quinta-feira, 7 de junho de 2018

Brasil de hoje


O banimento dos fatos

“A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate.”
Hannah Arendt, Verdade e Política, 1967

De um lado, resmungam que esse negócio de “checagem de fatos” é coisa de imprensa burguesa. O argumento costuma vir com uma nota de superioridade intelectual: o sujeito que o pronuncia guarda para si um certo ar de bruxo materialista, como se divisasse nos labirintos da cidade a sombra da ideologia tensionando os fios que movem os dedos dos escribas alienados da “grande mídia”. Está convencido de que os eventos a que se dá o nome de “fatos” não passam de estratagemas a serviço da ideologia, a entidade que move a “mão invisível” de que falou Adam Smith, sem que Adam Smith sequer desconfiasse.

O argumento é presunçoso e preguiçoso, mas cola. Convence o gargarejo de que os fatos são a última ilusão funérea dos últimos positivistas da imprensa: o que vale são os princípios, a verdade histórica, a virada radical que virá com sua fatalidade apoteótica. Ler jornal é rendição. Revolucionário é proclamar que a manipulação das notícias favorece os banqueiros.

De outro lado, vociferam que essa balela de “fatos” é expediente de comunista. Só os idiotas não percebem, pontifica o moralista num figurino de peça de Nelson Rodrigues. O seu discurso vem cheio de bordões enxovalhados que, todavia, não perdem o empertigo: a imprensa está a mando do comunismo internacional; é todo mundo comunista; é todo mundo mentiroso; é todo mundo ladrão; o governo é uma corja de ladravazes, na Câmara dos Deputados não se salva ninguém; até no Supremo Tribunal Federal andam tungando o erário. Há uma infinidade de vídeos nesse diapasão zunindo pelas redes sociais. Os oradores espumam, tentam morder a câmera. Propõem que joguemos fora o Congresso, Brasília, os políticos e, junto com eles, a política. “O lixo ao lixo.”

Os moralistas de Nelson Rodrigues são o perfeito contrário dos bruxos materialistas. Num ponto, porém, uns são iguaizinhos aos outros: abominam os fatos e, mais ainda, abominam falar sobre os fatos. Os rodrigueiros têm a mania de atacar os fatos relatados pela Comissão Nacional da Verdade. Gritam que é campanha de comunista para desmoralizar as Forças Armadas no momento em que o Brasil mais precisa delas. Os materialistas em transe preferem sentenciar que todas, todas, todas as evidências factuais que atestam corrupção nas fileiras ditas “populares” são uma campanha fascista para desmoralizar as lideranças ditas “progressistas” no momento em que o Brasil mais precisa delas.

Não pense o improvável leitor (que teve a extrema generosidade de me seguir até aqui, muito obrigado) que estou falando de tipos folclóricos e irrelevantes. Olhe os nomes que lideram as pesquisas eleitorais (pesquisas que, por sinal, são um dos poucos fatos que nos restam). Confira os discursos que dão suporte a um e a outro e leia com atenção os mais doutrinários e inflamados. Não, não estamos falando de pouca gente, não são meros tipos folclóricos. Estamos falando de milhões e milhões de eleitores. Parece que as maiorias se amontoam nos extremos.

Um lado e outro e romperam definitivamente com o registro dos fatos. Apresentam cenários retirados de um país que não existe, um faz de conta do absurdo. Mesmo assim, ou exatamente por isso, arrebatam multidões. Nenhum dos polos fala do País real, dos problemas reais, das vicissitudes, das aflições e dos dramas reais. Estamos em meio a uma farsa continental e alucinatória, distribuída em pilhas trepidantes num extremo e no outro, ou mesmo em cima de você (com licença). A barulheira trágica não tem direção nem retorno.

Aí, quando não há mais nada a fazer, a gente olha para o centro. Que desolação. O centro é um jantar num restaurante de classe média alta em que um orador careca foi convidado a dar palestra. Está escuro lá fora. Quase ninguém foi. Não tinha gasolina, sabe como é. Os garçons olham o vazio. Os garçons moram longe. Fora os garçons, quase todos os pouquíssimos que vieram já foram embora. Espere aí. Ficaram uns três ou quatro. O orador conversa com eles e ouve elogios em que não acredita.

Mudemos de cenário. Eis o centro em outro ambiente: um bate-boca em bons modos, em que um triste senhor pergunta se os circunstantes querem outro candidato, pois, ao que consta, ele mesmo sói ser candidato a candidato. Saia-justa, eles dizem, mas não há mulher por lá. O centro é uma cidade fantasma. É uma cracolândia sem craqueiros. O centro é um palanque desmontado num depósito que ninguém sabe onde fica.

E no centro, é lógico, também não se fala em fatos. Aqui, porém, a gramática é outra. Ao centro, onde tudo parece o oposto do que é, sem ser, o jeito preferencial de sabotar os fatos é recorrer insistentemente aos fatos, com um detalhe disruptivo que muda tudo: a palavra “fatos” não se refere aos atos humanos ou às pessoas de carne e osso vivendo sua vida real e se relacionando; o termo “fatos” designa métricas econômicas indecifráveis, indicadores de gestão cujas fórmulas ninguém consegue explicar, planilhas contábeis dispostas em colunas infindáveis em cujos desvãos se escondem emulações longínquas de famigerados crimes de responsabilidade.

