamento da decisão de mérito de um habeas corpus que “passara a perna” em vários outros que já poderiam ser julgados no plenário.

Comunicada a decisão majoritária de conhecimento do pedido e a convocação da próxima sessão para dia 4, o advogado de defesa solicitou um salvo-conduto para o paciente, já que o paciente não era responsável pela postergação por 13 dias do julgamento.

A solicitação foi imediatamente concedida, sem considerar o efeito cascata que tal exigência trará. Os habeas corpus a partir desta decisão ou serão negados de pronto pela autoridade judicial ou concedidos também de imediato, se por qualquer razão aquela exigência de instantaneidade não puder ser atendida. Cuidou-se assim do periculum in mora, mas foi-se leniente com o fumus boni juris.

Toda essa constrangedora trajetória ainda não se tinha esgotado, pois a presidente quis ouvir os ministros sobre a continuidade da sessão. Alguns ministros, sem hesitar, argumentaram que não seria possível, por esgotamento físico, continuar a sessão; outros tinham compromissos assumidos que, objetivamente, se revelaram mais importantes do que decidir a matéria pautada – um deles até tirou do bolso e expôs comprovante de voo que devia fazer, como se a palavra de um ministro do STF precisasse ser corroborada por um documento.

Esse o patético resultado de uma sessão do STF estigmatizada por um erro inicial e pelo séquito dos erros subsequentes. Não se tratou, contudo, de um erro jurídico. Foi um erro de descuido com a regra da prudência, aquela virtude que é chamada por Tomás de Aquino “a mãe de todas as virtudes”.

Foi a ausência da necessária prudência que empurrou o tribunal para a sucessão de erros. O resultado dessa histórica sessão se viu imediatamente nas as inúmeras manifestações de decepção, frustração e revolta que desencadeou na sociedade brasileira. Tais sentimentos abalam a confiança dos cidadãos no órgão supremo do Judiciário e na sua capacidade de garantir a previsibilidade na interpretação do ordenamento jurídico.

Dia 4 de abril o STF vai se pronunciar. Suas decisões terão força de lei. Resta saber como se comportará o sujeito oculto da oração, o novo personagem que Montesquieu não previu: a opinião pública.

Mais um rei nu

Vamos pensar um pouco, com calma, para ver se dá para entender melhor o que está acontecendo na frente de todo mundo.

O ex-presidente Lula foi condenado a pouco mais de doze anos de cadeia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro — crimes mais graves do que fazer um apontamento de jogo do bicho, por exemplo, e que por isso têm de ser punidos com pena de prisão fechada, segundo o que está escrito na lei.

Lula foi condenado a nove anos e meio, num primeiro julgamento, pelo juiz Sergio Moro, da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, em 12 de julho do ano passado — após quase dez meses de depoimentos, perícias, exame de provas e contraprovas, exigências sucessivas dos advogados e mais todos os etcs. de uma ação penal iniciada contra ele em setembro de 2016.

Foi uma sentença de 218 páginas, fundamentada em cerca de 1 000 itens, na qual foram ouvidas 99 testemunhas, das quais 73 apresentadas pela defesa.

Até aqui, tudo dentro da lei e das garantias devidas ao réu, certo?

Certo.

Lula apelou da sentença, então, para o estágio superior seguinte, o TRF4, de Porto Alegre.

Ali foi julga­do em 24 de janeiro deste ano por três desembargadores, condenado de novo, por 3 a 0, e sua pena foi aumentada para doze anos no xadrez.

Recorreu em seguida para o degrau acima, o STJ de Brasília, onde sua reclamação foi julgada por cinco ministros; perdeu outra vez, agora por 5 a 0.

Voltou, enfim, ao mesmo TRF4 que já tinha lhe socado doze anos no lombo, e perdeu mais uma — foram outros 3 a 0.

Resumo da peça: o ex-­presidente está se defendendo desde setembro de 2016 e não teve, até agora, um único voto a seu favor.

Foi zero, zero e zero, mais a sentença inicial de Moro.

O que seria preciso, ainda, para chegar à conclusão de que Lula é um criminoso condenado pela Justiça e teria de ir para a cadeia?

Mais nada.

Mais nada para a cabeça de uma pessoa normal.


Eis aí por que a situação que se vive no momento é perfeitamente incompreensível, mesmo pensando com toda a calma.

É um jogo que está pelo menos em 9 a 0, já passou dos acréscimos e só não acaba porque Lula não quer que acabe.

O Supremo Tribunal Federal e os políticos, em peso, ficam agachados diante do homem, tratando de servi-lo — ou com medo de suas ameaças.

Qual é o problema dessa gente?

O direito de defesa para o réu foi assegurado plenamente desde o primeiro minuto do processo; pouquíssimos brasileiros, salvo amigos seus como um desses Odebrecht ou Joesley, que têm bilhões para gastar com advogados, jatinhos, peritos, computadores, pesquisas, caravanas de “apoio” e por aí afora, conseguiriam ter uma defesa tão completa e tão cara quanto a que Lula teve até agora.

Dizer que é preciso respeitar a “presunção de inocência” até “prova em contrário”, como repetem seus despachantes no STF, é simplesmente uma piada — ou, mais exatamente, uma tentativa alucinada de fazer você de palhaço.

É óbvio que todo acusado é inocente até prova em contrário — mas só até prova em contrário. Uma vez feita a prova, o réu deixa de ser inocente; passa a ser culpado.

Na Justiça de qualquer país civilizado, a sentença, a certa altura, é a prova.

Afinal, alguma autoridade, a uma hora qualquer, tem de dizer se as provas apresentadas até então valem ou não valem; do contrário, nenhum processo acabaria nunca, em lugar nenhum do planeta.

No caso de Lula, a prova foi feita quando o que se chama “segunda instância”, ou o TRF4, de Porto Alegre, decidiu que a sua condenação estava fundamentada por fatos. Fim de jogo. Ele ainda pode continuar apelando, mas teria de fazer isso na prisão.

É assim nos Estados Unidos, na Europa, no Japão: uma vez condenado em segunda instância, o sujeito vai para a cadeia. Faz todo o sentido.

No Brasil, menos de 1% de todas as sentenças confirmadas em segunda instância é modificado, depois, em algum tribunal superior.

Esse tumulto em torno de Lula só existe porque a suprema corte de Justiça do Brasil decidiu governar o país como uma junta de ditadura; manobra para ele ser declarado, na prática, impune por qualquer crime passado, presente ou futuro.

Querem fazer em favor de Lula o mesmo que o regime militar fez em favor do delegado Sérgio Fleury, do Dops de São Paulo, em 1973: condenado como torturador, ganhou o direito de apelar em liberdade pela “Lei Fleury”.

Os donos do STF conseguem, a cada dia, ficar mais parecidos com a “corte suprema” da Venezuela, que torna legal tudo o que os gângsteres do governo mandam que seja legalizado. São, em seu conjunto, mais um rei nu neste país.

