terça-feira, 17 de setembro de 2019

As bombas subsidiadas do Brasil na guerra saudita

Drones bombardearam uma refinaria da Arábia Saudita no sábado. Perderam-se 5% do suprimento mundial de petróleo. Não é pouca coisa. Essa ruptura no abastecimento de 5,7 milhões de barris por dia é mais do que o dobro daquilo que o Brasil consome em óleo a cada 24 horas.

Os brasileiros começarão a sentir no bolso os efeitos desse conflito entre Arábia Saudita, Irã e Iêmen. Preços da gasolina, diesel e gás ainda podem subir muito, se demorar a recuperar a produção e se os sauditas não eliminarem as dúvidas sobre defesa de uma infraestrutura vital ao abastecimento mundial de energia.

O impacto no Brasil tende a crescer no ritmo da imprevidência governamental. Depois de 34 semanas gastando energia em negar a ciência, impor censura, reprimir a sexualidade de alguns e armar todos, o governo Bolsonaro ainda não sabe se cria um fundo para estabilização de preços dos derivados de petróleo. Também, não resolveu o impasse sobre preços do diesel — embora seja recente a memória do caos num país onde 60% das cargas fluem por rodovias.

É ilusão achar que o Brasil está a 11 mil quilômetros dessa guerra. Os brasileiros contribuem do próprio bolso com a matança no Iêmen.

Civis mortos no Iêmen com subsídio dos brasileiros
Desde o governo Dilma Rousseff, a sociedade paga, via incentivos fiscais, para uma empresa, a Avibras, fornecer aos sauditas sistemas de grande alcance (200 km) com munição de fragmentação— projéteis que se abrem no ar e descarregam bombas que, se não explodem, ficam enterradas como minas ativas.

Bombas brasileiras de fragmentação têm sido usadas contra civis no Iêmen, relatam ONGs integrantes da Cluster Munition Coalition.

Elas simbolizam uma proeza do lobby da indústria bélica, que uniu Dilma, Temer e Bolsonaro na concessão de incentivos e na rejeição a acordos para banir esse armamento.

Metade das vendas Avibras vai para os sauditas. São US$ 60 milhões por ano. Em outubro, Bolsonaro deve visitar em Riad o ditador “MbS” (o nome completo tem 18 palavras), reputado como dos mais sanguinários do Oriente Médio. Na bagagem levará a nova versão do sistema da Avibras, o Astros 2020.

Não há mais espaço para amadores

A redução de despesas está proibida pelo STF. O mesmo STF que abriu o ano obrigando o país a gastar mais 16,32% com o funcionalismo com quem já gastava tudo. É inconstitucional impor decência aos meritíssimos que tomam R$ 727 mil ao favelão nacional para reformar piscinas e churrascarias climatizadas de suas mansões ou que se queixam do “miserê” de R$ 24 mil por mês fora mordomias e “auxílios” valendo três ou quatro vezes isso. E o país está tão arrombado que só fica sabendo desses escrachos quando os próprios escrachados se denunciam. Senão passa batido. Ninguém cobra. Ninguém investiga. Ninguém denuncia.

Já o aumento de impostos “está proibido pelo Bolsonaro”. A recriação da CPMF também. Ela tinha mesmo cara de desespero. Nada a ver com liberalismo ou Escola de Chicago. Mas é o único expediente capaz de jogar dinheiro a tempo no caixa de um governo que “já não tem nem para pagar rancho de soldado” (embora tenha pra pagar cavalo de salto de general). Fora daí cai-se numa reforma tributária real que implica desfazer um nó cego por metro pisando os calos de prefeitos, governadores e mamadores de tetas em geral. Falam nela ha 130 anos mas ninguém conseguiu nem começar…

O Brasil está atolado na ilusão de que poderá fazer as reformas todas de que necessita para deixar de ser um país tão indecentemente arcaico e injusto antes de aderir à democracia.

Não vai!


A ordem politica vigente é que determina em favor de quem são feitas reformas. Enquanto o povo continuar sendo a Geni da pseudo-democracia brasileira em cujo lombo todo mundo pode montar como e quando quiser impunemente; enquanto permanecer essa condição de invulnerabilidade absoluta dos governantes e funcionários públicos desde o momento em que o eleitor, que só participa do lance final, chancela com seu voto obrigatório as tramoias lá deles para ver quem terá o direito à primeira mordida na massa dos explorados pelos próximos quatro anos, não sairemos desse ramerrão dos remendos feitas para manter o doente vivo e explorável por mais tempo e não para curá-lo. E se alguém conseguir algum avanço na marra ou na manha, não demora nada — é juiz na cara de pau, é deputado montado em jabuti, é presidente com filho torto — tudo se desmancha e a bandidaiada volta rindo pra rua.