Ao centro, os fatos são brumas espectrais, só acessíveis à econometria mais inextrincável, ao juridiquês mais empolado e aos modelos matemáticos em que apenas os números são reais (e, claro, irracionais). Ao centro, os fatos não estão ao alcance de olhos humanos, dos ouvidos humanos, do tato humano. Ao centro, os fatos não vão nunca, só mandam mensagens criptografadas. Vistos do centro, os fatos são como o garçom: moram longe.

Vai daí que, de uma ponta a outra, passando pelo desertificado centro, estamos soterrados de opiniões sem base factual. Os fatos foram para o exílio. Em seu lugar, deixaram a farsa. No Brasil, veja você, não se fala coisa com coisa.

Para PF, Brasil é presidido por um desqualificado

A palavra ainda não foi usada, talvez por excesso de zelo. Mas os relatórios anexados aos inquéritos que investigam Michel Temer já permitem concluir: na opinião da Polícia Federal, o Brasil é presidido por um d-e-s-q-u-a-l-i-f-i-c-a-d-o. Tomado isoladamente, esse fato já seria embaraçoso. Mas há pior: a maioria dos brasileiros concorda com os investigadores.

No inquérito sobre portos, quebraram-se os sigilos fiscal e bancário de Temer. Agora, em relatório remetido ao Supremo, a PF diz ter detectato indícios de pagamento de uma mesada da Rodrimar, empresa portuária, para Temer. Coisa de R$ 340 mil mensais —verba decorrente de malfeitorias praticadas no final dos anos 90.


Escorando-se numa planilha que resgatou num inquérito que o Supremo enviara para o arquivo morto, o delegado Cleyber Malta Lopes concluiu: “As informações desse inquérito são importantíssimas para a compreensão do caso atual, sendo possível supor que esquemas investigados hoje tenham se estabelecido entre 1995 e 2000, quando o então deputado federal, líder de bancada, Michel Temer, fez as primeiras indicações para o comando da Codesp [estatal que administra o porto de Santos], conforme reconhecido por ele nas respostas à PF”.

Em português claro, o que o delegado Cleyber escreveu em seu relatório, com outras palavras, foi o seguinte: Temer praticava corrupção na década de 90 e continua cometendo o mesmo crime na atualidade.

Noutro inquérito, sobre a propina de R$ 10 milhões que a Odebrecht disse ter repassado a caciques do PMDB, a PF solicitou ao Supremo autorização para quebrar o sigilo telefônico do presidente e de seus companheiros de infortúnio criminal: os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Minas e Energia).

Deseja-se cruzar os contatos telefônicos da trinca com as datas em que a empreiteira disse ter entregado o dinheiro vivo que Temer encomendou a Marcelo Odebrecht num jantar no Palácio do Jaburu. Requisitou-se também a quebra do sigilo das contas telefônicas dos delatores da empreiteira.

Embora muita gente finja não notar, o embaraço mudou de patamar. O que era apenas constrangedor tornou-se trágico. Não bastassem as duas denúncias criminais que a Câmara enfiou dentro do freezer, Temer é virado do avesso num par de inquéritos por corrupção.

Se o Supremo deixar, a PF manuseará os contatos telefônicos de Temer. A polícia já apalpa os extratos bancários e os dados fiscais do presidente e do seu séquito de amigos. Dias atrás, os investigadores descobriram algo que elevou o status do coronel João Baptista Lima.

O coronel Lima, como é conhecido o amigo do atual inquilino do Planalto, movimentou R$ 23 milhões em contas no Bradesco e no Banco do Brasil. Era tratado como “faz-tudo” de Temer. Para a PF, virou um operador de propinas destinadas ao presidente da República.

Temer nega todas as acusações. Nesta quarta-feira, chegou mesmo a escrever numa nota oficial que a PF enveredou pelo terreno da “ficção policial”. Pelos próximos sete meses, Temer continuará exercitando a ilusão de que preside o país —como se nada tivesse sido descoberto sobre ele. Deixará o Planalto em 1º de janeiro como símbolo de um período em que a desfaçatez e a falta de recato moeram a invulnerabilidade da Presidência da República.

O que transforma o embaraço em tragédia é a constatação de que as distorções do sistema e as relações promíscuas que imperam na política tornaram possível que um presidente virasse ex-presidente ainda no exercício do cargo. Temer apodrece no trono. Encerrado o mandato, despencará do Planalto direto para a primeira instância do Judiciário.

Degradação

Até a última esperança perdeu o pudor: renova-se dia a dia e, como boa rameira, caminha sinuosamente para a esquina 
Raul Drewnick 

Trabalhos-bosta

Tempos atrás, fui convocado para uma reunião "importantíssima". Disse que iria e perguntei a que horas começava. "Nove da manhã", responderam. E a que horas terminava?

Silêncio do outro lado da linha. Cinco segundos depois, a réplica: "Terminar? Como assim?". Entendo o pasmo.