Gente fora do mapa

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Relações de patronagem-clientelismo no Brasil

Em 1966, Eric Wolf publicou um estudo sobre parentesco, amizade e relações patrono-cliente nas sociedades complexas. Ele inspira análises, em várias vertentes, sobre a organização sociopolítica deste país, porque está enraizada aqui uma postura de misturar o público com o privado e o pessoal com o profissional, comprometendo, severamente, a economia, a cidadania e as aspirações de cada brasileiro. Ficam expostas também as sórdidas entranhas do tecido social, com os ardis para a dominação permanente de algumas autoridades sobre multidões, mantendo privilégios que são transferidos para seus filhos ou fiéis seguidores.

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Esse grupo assume o controle do Estado a partir de enriquecimento ou por aproximação de veneráveis lideranças que lhe cedem espaço quando não têm herdeiros à altura, cobrando os mesmos princípios ideológicos e as mesmas táticas de dominação para controlar familiares, empregados e eleitores. Mostram sua crueldade ao submeter o parente pobre, o vizinho simplório e o barnabé, desestimulando cada um para empenhar-se nos estudos e no trabalho, ao oferecer vantagens na administração pública, desde que usem os cargos em benefício de seu protetor e partido. Daí, a necessidade de que haja milhares de vagas por recrutamento amplo, desmerecendo os servidores concursados, que não terão chance de ascensão funcional se mantiverem independência em relação aos políticos controladores da repartição. Promove-se, assim, acomodação generalizada dos jovens para lutar por postos de trabalho pelos próprios méritos, porque contam com seus pais para assediar lideranças regionais, que manipulam o preenchimento dos cargos, sem considerar, necessariamente, o perfil profissional dos candidatos à função. Aliás, preferem os curingas ou figuras sem muita firmeza em suas habilidades, porque são mais facilmente controlados.

Muitos brasileiros tornam-se, daí, peças no xadrez do loteamento das inúmeras vagas da máquina pública para atender, futuramente, as determinações de seus patronos. Cria-se, então, uma via de mão dupla: o favorecido precisa cumprir ordens de quem lhe concedeu o emprego, enquanto os donos do poder impõem suas condições, mesmo quando são ilegais, cobrando-lhes lealdade eterna.

Não há interesse em mudar essa estrutura, que viceja em todas as organizações deste país, desde os ministérios até os cargos auxiliares em presídios e escolas públicas. As corporações privadas não ficam imunes a esses conchavos, pois o processo de preenchimento de vagas está imbricado na rede de relações sociais de chefias intermediárias.

A lamentável sessão do Supremo Tribunal Federal do dia 22 mostrou isso muito bem, porque todos os ministros foram nomeados pela Presidência da República, poucos tiveram experiência na magistratura, gozam de estabilidade funcional até a aposentadoria sem passar por escrutínio popular, agem como autoridades individualizadas e não prestam contas à sociedade, instância maior do Estado democrático.

O bem que faz duvidar

6776.3Impedir a disseminação do conhecimento é um instrumento de controle do poder, porque o conhecimento é saber ler, interpretar, verificar na pessoa e não confiar no que você diz. Conhecimento faz você duvidar. Especialmente do poder. De todo o poder
Dario Fo

Grito de gavião

Pontual, meu vizinho gavião anuncia: são sete da manhã, acordem, é feriado de sol em Guaratuba. Não me aborreço com ele, pelo contrário, o gavião me reanima. Tem a voz que os cristais teriam, caso gritassem na hora dos brindes. Levanto, ponho a água no fogo e vou tomar uma ducha. No banho, ouço os primeiros carros de som do dia, o prédio cercado por candidatos. Vão e voltam da praia à pracinha, como fantasmas num labirinto eleitoral, gemebundos. É a época dos pleitos, paciência, temos duas opções: caminhar por um mundo assombrado por paspalhos, ou não caminhar, entregando a eles o petróleo de nossas ruas.

Nunca foi tão importante estar bem informado.
Dare to think different, to dream big !!!!
Contrariado, caminho. A cidade ainda está na cama, mas, a cada esquina, já me atropela a estridência de um automóvel. Chego à praia com uma dúzia de melodias na cabeça, instruções de voto em ritmo de baile. Tento, em vão, resgatar a nota única do gavião, tão limpa e eficaz, e até decido visitar as corujas-buraqueiras, vai que me saúdam com a pureza de um pio?

Só encontro uma delas, muda, em seu poleiro na restinga. Ao redor da ave, dez garrafas vazias. Duas de vodca, sete de cerveja, um litro de energético. Uma fogueira recém-apagada, baganas com batom. E um tubo enrolado, espremidíssimo, de lubrificante íntimo. A coruja me encara como se sorrisse, entre a dó e o carinho, já acostumada ao amor bagunceiro dos humanos. Fantasio que queira me dizer algo, comentar que até amando fazemos arruaça, mas um carro de som surge e a afugenta. Lá vai ela, buraco abaixo, rumo à sabedoria.

Ando da Praia Central à Praia do Cristo. No trajeto, vejo o caminhão que traz cocos aos quiosques da orla. Ele ronca alto, chia, estaciona e morre por alguns minutos. Da carroceria, uma moça atira cocos a um colega no asfalto. O cara enche dois engradados e os arrasta até os quiosques. É um serviço tão silencioso e bonito que até sento para assisti-los.

A moça dos cocos está linda, produzida para um show. Usa minissaia azul, blusa de alça com estampa de onça, sandálias de gladiadora, as tiras de couro escalando suas pernas fortes. O cabelo preto, preso com perfeição, valoriza os brincos de penas verdes. A maquiagem é noturna, mas e daí? O movimento de seu corpo, ao erguer-se e abaixar-se para apanhar e lançar os cocos, lembra uma coreografia atlética, a dança de uma diva sobre o trio elétrico. Uma bailarina que prescinde de música, público e aplauso.

Na Praia do Cristo, uma surpresa: o mar avança, estentóreo, contra a cidade. Parte do chão está afundando, melhor evitá-la. Cuidadoso, me aproximo da borda do calçadão golpeado pelas ondas. Dois de nossos humildes coqueiros, que mal dão cocos, e onde jamais vi amarrarem rede alguma, já foram derrubados pelas águas. E agora estão ali, talvez como nós, só à espera da vazante, preparando-se para uma viagem imprevisível.

Outro carro de som aparece, mas não decifro o que diz sua música. Dela, só me chega a marcação primitiva do bumbo. O resto dos instrumentos, o nome e o número do candidato, seus feitos e desejos, tudo isso o mar, bravo, abafa. E é tão bom ouvir aquele tambor de ressonâncias tribais à beira esfarelada deste balneário. Até me devolve alguma esperança. Amanhã, o gavião gritará de novo.

Lição de Uganda

Dia desses, lendo um jornal lá de Uganda, deparei-me com uma frase absolutamente surpreendente e instigante: "a educação está causando pobreza e desemprego". Seu autor, por paradoxal que possa parecer, integra o mundo acadêmico: o Professor Jacques Zeelen, da Universidade de Gulu.

