terça-feira, 18 de abril de 2023

De onde?

 


Um luxo chamado silêncio

Não vou deixar passar em silêncio um tema que tanto aprecio: o silêncio. Numa crônica, Umberto Eco profetiza, e vejo, com inteira razão, que, no futuro, só os ricos terão direito ao silêncio. Mas terão que comprá-lo. Só que o futuro, como diz a mídia, já começou. Os ricos, quase que de uma forma atávica, têm a arte de saberem se isolar; que o digam as ilhas desertas, as propriedades do campo, os recursos tecnológicos, os iates, as mansões bem afastadas dos vizinhos… Enfim, a classe média e os pobres que se virem com o barulho, que, aliás, os cerca de todos os lados, o que não é novidade para ninguém!

O barulho é quase uma definição do que é a modernidade. O sociólogo e antropólogo David Le Breton, em seu ensaio “Du silence”, vai ao ponto: “O único silêncio que a utopia da comunicação conhece é aquele da pane, do desfalecimento da máquina, da parada de transmissão”. Com efeito, cercados de máquinas, temos que aprender a suportar seus ruídos, seus resfolegares, seus apitos. A tecnologia ainda não evoluiu para o silêncio, embora venha tentando.


Curiosamente, há uma máquina cotidiana que Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta, com seu humor e agudeza, logo definiu como “máquina de fazer doido”: a televisão. Certamente, trata-se de uma das maiores inimigas do silêncio, e isso por uma razão muito simples: ela não se cala, é uma tagarela compulsiva; e quando subitamente se cala, somos os primeiros a dizer: “Está com defeito”. É verdade que há o recurso de “tirarmos o som”, mas só o utilizamos em casos excepcionais, tornando a televisão um tanto ridícula ou esvaziada…

Quer silêncio? Vamos à Antártida. Trata-se do lugar mais silencioso já visitado pelo escritor e explorador norueguês Erling Kagge, autor do admirável livro “Silêncio na era do ruído”. Kagge nos lembra que “[…] o som é um fenômeno físico medido em decibéis, mas não [acha] muito produtivo medir sons usando uma escala numérica. O silêncio se parece mais com uma ideia, um sentimento […] o silêncio mais interessante é o que trago dentro de mim”.

Nesse ponto, ele lembra o Riobaldo, de Guimarães Rosa no “Grande Sertão: veredas”: “O silêncio é a gente mesmo, demais”. O diabo é que, como diz o norueguês, há uma constante fuga de nós mesmos. Enfim, não se suporta bem o silêncio, como viu Pascal, que se assustava com o silêncio eterno dos céus estrelados. Já o barulho é algo que distrai, que nos leva para longe de nós mesmos… Segundo Kagge, nós precisamos criar o nosso próprio silêncio. De qualquer forma, “O silêncio [e assim ele faz eco a Eco] é o novo luxo”.

Do ponto de vista cultural, tanto a Bíblia quanto os judeus e os árabes têm em alta conta o silêncio. Breton, já citado, lembra, a propósito, dois provérbios árabes: “Só abras a boca se tiveres certeza de que o que vais dizer é mais belo que o silêncio” e: “És senhor das palavras que não pronunciaste e escravo das palavras que te escaparam”. Várias culturas africanas também vão no mesmo sentido: a de que podemos nos salvar pelo silêncio.

No mais, o sagrado e o silêncio caminham juntos na história humana. Sobre esse tema, o historiador britânico Peter Burke, no livro “A arte da conversação”, define com oportunidade: “O silêncio religioso é um misto de respeito por uma divindade; uma técnica para abrir o ouvido interior; e um sentido de inadequação de palavras para descrever as realidades espirituais”.

As relações do silêncio com as diversas culturas são de riquíssima palheta. O Japão, dentre outros países, é um caso emblemático, segundo observa o neurocientista Ivan Izquierdo no seu pequeno livro “Silêncio, por favor!”. Não obstante ser um país ruidoso, o Japão conta com “ilhas de silêncio”, jardins ou palácios onde podemos desfrutar de silêncio e serenidade.

Poder-se-ia perguntar: qual de fato o povo mais silencioso? Em hipótese alguma será o brasileiro, como bem sabem os povos que nos visitam ou são por nós visitados… Diz-se que os ingleses são bons de silêncio. Mas a questão, como registra o inglês anteriormente citado, Peter Burke, é controversa. Diz ele: “Os ingleses julgam-se falantes normais, considerando os suecos como sobrenaturalmente silentes, ao passo que os suecos consideram os finlandeses o povo verdadeiramente silente”.

O brasileiro infelizmente passa longe de qualquer amor pelo silêncio. O poeta e cronista Paulo Mendes Campos nos diz, não sem razão, que se queixar de falta de silêncio, ou, noutras palavras, de barulho, é a reclamação mais desmoralizada!

Verdade gritante! Burocratas ou policiais, ou um misto dos dois, sempre nos olham surpresos como se a própria palavra “silêncio” pertencesse a um idioma desconhecido. Por sua vez, Nelson Rodrigues detonava: “Brasileiro vaia até minuto de silêncio”.

Somos um povo de tagarelas? Sim. Barulhento? Sim. Reparem: até a Independência precisou de um grito! No mais, como ironicamente sintetizou Millôr, “Certos silêncios merecem resposta imediata”!

Pessoas são agredidas; ideias, não

O anúncio de uma série da HBO Max baseada no universo do personagem Harry Potter foi acompanhado de pedidos de boicote por parte da audiência. O motivo? A autora da saga, J.K. Rowling, seria transfóbica.

Boicotar é recurso válido no livre mercado. Se uma empresa usa trabalho escravo, consumidores podem escolher outra e aconselhar que os demais façam o mesmo.

Contudo, no caso em tela, é curioso que a ação se deva a uma opinião que não faz parte do conteúdo da série e tampouco é criminosa.

Desde 2020, Rowling sofre cancelamentos por criticar discursos que menosprezam o aspecto biológico do sexo, como: "Se sexo não é real, a realidade vivida por mulheres ao redor do mundo é apagada. Apagar o conceito de sexo remove a habilidade de muitos discutirem suas vidas de forma significativa. Não é ódio dizer a verdade".

Em entrevista, o biólogo Richard Dawkins disse que Rowling sofre "bullying" e que, para a ciência, sexo é binário: "Há apenas dois sexos". Afirmou ainda que o tema foi capturado por uma minoria que produz discursos sem sentido.

Jornais, inclusive no Brasil, afirmam que as falas são de fato transfóbicas. Se a acusação vale para a escritora, pode valer para qualquer um.

Mas, segundo decisão do STF que criminalizou a transfobia enquadrando-a na lei de racismo, impedir acesso a lojas, negar trabalho, ofender ou agredir transexuais, com razão, é crime, mas criticar teses e conceitos do movimento ativista não.

A legislação é sensata, já que pessoas são agredidas, ideias não. Caso contrário, seria impossível criticar o catolicismo, o fascismo ou qualquer outra linha de pensamento —o que travaria o livre debate público necessário, nas democracias modernas, para que nos aproximemos da verdade e encontremos soluções para os problemas que nos cercam.

Não é preciso acusar crime (transfobia) para demonstrar que uma ideia está errada. Na verdade, isso apenas revela fraqueza argumentativa e autoritarismo do acusador.
Lygia Maria