Na cultura laboral reinante, a reunião pode começar a uma hora definida; mas só acaba quando Deus quiser.

A ideia de que as pessoas têm trabalho (verdadeiro) para fazer e uma vida (pessoal) para viver não passa pela cabeça do burocrata moderno. Ele acredita genuinamente que reuniões intermináveis —aquelas reuniões de 15 minutos que acabam durando duas ou três horas— são prova de excelência e produtividade.


Fui. A reunião durou três horas, quando teria sido possível tratar do assunto pelo telefone. Mas devo acrescentar, em minha defesa, duas coisas: primeiro, que não voltarei a pôr os pés em martírio semelhante; e, segundo, que esses martírios não fazem parte das minhas rotinas, embora façam parte da rotina do trabalhador comum.

Vamos por partes: existem "trabalhos de bosta" ("shit jobs"), "trabalhos-bosta" ("bullshit jobs") e "trabalhos que acabam virando bosta" ("jobs that were bullshitised"). Essas categorias filosóficas pertencem a Eliane Glaser em ensaio para o Guardian que merece ampla divulgação.

"Trabalhos de bosta" são trabalhos duros e necessários. Como limpar as ruas para que as nossas cidades não se convertam em antros fétidos e pestilentos. São trabalhos mal pagos que deveriam ser regiamente pagos.

"Trabalhos que acabam virando bosta" são trabalhos que não são bosta (originalmente), mas que se convertem em bosta pela burocracia demencial em que se afundam.

A academia é um excelente exemplo: em teoria, um professor universitário ensina e faz pesquisa; mas ensinar e pesquisar são hoje atividades marginais da profissão. O essencial está em mil tarefas burocráticas que transformam os acadêmicos em profissionais de "trabalhos-bosta". E o que são esses trabalhos?

Simplificando, são aqueles trabalhos que, se desaparecessem hoje, você não sentiria falta. São trabalhos sem sentido, normalmente de natureza "administrativa", que ocupam uma parcela cada vez maior do mercado laboral.

O antropólogo David Graeber, analisado por Eliane Glaser, escreveu um ensaio (que agora virou livro: "Bullshit Jobs") que resume o essencial: em 1930, J.M. Keynes profetizou que os avanços tecnológicos acabariam por permitir aos seres humanos 15 horas de trabalho semanal. Azar: nunca estivemos tão ocupados como agora. Mas ocupados a fazer o quê?

Nos Estados Unidos e no Reino Unido, escreve Graeber, diminuiu drasticamente o número de trabalhadores domésticos, industriais e agrícolas. Tradução: não estamos trabalhando em casa, na fábrica ou no campo.

Ao mesmo tempo, subiu vertiginosamente o número de trabalhadores no "setor administrativo". Isso se explica por razões econômicas?

Nem por isso, defende Graeber: a maioria dos "trabalhos-bosta" não tem qualquer racionalidade econômica. A razão é moral e política: as pessoas trabalham 40 ou 50 horas semanais, e não as 15 que seriam suficientes, porque é do interesse dos poderes estabelecidos que uma multidão de gente não dedique o seu tempo e os seus esforços a cogitar um mundo melhor.

Sim, a última parte do raciocínio de Graeber não me parece convincente: no seu cripto-marxismo, Graeber parte da premissa otimista de que a multidão, sem "trabalhos-bosta", estaria devotada à construção da utopia.

Além disso, confesso, eu preferia ter um "trabalho-bosta" a um "trabalho de bosta", que era o tipo de trabalho fatal dos nossos infelizes antepassados.

Mas a inquietação continua: como explicar a profusão de "trabalhos-bosta"?

Arrisco uma hipótese descartada por Glaser e Graeber: é preciso não subestimar a militância de "trabalhadores-bosta". Falo de trabalhadores que não deploram o tipo de trabalho que têm —mas, pelo contrário, encontram na burocracia infinita um sentido que me transcende e uma marca de distinção face aos restantes.

Não se queixam. Eles existem para que os outros se queixem. Adaptando uma expressão freudiana, há muitos trabalhadores-bosta que florescem no narcisismo dos pequenos poderes.

Basta lembrar a minha reunião: três horas escutando bosta —e que belos sorrisos naquelas caras em transe!

Pensamento do Dia

Al Margen

O iluminado

Seu Juca estava bravo demais no sábado, 2. No caixa da padaria, desabafava: O sujeito ainda tem a cara de pau de se dizer iluminado. É o fim do mundo!

O sujeito em questão era Michel Temer, alvo principal da fúria de seu Juca. A rapaz do caixa, sorriu, fez a egípcia, e seu Juca, buscando parceria, subiu o tom.

– O cara disse isso, sem nem ficar vermelho, num encontro desses de igreja. Falou pra plateia com a TV filmando. O povo ralando da fila, sem gasolina e sem gás. Prateleira vazia e o vampiro garantindo que, por iluminação divina, tinha fechado acordo com os grevistas. De lascar!

Seu Juca pagou, mas não interrompeu o solo da revolta.