Disse ele, explicando sua ideia: "há um desencontro entre o sistema educacional e o mercado de trabalho", do qual resulta uma geração preparada para empregos que não existem, e despreparada para os que existem. Secundou-o o Professor John Asibo, Diretor do Conselho Nacional de Educação Superior: "você não precisa estudar em uma universidade para ser uma pessoa de sucesso".

Decidi saber mais sobre o assunto. Li, em um jornal do Vietnam, que "o número de graduados desempregados já é de 20% da força de trabalho". Em Cingapura, somente seis a cada dez graduados conseguem emprego após seis meses de formados. Na Rússia, 30% dos graduados não conseguem uma ocupação definida. No Reino Unido, 50% dos formandos não conseguem trabalho compatível com os cursos que fizeram. Na Índia, 75% dos que cursaram engenharia estão desempregados. França: "14% dos sem-abrigo frequentaram curso superior". Malaysia: "40.000 graduados desempregados".

E a famosa Coreia do Sul, cujo sistema educacional é tão elogiado? Com a palavra seu próprio governo: "um a cada três desempregados são graduados". Na China, "quase 50% dos formandos no desemprego".

Concluí, assim, o acerto da parte inicial da frase do professor de Uganda: temos preparado nossos jovens para empregos que não existem. Sim, mas e os empregos que existem?

Comecemos pela Alemanha, que "sofre com falta de trabalhadores qualificados" - um déficit estimado em 3 milhões de braços para 2030. Na Argentina, "as empresas não conseguem os técnicos que necessitam". Na Polônia, seis a cada dez empresas tem dificuldades em contratar funcionários. Em Israel, empresas "buscam inutilmente por trabalhadores qualificados". Em El Salvador, "os jovens não estudam o que deles o mundo necessita". Encerro estas linhas com o título de uma matéria publicada em um jornal argentino: "Desajuste entre educação e trabalho: a cada 100 advogados correspondem 31 engenheiros".

Não sei a quantas anda a situação no Brasil. Será que temos estado atentos à lição que vem de Uganda?

Pedro Valls Feu Rosa

Imagem do Dia

Dartmouth (Inglaterra)

Por que os primeiros cristão não gostavam da imagem de Jesus crucificado

A imagem de Jesus crucificado só começou a ser venerada séculos depois da morte dele, e foi o Concílio de Niceia, no ano 325, que autorizou oficialmente a imagem do crucifixo tal como o usamos hoje. Os seguidores dos primeiros séculos do cristianismo se envergonhavam de uma imagem que lhes recordava a morte atroz que os romanos infligiam aos grandes criminosos.

Desde que Paulo de Tarso declarou que “se Cristo não ressuscitou [...]é vã a nossa fé” (I Coríntios, 15), interessava aos cristãos o Jesus ressuscitado, não o sacrificado em uma madeira, como um assassino qualquer. Daí que nos primeiros séculos do cristianismo não existissem pinturas nem esculturas de Jesus crucificado, só um Cristo glorioso.

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A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado

Nas catacumbas romanas, tanto nas de Santa Priscila como nas de São Calixto, onde se escondiam os cristãos para fugir da perseguição romana, não existem pinturas de Jesus na cruz. O líder dos cristãos aparece ou na imagem do Bom Pastor, ou celebrando a Última Ceia com os apóstolos, ou ainda criança nos braços da sua mãe. Nunca morto.

Lembro que no Instituto Bíblico de Roma nosso professor de idioma ugarítico, o jesuíta Follet, explicava-nos essa ausência da imagem de Jesus crucificado entre os primeiros cristãos: “Se o seu pai tivesse sido condenado à cadeira elétrica ou à guilhotina, certamente, por mais inocente que tivesse sido, vocês não levariam no pescoço uma efígie desses instrumentos de morte”, nos dizia ele. E acrescentava: “Ninguém conserva fotos dos seus familiares ou amigos quando mortos, e sim vivos e felizes”. Isso é o que ocorria com os cristãos: preferiam recordar Jesus em vida ou glorificado depois da sua morte.

Curiosamente, foi um imperador romano, o pagão Constantino, o Grande, quem introduziu a representação da cruz, mas sem o corpo de Jesus. Foi quando se converteu ao cristianismo, depois de ter tido um sonho, antes da batalha contra Magêncio, em que viu uma cruz e ouviu uma voz que dizia: “Com este signo vencerá”. O Império Romano começava a se debilitar, e o imperador percebeu a força da seita dos cristãos que se deixavam matar em vez de adorar seus deuses pagãos. Constantino quis conquistar aquela gente, e o cristianismo passou de açoitado a ser religião oficial. O imperador ganhou a batalha, e sacralizou-se o sinal da cruz, que foi aceito como símbolo cristão pelo Concílio de Niceia no ano 325.

Mesmo assim, trava-se apenas da cruz nua, sem o corpo de Cristo. Os primeiros crucifixos com o Jesus agonizante ou morto aparecem só no século V, e com muitas polêmicas. Os cristãos continuavam preferindo a imagem de Jesus vivo ou ressuscitado. Apenas na Idade Média, mais de mil anos depois da morte de Jesus, apareceram as primeiras representações dos crucifixos com o corpo dele mostrando os sinais de dor, sangrando pelas mãos, os pés e nas laterais.

A única pintura do crucifixo que aparece já no século I, considerada como a “primeira blasfêmia cristã”, é um grafite numa parede de gesso em Roma, ridicularizando os cristãos e Jesus. O crucificado aparece com a cabeça de um asno e a seguinte inscrição: “Alexamenos, adorando o seu deus”. Era uma zombaria com os primeiros cristãos, cujo deus os romanos haviam matado como um criminoso comum.

Isso significava, ensinavam-nos no Instituto Bíblico, que, sob a influência da conversão de Constantino, a Igreja começou também a se hierarquizar e a se revestir com os símbolos do poder mundano. Na verdade, se fez política e até mesmo drama com a crucificação para fomentar-se a teologia da cruz e do pecado, em detrimento da teologia da ressurreição e da esperança.

Para a Teologia da Libertação, por exemplo, a crucificação é o símbolo de todos os torturados e assassinados injustamente na história da humanidade, e a ressurreição é a grande esperança de todos os excluídos. Essa teologia, tão enraizada na América Latina, tentou ser uma volta ao cristianismo primitivo, no qual se destacava a imagem do Bom Pastor em vez da do crucificado. Entretanto, a Igreja, que até o papa Francisco ainda se revestia com os símbolos do poder dos imperadores romanos, preferiu inculcar a teologia do medo do inferno.

A Igreja do poder nunca se incomodou com o Jesus morto. Temeu mais ao Jesus vivo e encarnado, solidário com essa parte da humanidade que, como nos tempos do profeta crucificado, sempre acaba abandonada à própria sorte.

Está um Brasil muito esquisito, não está?