– To perto dos 80. Já vi um de tudo na vida, mas tamanho deboche nunca tinha visto. O cara tá pendurado na Lavajato, cercado de amigos carregador de mala com dinheiro roubado, faz um governo de M e ainda se diz iluminado. I-lu-mi-nado! Só se for por archote do inferno, que é da turma dele. Já viu a cara dele? As mãos? Só falta o chifre.

A senhora arrumada, com cabelos gomados a laquê, ousou dialogar. “A gente precisa ter paciência. Tem que ver que ele pegou um governo destruído por aquela mulher do PT”.

– A senhora me desculpe a ousadia, mas to cansado de ouvir essa lengalenga. A culpa sempre é do de antes. Eu não sou PT, não votei na reeleição da Dilma, não gostava dela. Mas também não apoiei a palhaçada que fizeram com ela. Deu nisso. Ta bom agora?

Já pegando a chave do carro na bolsa, a dama do laquê, rebateu: Bom não tá. Mas quem garante que com ela estaria melhor?

Antes que seu Juca respondesse, um jovem que tomava suco de laranja no balcão entrou na bronca: Pior não estaria! Esse cara é o fim, senhora. Não dá pra defender.

A do laquê, balançou a cabeça, deu as costas e foi-se. Seu Juca partiu para o diálogo com o garoto, cara de sono, cabelos pro desgrenhado.

– Meu jovem, vou dizer pra você o que digo pros meus netos. O Brasil tem jeito sim. O Fernando Henrique não acabou com a inflação? O Lula, em quem ninguém botava fé, não governou direitinho? Não fez o Brasil crescer em paz?

Antes que o mocinho respondesse, outro senhorzinho adiantou-se: Mas roubou. Não roubou?

– Veja como o Brasil é forte. Tanto que até dá pra roubar e governar direito, né não?, devolveu seu Juca, ignorando o colega de idade e falando para o garoto do suco de laranja, que sorriu e respondeu: Imagina então se não roubassem…

Do outro lado veio a voz exaltada: Ah, não me venham defender o Lula!

Virou um furdunço, bate boca no salão. De cada canto um grito, um chavão.

– Pois se tem alguém que merece ser defendido é o Lula!

– Isso mesmo. Só ele preso? Cadê o pessoal do PSDB?

– Já que o Sergio Moro pega eles todos. O Temer inclusive. Não perdem por esperar!

– Esse Zorro de Curitiba tá mais pra Mazzaropi…

Já no carro, a do laquê, gritou:

– Vão defender o Lula na Venezuela, em Cuba!

– E leva o Temer junto. (Emendou outra).

– E deixe esses FDPs por lá. (Reforçou mais um).

– O Temer é da conta dóceis. E Venezuela é isso que vocês arranjaram pra gente, sua coxona! (Berrou uma voz grossa talvez pra dama do laquê que já nem estava mais em cena).

– 13 Milhões desempregados e vocês falando em Venezuela.

– Viva o Moro!

– Lula livre!

– A Petrobrás arrasada…

– Essa é da conta do PT, dos mortadelas.

– Num vem não. O Parente, o Temer, o Maia… tudo invenção dos patos paneleiros.

Quem não gritava, ria.

Seu Juca, que puxou a revolta, já calmo, já rindo, suspirou alto: Iluminado! Quem pariu que embale. Em fila.

Tânia Fusco

Futebol e Brasil

Por que o Brasil não pode ser como o futebol? Por que a “política brasileira” não vence para o Brasil, mas só para si mesma, sendo, por contraste com o futebol, um lixo?

No futebol somos vencedores mundiais e produtores de jogadores disputados por clubes “lá de fora”, mas o nosso Brasil, reduzido ao seu mundo “político-partidário” , é símbolo de derrota, vergonha e escárnio. Imagine o melhor jogador de futebol que você conhece — um Garrincha, Pelé , Zico, Gérson, Ronaldinho ou Neymar — na cadeia por ter fraudado um jogo do Brasil numa Copa!

De um lado, craques; do outro, na administração pública (com vênia aos honestos) pernas de pau! De um lado, atores que com o seu talento, transformam para melhor papéis fixos; do outro, gente que desonra os papéis cruciais que ocupam. Se a “política” — esse jogo sujo cujas consequências inafiançáveis estamos vivendo fosse o futebol, seríamos o lanterninha do mundo.


Mas, eis o motivo dessa linhas, escritas depois de ver Brasil x Croácia, o futebol, por contraste brutal com a política, não envergonha o Brasil. Pelo contrário, ele é motivo de orgulho. Na política, choramos de ignomínia — malas transbordantes de dinheiro no aparamento de um óbvio bandoleiro de boa família com trânsito à esquerda e à direita nos altos escalões governamentais — no futebol mal podemos conter as lágrimas de orgulho quando o Brasil ganha uma partida. Todos sabemos — coisa rara na política — contra quem estamos jogando!

Acabo de assistir a uma competição representativa de um mercado autorregulado e, no entanto, não testemunho nenhuma impostura. Não ouço nem promessas messiânicas de que o “nosso partido” , por ser do “povo”, não podia errar e iria acabar com a corrupção. No futebol, entretanto, o que assisto não é um teatro de roubalheiras, mas uma demonstração de talento, beleza e verdade. O futebol me transporta para o Brasil dos competentes e dos verdadeiros.

Vejo uma disputa férrea, mas não vejo vileza ou radicalismo. Nenhum jogador fere mortalmente um outro e deseja a sua destruição. Sabemos que entre aqueles profissionais não há inocentes. Mas eles sabem que a refrega tem regras conhecidas e, por causa disso, todos obedecem aos árbitros contrariando os seus desejos de vitória a qualquer preço. No futebol, eis o milagre!, não há recursos jurídicos para os que são justamente derrotados. Vencer ou perder é parte do jogo e ninguém pode transformar a derrota em opróbrio, nem ser vitima ou dono da bola para sempre.

Nesse mundo de guerras, de destruição total, que tanto nos envergonham — eu vejo no futebol o renascimento da justiça. Nele, nos aproximamos do ideal que define o vencedor como o melhor e o mais competente. Não há heróis que matam e morrem em nome da pátria ou da religião. Há apenas um punhado de craques. Nesse domingo eu me orgulho desses craques que com seu talento lutam contra seus adversários e as vicissitudes do acaso num combate no qual vale o talento e não a cor da pele, o berço, a nacionalidade ou a força bruta. Quem sabe se Deus não é mesmo brasileiro?

Essa abertura ao talento (ou dom) faz com que o esporte seja uma esfera social tão importante num mundo tão desequilibrado.

Outro dia me perguntaram se o amor pelo verde-amarelo não estaria desmaiado. Respondi que seria preciso esperar pelo jogo. É na luta feroz que não deixa mortos, e onde a bola é a vida e corre mais do que os homens, conforme escrevi num livro com esse título faz algum tempo, que mexe o meu coração...

No fundo, imagino, o futebol revela o fracasso ou o sucesso como estados relativos porque — antes de mais nada — é preciso jogar, como é preciso cantar e viver.

Sobretudo para nós que sabemos como o futebol rejeita tanto o populismo dos despotismos quanto os radicalismos, justamente porque nele o outro não é um inimigo a ser destruído, mas um adversário a ser respeitado já que sem ele não há jogo.

Por isso o futebol é tudo aquilo que a "politica" não é. Nele os times não são as pessoas. Ninguém nasce craque, mas torna-se um craque. O futebol, ao oposto do sistema brasileiro, não tem privilégios. Como afirmei muitas vezes, há nele uma igualdade de raiz que causa alergia no Brasil. Num jogo de futebol, vive-se a experiência da democracia em estado puro. Ganhamos somente para perder e perdemos para ganhar.

Pode-se aparelhar um selecionado brasileiro? Pode-se convocar jogadores somente por ideologia, amizade ou parentesco?

De modo algum. O futebol veio a se institucionalizar no Brasil porque ele pode ser censurável na sua organização, mas não no campo no qual surge transparente, impondo o seu valor aos jogadores, juízes, técnicos, dirigentes e torcedores. Ou seja, o time fica, mas os jogadores passam. Viva o time! Ai está o fundamento do que se chama institucionalizar. Aliás, cabe perguntar: é o futebol quem nos joga ou somos nós que o jogamos?

Roberto DaMatta

A confusão é obra do governo

Vamos falar francamente: não existe a menor possibilidade do governo federal conseguir cumprir as duas medidas principais que prometeu aos caminhoneiros e empresas de transporte: regular os preços do diesel e do frete rodoviário. Não porque seja traidor. Mas, primeiro, porque a tarefa seria impossível mesmo se estivessem lá os melhores técnicos. Segundo, porque mesmo se os técnicos fossem geniais, os políticos não os deixariam fazer a coisa certa.

Assim, ao tentar controlar e tabelar dois preços complexos, o governo consegue causar uma enorme confusão. O frete, por exemplo.

No auge da greve, o governo, via Agência Nacional dos Trabsportes Terrestres, ANTT, publicou uma tabela de preços mínimos do frete rodoviário em todo o país. No detalhe: caminhão por caminhão, eixo por eixo, quilômetro por quilômetro. Você lê a tabela e parece coisa de gênio: caramba, pensaram em tudo!


Passam-se alguns dias, greve já acabou, e simplesmente se paralisa o transporte de soja no país. Não por outra greve, mas por conta: produtores e empresas comercializadoras fizeram o cálculo e verificaram que o frete ficou muito mais caro do que o preço pré-greve, preço formado pelo mercado. Mais contas ainda: pequenos e médios agricultores chegam à conclusão que valerá mais a pena comprar um caminhão do que contratar frete terceirizado.

A distorção parece tão evidente que o pessoal do governo nem discutiu. Quer dizer, o erro não foi reconhecido formalmente, mas a ANTT ficou encarregada de fazer outra tabela, ouvindo também a parte do agronegócio. Vai dar errado de novo, pois os caminhoneiros vão insistir na primeira tabela que, aliás, está em vigor até que seja feita a outra.

Repararam bem? Tem uma tabela oficial, mas nem tanto, porque vai mudar. Claro que não será utilizada. A soja que espere. Ou, seus consumidores que esperem. Ou vai por fora da lei: um frete a preço de mercado, não de tabela.