Muita violência, muito ódio, muitas news, fakes ou reais, desrespeito nas ruas, desrespeito na Internet, o Brasil dividido em dois, raiva de um lado e do outro, tudo muito confuso e muito assustador.

As ameaças sofridas pelo ministro Edson Fachin são de estarrecer. Não creio que algum dia se saberá quem as proferiu, mas tenho fé que a PF o protegerá e à sua família, para o bem dos Fachin e para o nosso Bem.
Angel Boligan - El Universal, Mexico City, www.caglecartoons.com - El asesor / COLOR - Spanish - justicia, pinocho, corrupción, mentira, fraude, ciega,
Li que muitos dos ministros do STF criticaram a revelação das ameaças feitas pelo ministro Fachin ao jornalista Roberto D’Ávila. Que isso os expôs muito. Ora, pílulas, o segredo só é a alma do negócio na propaganda. Na vida real, o segredo só alimenta a bandidagem.

Infelizmente, tivemos muitas notícias terríveis além dessa. O Rio alimenta muito da nossa tristeza, com a intervenção que parece estar mais no papel que na realidade. Tiroteios nas favelas passaram a ser arroz de festa. Quantas mortes, quantas vítimas do hediondo tráfico, quantas crianças sem futuro…

Os Três Poderes estão um contra o outro. Isso, procuro vasculhar minha memória, não me lembro de ter ocorrido antes. A impressão que o cidadão tem é que eles não pertencem ao mesmo país. É o Executivo de um país contra o Legislativo de outro e contra o Judiciário de ainda outro. Quando não é o caso: são os nossos Poderes que estão se digladiando. O que sobrará do Governo Federal? Ninguém sabe.

Acompanhar as notícias dói muito, em nossos dias. Mas é dor da qual não podemos fugir. Precisamos estar muito bem informados porque neste ano vamos ter eleições e não me parece que o Brasil terá outra chance de permanecer democrático se falhar na escolha nas próximas eleições. Agora, ou vai ou racha…

É vital que nos manifestemos. Isso não pode continuar assim.

Mas não adianta ter a ilusão de que vai ser fácil. Não vai.

Tenho amigos que ainda estão na ilusão de que a Instrução e a Educação são as armas que faltam para tirar o Brasil do sufoco. Quem não acompanha os comentários nas Redes Sociais pode até cultivar essa ilusão. Eu a perdi há meses. Vejo pessoas cultas e bem informadas usando um palavreado estúpido, grosseiro. Não sabem argumentar. Só sabem agredir e xingar.

Não estou exagerando. Querem um exemplo? O ministro Gilmar Mendes ao ser perguntado por um repórter da Folha de São Paulo se o STF pagou a passagem para sua atual vilegiatura em Lisboa, respondeu: “Devolva essa pergunta a seu editor, manda ele enfiar isso na bunda. Isso é molecagem, esse tipo de pergunta é desrespeito, é desrespeito”.

Pois é. De um ministro do Supremo não se pode dizer que a ele faltam Instrução ou Educação. Talvez falte equilíbrio…

Boa Páscoa, amigos. Para todos nós, para o Brasil.

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa

O que é verdade? Depende

Hoje, a realidade, os fatos, os acontecimentos, são só pretextos para dar mais veracidade à sua própria narrativa pessoal

Quando perguntou o que era a verdade, Pôncio Pilatos nunca imaginou que em 2018 a verdade seria o que você quisesse que fosse.

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A realidade, os fatos, os acontecimentos são só pretextos para dar mais veracidade à sua própria narrativa pessoal e ficcional.

Estudos sobre atividade cerebral da Universidade de Amsterdam mostraram que, “quando você rouba ou mente em seu próprio benefício, você se sente mal. Mas quando você continua mentindo, esse sentimento desaparece, então você está mais disposto a mentir novamente.”

Não era um estudo sobre políticos brasileiros, mas os explica, sem os justificar. Minto, logo, existo é a máxima nacional. É a mais completa tradução de Donald Trump. Desafia a velha crença psicanalítica de que mentir, todo mundo mente, mas quando você começa a mentir para si mesmo, não há psicanálise que resolva.

Estamos às vésperas de nos tornarmos o único país do mundo em que réus condenados em duas instâncias só cumprem pena depois de um terceiro julgamento e infinitos recursos. Nem as maiores cleptocracias africanas aceitam isso. A esperança é o próximo Congresso restaurar a norma do STF ainda vigente, que em breve vai ser revogada pelo STFdoB.

Não só corruptos, mas estupradores, pedófilos, ladrões de carro e traficantes, que podem pagar a advogados, comemoram a boa nova, que restaura a impunidade — apesar de tudo que aconteceu no país. Ganharemos mais um título, de campeões mundiais da sem-vergonhice, ao som do clássico dos Titãs “Bichos escrotos”.

Verdade ou mentira? Depende de que lado você leia. O que envergonha alguns, envaidece outros. Há o voto que apequena e o que engrandece.

Pode-se dizer com certeza que qualquer notícia vinda de um partido político é fake news. Ao confundir propaganda com jornalismo, como se fossem uma coisa só, sua credibilidade como fonte de informação é zero. Estão pregando para convertidos, mas é preciso manter elevado o moral das tropas…

Mas acreditar em quem?

Mais atual do que nunca, outro clássico dos Titãs, “Polícia”, encontra eco em 2018: “Verdade para quem precisa/ Verdade para quem precisa de verdade”.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Paisagem brasileira

O mecanismo - nos intestinos do poder

É muito complicado entender este país. Para se explicar o Brasil, temos que recorrer a metáforas, analogias, complicados desenhos esquemáticos e até mesmo a séries da Netflix.

Em mais uma tentativa vã, inútil e infrutífera de entender a nossa realidade (dada a incapacidade intelectual dos meus 17 leitores e meio), desta vez vou comparar o Brasil a um organismo humano. Se é que existe qualquer coisa de humano neste país.

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O problema do Brasil é fisiológico. Para ser mais exato, do aparelho digestivo. O fenômeno da digestão no Brasil ocorre nos três poderes: no Executivo, no Legislativo e, por último, no Judiciário. Seriam como o duodeno, o mesentério e o cólon retal. Os três atuam de forma unívoca, conjunta e harmônica com um único e exclusivo objetivo: fazer mer%ˆ&*%$#da, compor o bolo fecal, construir os coprólitos, que, tal e qual tijolos, vão edificando em camadas a ordem constitucional brasileira.
Em outras circunstâncias, mais heterodoxas, o aparelho gastroinstitucional é utilizado na contramão, ou seja, iniciando-se no reto na direção do intestino grosso, quer dizer, do Executivo, desta vez com o objetivo de fo&**ˆ%%der com o povo brasileiro. Essa prática política sodomita, muito embora condenada pela Igreja Católica, é adotada com entusiasmo por membros dos três poderes que, para tanto, usam a prerrogativa do “furo privilegiado”.