E se a tabela for respeitada, sobe o preço dos alimentos, a ser pago por toda a sociedade.

Tudo isso porque o governo se mete a fazer o que não é possível. Por exemplo: não tem como a tabela incluir variantes que influem no custo, como a condição das estradas (a tabela fala em preço por km, o que, na vida real, é muito diferente em São Paulo do interior do Amazonas). Também não tem como incluir o tempo, estação de chuvas ou de seca. Ou o estado do caminhão. Ou a habilidade do caminhoneiro.

Ou seja, qualquer tabela é errada. Tem que ser pelo livre contratação no mercado.

A história do preço do diesel vai pela mesma rota de confusão. Aquela promessa tão repetida pelo ministro Padilha – o preço cai 46 centavos na bomba a partir de segunda (passada) – e as ameaças do ministro Sergio Etchgoyen – “vamos usar o poder de polícia” – viraram palavras mortas.

Não são mais 46 centavos, são 41 – e queda válida a partir dos estoques novos comprados por distribuidores e postos, podendo entrar em vigor em 15 dias. Os outros centavos dependem agora da redução do ICMS, um em cada estado.

Quer dizer que no dia 15 estará tudo ok? Que o preço na bomba será o valor de 21 de maio (pré greve) menos os 46 centavos? Que a polícia estará lá para garantir?

Sabem quantos postos tem no país? São 38.535, segundo registro na Agência Nacional de Petróleo. Até antes da greve, o preço era livre, de mercado, portanto, diferente por este país afora. Como o governo vai saber exatamente qual o preço então vigente em cada posto?

Deve ter nota fiscal, sim. Mas os fiscais vão conseguir checar 38.535 postos?

A gente tem que confiar nas pessoas – sugere o ministro Padilha. Ok, mas e se não for questão de confiança, mas de sobrevivência econômica? Por exemplo: os frentistas de um estado fazem uma greve e obtém aumento salarial. Sobe o custo do posto, o preço tabelado do diesel fica inviável. Ou, aumenta o IPTU de uma cidade, também elevando o custo do negócio.

E tem outra complicação. Uma empresa importadora de combustível entrou com ação no STF por entender que também tem direito ao subsídio de 30 centavos que o governo federal vai pagar à Petrobras por litro de diesel. A Petrobras também é importadora, num mercado legalmente livre, de modo que o governo está favorecendo uma empresa em detrimento de outras. Faz sentido, não é mesmo? E lá se vai para o Judiciário.

Sabemos que o Brasil não gosta muito de mercado e livre concorrência. Mas como é possível que não se aprenda nada com tantos e tão ridículos fracassos do governo?

Imagem do Dia

Escócia

Linha do tempo

Mesmo com tamanha imprevisibilidade sobre as eleições de outubro já sabemos algo sobre o que vem por aí, e não é pouco. Vamos do mais próximo ao mais distante na linha do tempo.

Uma candidatura única do centro é dúvida ainda para o clássico, mas a aproximação do deadline de julho apressa conversas sem que ainda se tenham nomes claros fora o do ex-governador Geraldo Alckmin, com dificuldades mesmo dentro do partido que preside. Perduram os vaticínios de que a candidatura de Jair Bolsonaro vai se derreter sozinha, mas a candidatura perdura. Falta pouco para o PT cometer um inédito suicídio político, se insistir em que só Lula é o candidato do partido, mas a beira do abismo costuma infundir medo nas pessoas.

Adoro e joguei futebol, mas nunca vi tanto desinteresse por uma Copa como o que registro agora, o que sugere que essa eleição seja inédita por mais um fator (além da curta duração, regras restritas de financiamento, curto tempo de televisão, forte presença de plataformas digitais, máquina do governo encurralada, grau de indignação popular, destruição do sistema político e falta de lideranças genuínas – tudo isso me parece sem comparação com outros pleitos).

Já sabemos também que as dificuldades das candidaturas de “novos” indicam uma predominância do “velho” sistema político eleitoral num choque de proporções enormes com o que parece ser o sentimento popular de rejeição “ao que está aí”, começando pelos figurões das classes políticas. Em outras palavras, já podemos antecipar uma renovação menor do que se deseja nas Casas do Congresso, e eleitos bastante distantes do eleitor.

Prosseguindo na linha do tempo, já parece garantido a esta altura que o próximo presidente, ou a próxima presidente, formará um governo de minoria num sistema político no qual o chefe do Executivo é paradoxalmente muito poderoso – e não governa sem o Congresso. Esse homem (mulher) com uma caneta que aponta diretamente mais de 30 mil cargos terá de costurar uma maioria precária diante de uma crise fiscal que já paralisou a máquina (incapaz de se custear) e reduziu a quase nada a capacidade de investimentos, tudo agravado pela voracidade de grupos corporativos e a necessidade de adotar medidas impopulares.