Entretanto, data máxima venérea, desta vez o STF (Supremo Tribunal Furicular) foi longe demais. Os nossos magistrados, togando e andando para a opinião púbica, acabaram provocando uma incontrolável diarreia jurídica: soltaram o Maluf, soltaram o Piccianni e querem soltar o Lula.

Na verdade, os supremos magistrados estão querendo livrar o ex-presidente Luiz Inácio Lalau da Silva da prisão de ventre domiciliar, à qual já foi condenado em segunda instância. Para isso, querem julgar semana que vem um Habeas Porcus, que, modus in rabus, se for aprovado, vai criar uma nova jurisimprudência, soltando 90% da bandidagem trancada nas cadeias dos país.

Ao povo brasileiro, perdido no meio de tanta impunidade, violência e corrupção, só vai restar uma alternativa: pedir para ser preso. Só mesmo trancado numa penitenciária de segurança máxima o cidadão honesto e pacífico vai ter tranquilidade suficiente para poder continuar trabalhando feito um burro para pagar os seus impostos em dia.

Agamenon Mendes Pedreira é adevogado do Diabo junto com o Dr. Kakay

Quando a toga é palavrão

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Devolva essa pergunta a seu editor, manda ele enfiar isso na bunda. Isso é molecagem, esse tipo de pergunta é desrespeito, é desrespeito
Gilmar Mendes em resposta ao jornal Folha de S. Paulo sobre quem pagou sua passagem aérea para Portugal

O dia do juízo final

Vamos saber dentro em pouco se o Luis XVI dos trópicos, nosso vulgo Lula, será finalmente preso pelos crimes que cometeu ou se seguirá livre, leve e solto, com o beneplácito do Supremo check-in, que acomoda o séquito de poderosos da Corte no paraíso da impunidade, quaisquer que sejam os delitos praticados por seus membros. A referência ao monarca absolutista francês não é gratuita. Foi levantada inicialmente pela própria defesa do líder petista que, em um arroubo de erudição, misturou alhos e bugalhos comparando o Luis de lá e o de cá para salvaguardar a liberdade de seu cliente. Por vias tortas, deu certo. O Tribunal encantou-se com a retórica. Imaginando-se talvez no clima do iluminismo europeu, produziu uma jabuticaba jurídica. A sentença do “congelamento” temporário da condenação de Lula ainda pesa por esses dias como a mais depravada decisão de que se tem notícia na Corte para acobertar os abusos de quadrilheiros públicos e notórios. Ao menos nesse pormenor o STF contraria os princípios ensinados pelo pensador iluminista Montesquieu que em sua obra maior, “O Espírito das Leis”, pregou que o Judiciário deve ser percebido como apolítico, um garantidor da estabilidade. O Supremo não atendeu nem a uma coisa, nem a outra. Com a invencionice de um HC provisório – dá para definir assim – gerou instabilidade legal em cascata e reforçou os sinais de que pauta julgamentos pelo peso político que cada um deles carrega. O caso Lula atropelou trâmites, rompeu a jurisprudência em vigor e mostrou um comportamento impensável dos senhores ministros: eis o Judiciário que legisla, ferindo a regra basilar de separação dos poderes. O mais triste é perceber que a avacalhação legal não encontra sequer respaldo na história. Revisitando a experiência civilizatória que pôs a pique o reinado de Versailles, o Luis francês foi decapitado para consagrar a democracia moderna e os ventos de liberdade que influenciaram o mundo. O Luis tupiniquim, um arrivista aproveitador das burras do Estado, ganhou de presente de Páscoa por seus feitos uma escapada, ao menos preliminar, da vida crua dos condenados. Resta saber se a alforria vai perdurar “ad aeternum”. A benevolência suprema parece atender com presteza aos apelos de certas figuras de nossa República. Pena que nem todos os brasileiros tenham acesso a essa Justiça. Em jogo, no caso Lula, uma verdadeira anistia por crimes que quatro juízes, em duas instâncias, unanimemente, julgaram terem sido cometidos pelo réu. Receberá Lula novo salvo-conduto para continuar a delinquir? Segue o script e, inevitavelmente, entra na ordem do dia, mais uma vez, nesta quarta-feira, 4, o momento do juízo final. Irão os senhores togados do Supremo confirmar ao País que, sim, o crime compensa na esfera dos abonados – para quem as ações são meras peças protelatórias sem causa ou efeito –, dando início a um festival de HCs apelatórios dos encarcerados que pedirão igualdade de tratamento? Ou, definitivamente, os senhores magistrados darão fim à anarquia dos recursos em cascata que seguem em tramitação, por anos a fio, até que o crime prescreva? A depender da estirpe da banca e da qualidade dos advogados, a não prisão após a segunda instância – uma esquisitice jurídica que só teve guarida por aqui – representará o vale-tudo para marginais de alta patente, espécie de indulto de Páscoa. O tribunal do STF ainda pode piorar o quadro com um estratagema deplorável em meio à tensão que o País vive à espera do veredicto: um pedido de vistas providencial, lançado por um dos magistrados simpáticos à causa petista, que adiaria o resultado. Seria ardiloso demais, porém é o que se cogita a boca pequena em um ambiente legal notoriamente supercamarada. Ao contrário do que sustentou a presidente Cármen Lúcia, o Supremo se apequenou. O decano Celso de Mello já avisou que fará um “voto longo”, talvez para rebuscar com um palavrório enigmático sua predisposição pró-réu. O colega de turma, Gilmar Mendes, que defendeu ardorosamente, não faz muito tempo, a prisão em segunda instância – lembrando ser o Brasil o único a não exercê-la – pode, daqui para frente, caso mude de opinião, como tudo indica, se mostrar como um ambidestro intelectual que adapta suas convicções e interpretações às demandas de ocasião. Nada mais injusto que isso. É preciso coerência, estabilidade de decisões, tudo que o STF não tem apresentado por esses dias. Se o Tribunal desta feita aceitar o habeas corpus de Lula, o Brasil volta a ser coberto pelo manto da impunidade para a vergonha, descrença e tristeza de seus cidadãos de bem, confirmando a sina de que a Justiça sempre tarda e falha.

Música para o feriadão

A ignorância ao alcance de todos

Todo dito popular funciona e ficaria o dito pelo não dito se os ditos ditos não funcionassem, dito o que, acrescento que há um dito que não funciona ou, melhor dito, é um dito que funciona em parte uma vez que, no setor da ignorância, o dito falha, talvez para confirmar outro velho dito: o do não-há-regra-sem-exceção. Digo melhor: o dito mal-de-muitos-consolo-é encerra muita verdade, mas falha quando notamos que ignorância é o que não falta pela aí e, no entanto, ninguém gosta de confessar sua ignorância. Logo, pelo menos aí, o dito dito falha.

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Tenho experiência pessoal quanto à má-vontade do próximo para com a própria ignorância, má-vontade esta confirmada diversas vezes em poucos minutos, graças a uma historinha vivida ao lado do escritor Álvaro Moreira, num dia em que fomos almoçar juntos, na cidade.

Já não me lembro qual o motivo do almoço. Lembro-me, isto sim, que íamos caminhando, quando Alvinho disse, em voz alta:

– Leônio Xanás.

– O quê? – perguntei, e Alvinho explicou que Leônio Xanás era o nome do pintor que estava pintando seu apartamento. Até me mostrou um cartãozinho, escrito “Leônio Xanás – Pinturas em Geral – Peça Orçamento”.

– Hoje acordei
com o nome dele na cabeça. A toda hora digo Leônio Xanás – contava o escritor. – Ainda agorinha, ao entrar no lotação, disse alto “Leônio Xanás” e levei um susto, quando o motorista respondeu: “Passa perto”. Ele pensou que eu estava perguntando por determinada rua e foi logo dizendo que passa perto, sem, ao menos, saber que rua era.

Foi aí que nos nasceu a vontade de experimentar a sinceridade do próximo e nos nasceu a certeza de que ninguém gosta de confessar-se ignorante mesmo em relação às coisas mais corriqueiras. Entramos numa farmácia para comprar Alka-Seltzer (pretendíamos tomar vinho no almoço) e Alvinho experimentou de novo, perguntando ao farmacêutico:

– Tem Leônio Xanás?

– Estamos em falta – foi a resposta.

Saímos da farmácia e fomos ao prédio onde tem escritório o editor do Alvinho. No elevador, nova experiência. Desta vez quem perguntou fui eu, dirigindo-me ao cabineiro do elevador:

– Em que andar é o consultório do Dr. Leônio Xanás?

– Ele é médico de quê?

– Das vias urinárias – apressou-se a mentir o amigo, ante a minha titubeada.

– Então é no sexto andar – garantiu o cara do elevador, sem o menor remorso. E se não tivéssemos saltado no quarto andar por conta própria, teria nos deixado no sexto a procurar um consultório que não existe.

E assim foi a coisa. Ninguém foi capaz de dizer que não conhecia nenhum Leônio Xanás ou que não sabia o que era Leônio Xanás. Nem mesmo a gerente de uma loja de roupas, que – geralmente – são senhoras de comprovada gentileza. Entramos num elegante magazine do centro da cidade para comprar um lenço de seda para presente. Vimos vários, todos bacanérrimos, mas – para continuar a pesquisa – indagamos da vendedora:

– Não tem nenhum da marca Leônio Xanás?

A mocinha pediu que esperássemos um momento, foi até lá dentro e voltou com a prestativa senhora gerente. Esta sorriu e quis saber qual era mesmo a marca:

– Leônio Xanás – repeti, com esta impressionante cara-de-pau que Deus me deu.

Madame voltou a sorrir e respondeu: – Tínhamos, sim, senhor. Mas acabou. Estamos esperando nova remessa.

Foi uma pena não ter. Compramos de outra marca qualquer e fomos almoçar. Foi um almoço simpático com o velho amigo. Lembro-me que, na hora do vinho, quando o garçom trouxe a carta, Alvinho deu uma olhadela e disse, em tom resoluto:

– Queremos uma garrafa de Leônio Xanás tinto.

O garçom fez uma mesura: – O senhor vai me perdoar, doutor. Mas eu não aconselho esse vinho.

Devia ser uma questão de safra, daí aconselhar outro:

– O Ferreirinha não serve?

Servia.

É irmãos, mal de muitos consolo é, mas ignorante que existe às pampas, ninguém quer ser.
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)

Partidos brasileiros são mais do mesmo e poderiam ser reduzidos a 2

Uma explicação comum para justificar o grande número de partidos políticos no Brasil é o fato de o país ser grande e heterogêneo. Portanto, várias legendas seriam necessárias para representar os diferentes grupos que fazem parte da sociedade.

Mas não é isso o que mostra uma pesquisa inédita da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Fundação Getulio Vargas (FGV), segundo a qual apenas dois partidos já seriam suficientes para representar a sociedade brasileira no Congresso Nacional.

"Tem muitos partidos desnecessários no Brasil, em termos de representação ideológica. Quando um partido é criado, normalmente é para atender a um grupo ideológico pouco representado, dar voz a grupos. Mas não é o que esta acontecendo. Os partidos no Brasil estão sendo criados por outras razões, não para defender bandeiras", afirmou à BBC Brasil o professor Timothy J. Power, diretor do Programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford.

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Entre abril e setembro do ano passado, Power e César Zucco, professor da FGV, distribuíram a deputados e senadores um questionário com perguntas sobre diferentes temas – de economia e controle fiscal a reforma política e aborto. O levantamento, chamado de Brazilian Legislative Survey (BSL), é feito a cada quatro anos e tem o objetivo de captar a evolução do pensamento do Congresso Nacional desde a redemocratização.

A partir da resposta dos legisladores, os pesquisadores descobriram que as 25 legendas com representação na Câmara têm posições muito semelhantes.

Seria possível dividir esses partidos em dois grupos, um de centro-direita, composto pelo chamado "centrão", além de PP, PSDB e MDB, e outro de centro-esquerda, formado por partidos como PT, PC do B e PDT. O bloco de centro-direita têm hoje 60% das cadeiras na Câmara dos Deputados, e o de esquerda, 40%.

"No campo das ideias, pelos 20 assuntos que a gente mediu, dois partidos são suficientes e representariam razoavelmente e de forma coerente a sociedade. Um seria estaria mais à esquerda e outro mais à direita", disse o professor César Zucco à BBC Brasil.

Power traça um paralelo da distribuição atual de cadeiras no Congresso entre centro-direita e centro-esquerda com o cenário partidário do Brasil em 1979, ainda no regime militar, quando havia apenas dois partidos com representação no Congresso.

"Se você pensar, é parecido com o Brasil em 1979. Tinha dois partidos na época. O Arena (partido governista), com 60% das cadeiras, e o MDB (que fazia oposição ao governo militar), com 40%. Nós vemos a mesma coisa hoje: existem dois grupos, sendo que o de centro-direita tem maior representação no Legislativo", afirma.

A conclusão de que duas legendas já seriam suficientes para representar as posições dos grupos políticos existentes hoje no Congresso indica que a acelerada criação de partidos no país não é estimulada pela demanda de setores por representação, mas sim por estratégias políticas e interesses eleitorais.

"Isso confirma a ideia de que, claramente, esses partidos não existem para representar ideologias e ideias que precisam ser representadas. Eles representam ideias parecidas e existem por questões estratégicas dos deputados e senadores", afirma Zucco.

"Atendem a interesses locais, porque os políticos precisam de legendas diferentes para competir em eleições; a interesses em termos de financiamento, por causa do acesso a recursos partidários; e ao interesse de acesso a recursos dentro do Congresso Nacional, como pessoal, verba, participação em comissões", completa o professor da FGV.

A pesquisa não defende a mudança de modelo político para um sistema bipartidário ou com menos legendas, apenas demonstra que a posição dos 25 partidos que hoje têm representação no Congresso Nacional é similar a ponto de ser possível dividir o Legislativo em dois grupos. 