É difícil imaginar que uma parcela imensa da sociedade que nem sequer capta exatamente o significado de “dinheiro público” (boa parte das pessoas acha que o dinheiro é do governo) seja acometida de súbita consciência do que é cidadania (direitos e deveres). É igualmente difícil imaginar que a corrupção, enxergada hoje pela maioria dos brasileiros como o principal problema do País (bastaria limpar os corruptos que tudo “funcionaria”, um perigoso engano), deixe sua posição de destaque nas prioridades do eleitor. Talvez seja substituída pela questão da segurança pública – o medo continuará sendo uma característica importante a influenciar o comportamento das pessoas.

Por último na linha do tempo que traço daqui até os primeiros 100 dias do novo governo, já podemos antecipar a continuidade do regime de insegurança jurídica que parte do próprio STF. O exemplo mais recente é a postura de um dos ministros, que se julga apto a reverter anos de discussão sobre um item isolado da reforma trabalhista, a abolição do esdrúxulo imposto sindical, por ter outra opinião a respeito do que as duas Casas do Legislativo. Como o imponderável é sempre característica do terreno da política, especialmente numa crise, aposto às cegas que a politização da Justiça nos trará mais sobressaltos, além do vigoroso prosseguimento da Lava Jato.

Ficarei grato, dormirei melhor e feliz, se os fatos me desmentirem.

Dilma e o judeu errante

Dilma não é judia e nem foi condenada por seu pecado, como na antiga lenda do judeu errante e, no entanto, parece caminhar sem sossego em busca de um destino dentro de seu próprio partido, o PT. Desde que foi apeada dramaticamente de seu posto, a primeira presidenta do Brasil, escolhida pelo mítico Lula, o primeiro presidente operário, para sucedê-lo no cargo, parece uma sombra que percorre o mundo proclamando sua inocência política. Uma voz, que parece, no entanto, clamar no deserto de seus companheiros de partido, pois agora, a dois passos das eleições em que poderia tentar reconquistar o poder que lhe arrebataram, parece encontrar as portas fechadas.

Até aqueles que viram seu impeachment não como um golpe, mas como um ato constitucional, não conseguem entender a solidão a que parecem estar submetendo Dilma. Pelas notícias publicadas, a ex-presidenta estaria encontrando dificuldades para poder disputar pelo PT até uma eleição para o Senado.


Ela permanece fiel ao discurso de seu partido, de que foi arrancada ilegalmente de seu posto, enquanto continua a defender apaixonadamente a inocência de seu ex-tutor Lula, hoje preso. Existe até quem pergunte por que o PT, que continua defendendo que a saída de Dilma foi um golpe parlamentar injusto e ilegal que deu lugar a um Governo ultraconservador e ilegítimo, não pensa nela como candidata à presidência se Lula for impedido de disputar a eleição. Ela é uma das poucas figuras importantes do partido que ainda não aparece como ré no escândalo da Lava Jato e poderia ter grande apoio eleitoral.

Seria a melhor forma, não poucos o pensam, de o partido mostrar que continua a defender que ela foi ilegalmente arrancada de seu posto e que continua gozando da confiança dos seus. Perguntam que se é verdade, como parece, que Lula será impedido pela lei da Ficha Limpa de ser o candidato do partido e dado que, aparentemente, não há nenhum outro candidato capaz de assumir o legado do popular ex-presidente, porque não substituí-lo por ela, considerada vítima das intrigas da direita.

A solidão de Dilma aparece até nas pesquisas, nas quais seu nome nunca foi colocado como possível candidata novamente à presidência, como foi feito com outros personagens até alheios à política, como o apresentador de televisão Huck, o juiz Moro ou o ex-presidente do STF, Joaquim Barbosa. Teríamos sabido, pelo menos, o que o eleitorado pensa sobre ela e até que ponto estaria disposto a votar nela outra vez para reconquistar a presidência.

Sabe-se que a política não abunda em fidelidades e que, como diz o ditado, “rei morto, rei posto”. Essa dura realidade humana não perdoa nem mesmo as figuras que um dia foram exaltadas com paixão. E aquela solidão de que Dilma sofre hoje, cuja saída do cargo criou grande parte do terremoto político em que hoje o país está envolvido, poderia amanhã ser sentida por Lula em sua carne. Um velho amigo jornalista espanhol me diz: “Juan, a política é assim, cruel. Não se iluda. Sobe aquele que melhor sabe empurrar e o que melhor sabe cavalgar por cima dos caídos”.

No entanto, não será fácil para o PT explicar que se Dilma foi expulsa da presidência ilegalmente, por que não lhe é dada agora a chance de reconquistá-la nas urnas? Ou será verdade que a política não é apenas cruel, mas também desmemoriada? Não estou fazendo a defesa de Dilma e sou daqueles que não consideram o impeachment um golpe contra a legalidade constitucional, mas não por isso deixo de sentir certa inquietude ao ver a ex-presidenta vagando como um judeu errante sem que os seus colegas de partido encontrem um lugar para colocá-la. Para que serviu então tanto barulho, tantas lágrimas, tantos anátemas e tanta dramaticidade com sua saída, cujo fruto foi, em boa parte, a quebra da confiança do país na política?