Morrer na praia

Não tem nada mais difícil para quem está envolvido com o noticiário do dia a dia político do que entender o rumo de mudanças à medida que elas ocorrem. Já passei por isso, entre outras ocasiões, cobrindo a queda do Muro de Berlim, em 1989. Quarenta dias antes do evento eu estava lá, na Alemanha Oriental, reportando sobre as manifestações e fugas em massa do regime comunista. E não imaginava que faltava só pouco mais de um mês para aquele mundo todo acabar de vez. Foi só depois do muro derrubado que tudo aquilo que já era visível ficou tão claro, tão óbvio, como o caminho que levava a uma revolução.

Crises graves, e o Brasil vive uma, têm características em comum: a velocidade dos acontecimentos é uma delas (no nosso caso, a rapidez com que fomos de escândalo em escândalo, de delação em delação e, agora, de decepção em decepção). Outro aspecto em comum é a desorientação de elites pensantes (políticas, econômicas ou ambas) – para não falar de vastas parcelas da população – que passam a sofrer de perda de capacidade de “leitura” da realidade, ou seja, de antecipar fatos e suas consequências (bastante evidente nos dirigentes do PT antes do impeachment).


Mas a mais grave característica em comum a grandes crises é a deterioração daquilo que numa sociedade até certo ponto se aceitava, bem ou mal, como algum tipo de autoridade – sobretudo a moral. Avança um fenômeno de percepção negativa, e de perda de confiança, que chegou também a órgãos da Lava Jato, a conglomerados econômicos, à imprensa (especialmente os mais poderosos), a instituições religiosas e, recentemente, de maneira espetacular, ao Supremo Tribunal Federal. O sinal que mais se levanta hoje no Brasil é o sinal de interrogação. Para onde vai?

No Brasil é palpável, embora bastante subjetivo, o generalizado desejo de mudança, a indignação com a corrupção, o clamor por algo diferente – e eu me arrisco a dizer, a vontade também de enxergar alguma ordem (no sentido de direção e estabilidade). Sou obrigado a reconhecer, porém, que nossa história recente exige uma tremenda dose de paciência de todos os que ardem por mudanças. Pois temos o costume (cada um julgue se é positivo ou negativo) da “acomodação”. 

Na saída da ditadura queríamos Diretas-Já, mas nos acomodamos a esperar o voto direto para cinco anos depois. Nos acomodamos à inflação, que domamos depois de uma década perdida. Nos acomodamos a uma reforma de Estado feita apenas em parte e, com gosto, nos acomodamos ao populismo fiscal irresponsável – e aos encantos de seu marketing executado com dinheiro publico desviado – que precisou de um desastre para ser tirado do poder.

Às vezes parece que para nós, brasileiros, o insustentável (como a violência) é o nosso jeito de ser. Ocorre que esse grande e caudaloso rio querendo mudanças vai se chocar nas eleições em outubro com grandes obstáculos formados por um eleitorado em boa medida apático e desanimado, pelo domínio do aparelho de Estado por grupos corporativos públicos e privados (empresas e partidos), pela percepção de que, no filme de faroeste brasileiro, até o mocinho às vezes só parece querer cuidar do dele. A imagem de grandes quantidades de água em movimento, como algo ao qual ninguém resiste, é uma das mais usadas para descrever mudanças desde que historiadores existem.

Mas morrer na praia é um grande provérbio popular.
William Waack

quinta-feira, 29 de março de 2018

A falta de política estoura nas ruas

A humanidade inventou a política para que homens e mulheres não se matassem de verdade. A política inventou o Estado para que ele, e somente ele, o Estado, tivesse o monopólio da força física, da violência, o que impediria que homens e mulheres se matassem de verdade. Quando a violência assume a centralidade das relações é porque o Estado, a política e a humanidade falharam.

Os atos de violência em torno da caravana do PT não expressam apenas a contrariedade de parte da população com aquele partido e seu líder. Antes de tudo, indicam a degeneração do sistema político, incapaz de promover o diálogo e a mediação do contraditório, substituindo tapas, pedradas, ovos e tiros por algo mais sofisticado, como a comunicação e o debate de ideais.

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Culpa de quem? De muita gente. Difícil começar a explicar. O PT, é claro, cometeu muitos erros. Foi em uma de suas campanhas eleitorais que deu largada à miséria dessa política, ao lançar mão de raciocínio rude e populista, expresso na formulação simplória ''nós contra eles''. Para quem planejava representar a sociedade, dividi-la foi pouco inteligente. Negação da política e do governo, cujo objetivo é unir.

Hegemonismo e arrogância expressam insegurança. Os adversários do PT adoraram. Dava-se a eles o monopólio da interlocução de tudo o que não fosse ''nós'' — ou ''eles'', sabe-se lá —, que não se identificasse com os valores do petismo, já uma variação dentro da própria esquerda. Para quem tanto reclama respeito à diversidade, mais que contradição, foi um erro fatal.

Em junho de 2013, multidões saíram às ruas sem saber exatamente porquê — não foram, de fato, os 20 centavos das passagens de ônibus; foi talvez a busca de identidades primárias: saber, afinal, quem eram os ''nós'' e definir quem seriam os ''eles''.

Aberta a Caixa de Pandora, só a esperança é que ficou contida. O mal-estar se espalhou por toda a campanha eleitoral de 2014, empobrecida pelo predomínio de figuras pouco sofisticadas como Dilma Rousseff e Aécio Neves; desorientada pela perplexidade paralisante de Marina Silva.

Nem sempre a eleição é remédio para os males; às vezes, os agrava. O mal-estar sobreviveu à disputa de 2014 e avançou pelo processo de impeachment de Dilma, alentado pelo oportunismo fisiológico cujo emblema maior repousa na figura do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, hoje guardado em Curitiba, repousando seu ressentimento e sua bílis.

Mas, não foi apenas ele, é claro. O impeachment, cimentado com a argamassa dos erros de Dilma, fundiu uma série de outros oportunismos. Como os do PMDB (MDB), que enxergava na derrocada petista um atalho para o poder que estancaria ''a sangria'' agora exposta pela Operação Lava Jato. Foi o que pontificou Romero Jucá, o intelectual orgânico que o presidencialismo de coalizão hiperfisiológica foi capaz de gerar.

Também não fica de fora o PSDB, que, ressentido com a derrota de 2014, andou de braços dados com Eduardo Cunha; serviu de esteio ao governo do PMDB e foi entusiasta da teoria do estancamento, ideia-força de Romero Jucá, Michel Temer e Aécio Neves: ''estancar a sangria'' foi como colocar um dique à sociedade. Não tardaria, as águas romperiam esse tipo de barreira.

Feitos como expressão do equilíbrio entre a cauda e o bico, os tucanos perdem o prumo e diluem-se na geleia geral do Centrão. Geraldo Alckmin, candidato sob encomenda para reconstruir o Centro e aplainar as asperezas da desinteligência, mete-se a inoportuno analista: ''o PT colhe o que planta''. Apenas o PT? Bombeiros não apagam fogo com gasolina, governador.