Juan Arias

Inbtolerância

Quando comecei a trabalhar em jornal, época em que os dinossauros caminhavam felizes sobre a Terra e vocês ainda não eram nascidos, havia censura. Havia departamentos de censura, um conselho superior de censura e um monte de censores para povoá-los e brandir a tesoura: cidadãos que acordavam de manhã cedo, tomavam banho, tomavam café, escovavam os dentes e iam para o escritório para censurar o trabalho alheio. Ganhavam bem para fazer o que o povo faz hoje de graça na internet. Eu não tenho nenhuma saudade daqueles tempos mas, pensando bem, acho que preferia aqueles censores estatutários às hordas linchadoras do Facebook.

Aquela censura era escancarada e despertava o melhor em todos nós, que a desafiávamos escrevendo nas entrelinhas, buscando figuras de retórica e modos de dizer as coisas sem dizer. Enfrentá-la era um desafio cotidiano, uma adrenalina constante. Descobrir as pistas espalhadas pelos jornais em forma de receitas de bolo e previsões do tempo era emocionante, romances e filmes censurados ganhavam o tempero apimentado da proibição.

Havia heroísmo em desafiar a censura, não em exercê-la.

Dona Solange, aquela, que chegou a inspirar música do Leo Jaime, mudou de sobrenome e foi viver no interior, zero orgulho da sua profissão. Os vizinhos, que a consideravam uma senhora reservada porém gentil, jamais desconfiaram do que ela fazia antes de se aposentar.

Os censores de redes sociais, ao contrário, se acham os reis — e rainhas — da cocada preta. Estão convencidxs da grandeza da sua missão, certxs de que lincham por motivos nobres. Seu ódio é puro e benfazejo, e suas vítimas deveriam se sentir gratas pelas lições. Só falam no imperativo:

— Calaboca!

— Leia!

— Estude!

— Aprenda!

— Silencie e respeite!

— Peça desculpas!

— Deixe de se fazer de vítima!

Palavras não tiram pedaço — mas tiram. O corpo sai inteiro de um ataque, mas a alma sai em frangalhos. E aí entra em cena algo muito pior do que a dona Solange: a autocensura. Nos tempos da censura, lutava-se para que opiniões e ideias sobrevivessem; hoje elas são abortadas antes de nascer. Não há glória em desafiar militantes raivosos, não há heroísmo em enfrentar ofensas disparadas por trás da tela.

A internet é um vasto território de absurdos sem resposta e de pensamentos silenciados, porque qualquer pessoa menos beligerante — quero crer a maioria de nós — prefere ficar calada a externar uma opinião que pode eventualmente ser mal interpretada — e será: na internet tudo o que pode (e tudo o que não pode) ser mal interpretado será sempre mal interpretado. Para que despertar as bestas do apocalipse? Melhor levantar e ir tomar um café, dar um telefonema, regar as plantas, passar batido.

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Um dos documentos importantes desse Museu da Intolerância é o texto em que Fabiana Cozza renuncia ao seu papel no musical sobre Dona Ivone Lara, e que acabou dando panos para as mangas até aqui no jornal. Ela foi massacrada por ativistas de movimentos negros por não ser suficientemente escura para o papel, e abre o seu desabafo, dirigido “aos irmãos”, com as suas credenciais genéticas: “Mãe: Maria Ines Cozza dos Santos, branca, Pai: Oswaldo dos Santos, negro, Cor (na certidão de nascimento): parda”.

Fabiana escreveu com sentimento e expôs as suas feridas, dilacerada pelo linchamento sofrido ao comemorar, dias antes, a felicidade com o convite para a produção:

“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar ‘branca’ aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro.”

Ler o que escreveram os inquisidores na sua página é de assustar mesmo, fere e ofende até a quem não tem nada a ver com a história. Não consigo imaginar o quanto aquelas palavras não magoaram Fabiana. Mas renunciar ao papel não pôs fim à violência — agora ela está sendo acusada de ter denunciado a agressividade dos agressores.

“Irmã vírgula, não somos irmãos. E nós pretos vírgula, pq vc não é preta. E pare de colocar os negros como raivosos por exigir que o certo fosse feito. Tinha mais q sair mesmo.”

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Fiquei horrorizada em ver tanta gente se sentindo autorizada a dizer quem o outro é, como o outro é, como o outro pode ou não se sentir. A Arte, enquanto isso, escondida num canto, cobrindo a cabeça de cinzas. Como se Dona Ivone Lara fosse só uma cor, como se o delicado trabalho de representá-la em toda a sua grandeza não envolvesse tanto mais. Fabiana Cozza conheceu Dona Ivone, cantou com ela, foi escolhida pela família para o papel. É negra, mas não é Pantone 321-2 C. Todos a ela.

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Sou branca (Pantone 58-6 C) e desqualificada de saída para entrar nessa discussão.

Mas aí é que está: todos deveríamos poder discutir tudo. Racismo não pode ser discutido só entre pretos ou só entre brancos, como feminismo não pode ser discutido só por mulheres. Ou lutamos pela inclusão de todos, e por todos os lados, ou vamos nos afastar cada vez mais, fechados nas nossas bolhas, ouvidos tapados para o outro, fervendo cada qual na sua ilha de ódio.