Tampouco é apenas tudo isto: o conflito, que não teve mediação da política, perdeu a salvaguarda da Justiça. Naturalmente, a política se judicializaria como efeito de sua incapacidade de contornar o conflito. Mas, foi, gradativamente, a Justiça que se politizou. Isto fez com que se fragmentasse numa miríade de visões de direito, justiça e, até, de interesses políticos, perdendo a unidade e a orientação de um Pleno, no Supremo Tribunal.

Incapaz de decidir, a Justiça não contorna interesses e já não arbitra conflitos. É claro que isto tudo estouraria como violência, nas ruas. A Humanidade requer Política, Estado e Justiça. O que fazer quando ela própria já não parece capaz preservar esses instrumentos que a preservam? Não, a solução não está no despotismo esclarecido. Até porque déspotas quase nunca são esclarecidos.

Carlos Melo 

Tiros, cultura política e patrimonialismos

Depois do atentado a bala contra os ônibus que acompanhavam a viagem do ex-presidente Lula pelo sul do País, na terça-feira o governador de São Paulo Geraldo Alckmin disparou uma declaração atordoante: “Acho que eles estão colhendo o que plantaram”. Eles quem? Pelo que se pode depreender do raciocínio de Alckmin, já escalado pelo PSDB para concorrer à Presidência da República, esse “eles” aí se refere aos petistas. Sendo contra “eles”, o candidato reproduz, mesmo sem querer, o típico embate do “nós contra eles”. Acusa o PT de “sempre partir para dividir o Brasil, nós contra eles”, mas incorre no mesmo erro. E diz que a culpa é da vítima.

Esse modo de explicar a violência é antigo. Quando uma mulher é violentada por um estuprador, logo aparece alguém para dizer que ela “provocou”. Quando a redação do Charlie Hebdo, em Paris, sofreu um ataque terrorista que matou 12 pessoas, em 7 de janeiro de 2015, rapidamente se levantaram vozes estranhas para dizer que os jornalistas tinham abusado da sátira e teriam feito por merecer.

Charge do dia 29/03/2018

Culpar a vítima é uma forma pusilânime de justificar a violência. Alegar que os acompanhantes da excursão pré-eleitoral de Lula “estão colhendo o que plantaram” é justificar o atentado. Mais ainda. Como, em política, os tiros se fazem acompanhar de discursos de ódio, de intolerância, de vingança ou ressentimento, o palavrório abastece os estampidos e vice-versa. Tripudiar sobre os petistas – ou “eles” –, em vez de condenar os agressores, condená-los incondicionalmente, equivale a encorajar a violência, como veremos nos próximos dias.

Está em expansão no Brasil uma cultura que anima crimes de sangue na política. Nessa cultura, os critérios públicos e impessoais – que conferem estabilidade e segurança a uma República – cedem lugar a implicâncias subjetivas, fúrias tribais e impulsos homicidas. A disputa de ideias converte-se em guerra aberta entre famílias ou clãs, as alianças partidárias apequenam-se em conluios entre capangas, num cangaço generalizante. A violência política recrudesce no espaço deixado por um Estado que, posto a serviço de interesses extrapúblicos, perde sua capacidade de resolver conflitos com base em regras aceitas em consenso. A violência explode ali onde os valores da democracia declinam. A partir desse ponto, o objetivo da ação política passa a ser o butim, a militância se reduz a vassalagem e a defesa do interesse particular mais escancarado começa a sufocar a noção de república. Em lugar de líderes, crescem os capi.

Não é difícil constatar a expansão dessa cultura antipolítica – porque anti-pública – tanto nos flancos de esquerda quanto nos de direita, o que nos leva à conclusão lógica de que, se quisermos entender as raízes da violência política, teremos de compreender as raízes dessa cultura – que nem sempre se manifesta como violência.

Por vezes essa cultura se mostra em desvios aparentemente desvinculados da violência, como nos surtos de “absolutismo” anacrônico – um “l’État c’est moi” fora de tempo –, em que a pessoa investida de poder pretende imprimir suas marcas personalíssimas na máquina pública sob sua responsabilidade: “a máquina pública sou eu”. Foi o que vimos recentemente, quando a Prefeitura de São Paulo, proibida pela Justiça de usar o slogan “Acelera SP”, saiu-se com uma nota dizendo que tinha sido ferida em sua “liberdade de expressão”.

Mas como assim? Por acaso uma Prefeitura teria “liberdade de expressão”? O Estado teria direito à “liberdade de expressão”?

É claro que a resposta só pode ser negativa. Numa democracia, o Estado jamais poderia ser titular de nenhum dos direitos fundamentais dos cidadãos. Seria um perfeito absurdo supor o Estado (ou uma prefeitura) dotado de liberdade religiosa, de direito à privacidade ou de liberdade de expressão. Nesse campo, o Estado não tem direitos, apenas deveres: tem o dever de transparência (não o direito à privacidade), o dever da laicidade (não o direito de professar uma fé) e o dever de informar (não o direito de liberdade de expressão). Sem esses deveres do Estado o cidadão não teria garantidos os seus direitos individuais.

Não obstante, alguém dentro da Prefeitura de São Paulo acredita sinceramente que a Prefeitura foi ferida em sua “liberdade de expressão” e, talvez sem se dar conta, sai por aí alardeando um absolutismo anacrônico. O administrador público que reclama para a administração pública o direito da livre expressão antropomorfiza e infantiliza, à sua imagem e semelhança, um ente público. Esse “gestor” não entendeu que, se o Estado pudesse ser titular desses direitos fundamentais, a democracia seria impossível.

Não nos enganemos mais. A cultura política que abriga a pretensão de que uma prefeitura possa ter liberdade de expressão como se fosse uma pessoa – o que seria a mesma coisa que pleitear para a Prefeitura o direito à privacidade ou o direito de liberdade religiosa – é a mesma que acalenta a veleidade absolutista de que o Estado é um prolongamento do corpo da autoridade, é a mesma que cultiva a presunção de que o Estado pode ser o instrumento legítimo para a realização dos desejos de quem governa e a mesma, por fim, que acredita que o agente político pode fazer “justiça” com as próprias mãos.

Há nisso uma herança clara do patrimonialismo, do coronelismo e do familismo, por certo, mas, aqui, tudo isso passou por inúmeras mutações. No contexto presente, assistimos a uma ampliação das brechas para a violência e para a corrupção, pois os métodos escusos tendem a ser absolvidos pelos fins virtuosos que alcançariam (virtuosos apenas porque condizentes com o desejo pessoal do capo).

Quando alguém saca o revólver, nós deveríamos pensar sobre a nossa cultura política – desnaturada em antipolítica. O desprezo pelo o bem comum e a idolatria dos caudilhos é uma obra sólida e complexa que esta nação ergueu com suor e sangue.