Administrativa, tributária, econômica, penal, da segurança pública, nenhuma reforma será feita para resolver os problemas do povo antes que façamos uma reforma política que ponha o povo no poder, armado para decidir a qualquer momento quem permanece ou não com mandato, quem mantem ou não o cargo público, quais as leis que ele se dispõe a seguir e que funcionários da justiça estão ou não empenhados em faze-las cumprir.

É a mesma lógica do desarmamento. É de um óbvio ululante que é impossível desarmar 100% das pessoas e, muito menos ainda, desarmar a bandidagem com uma simples canetada. Nos “países desarmados” no tapetão, como o Brasil que o foi contra a ordem expressa do seu povo que disse “NÃO” ao desarmamento no referendo de 23 de outubro de 2005 por maioria de 63,94%, só serão desarmados de fato os cidadãos obedientes à lei que passarão a viver totalmente à mercê da bandidagem armada. É esse o fato que os 60 e tantos mil cadáveres de brasileiros assassinados clamam ano após ano aos céus. Mas se todo mundo estivesse ou pudesse estar armado a bandidagem é que passaria a ter de se cuidar antes de abordar alguém com más intenções. Não precisa sair dando tiro. É como a bomba atômica. Basta todo mundo saber que você tem para que comecem a te respeitar.

Na política é a mesmíssima coisa. Se o eleitor permanecesse “armado” antes e depois de cada eleição, apto a “atirar” a qualquer momento para retomar mandatos, demitir relapsos e corruptos, recusar leis de araque e mandar as suas próprias aos legislativos, os políticos e funcionários públicos é que teriam de pensar 10 vezes antes de agir movidos por interesses escusos.

É um raciocínio límpido, claro e translúcido como a própria luz do sol. E, para além da sua lógica manifesta, existe o fato de que todo o mundo que funciona funciona assim. É o argumento irrefutável do resultado. Menos para o “Brasil com voz”. Lá todo mundo faz questão de não ver.

O brasileiro foi levado desde lá de trás a acreditar que uma boa educação formal é o pre-requisito para a instalação de um sistema democrático e que, sendo este um país deseducado, democracia não é para ele. A verdade histórica é o contrário. A democracia é que é o pré-requisito para se conseguir forçar os políticos a entregar uma boa educação que, por sua vez, é o pressuposto de uma economia próspera e competitiva. Pode ter havido meia dúzia de suíços alfabetizados em 1290 quando inventaram a Confederação lá deles. E os americanos de 1789, assim como os de hoje, não se pareciam nada, como média, com James Madison, Alexander Hamilton e John Jay. A sorte é fundamental para que, na “hora H”, em vez da nata do Iluminismo, não lhe caia uma corte corrupta sobre a cabeça como nos aconteceu em 1808. Mas na Era da Informação a sorte pesa bem menos. Hoje pode-se saber e pode-se copiar o que dá certo como tem feito todo mundo que passou a dar certo.

O que não ha mais mesmo é espaço para amadores. Os inimigos da democracia são profissionais. Será preciso percorrer o caminho inteiro como eles vêm fazendo desde sempre. Apurar e sintetizar metódica e profissionalmente as ideias e informações fundamentais, mapear cientificamente o labirinto legislativo e a tranqueira institucional que se vai atravessar, estruturar redes nacionais como as que se ensaiou a partir de 2013 para semear sistematicamente a boa nova, concentrar absolutamente o foco e partir para o ataque sabendo exatamente por onde começar (distrital puro com recall mais despartidarização só das eleições municipais, por exemplo) porque a barreira é velhíssima e enorme e só poderá sofrer o furo que acabará por derrubá-la se todos os tiros se concentrarem exatamente no mesmo ponto.

Pensamento do Dia


História mal contada

O Brasil empregou muito dinheiro em busca de ossadas. De 1.047, localizou apenas duas. Gastou 500.000 dólares. Dinheiro que poderia ter ido para saúde e educação. Talvez essas pesquisas de DNA pudessem ter sido estruturadas na nossa Polícia Federal e o custo seria bem menor
Marco Vinícius Carvalho, presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos do governo Jair Bolsonaro
*O material de banco de dados com amostras de sangue de familiares foram enviados para Holanda e Bósnia, países com tecnologia apropriada

Pacto sinistro entre os três Poderes é a desmoralização da democracia

Se ainda estivesse na ativa, o genial diretor Alfred Hitchcock certamente pensaria em processar as autoridades e políticos brasileiros, por terem bolado um pacto ainda mais sinistro do que o filmado por ele. No entanto, por incrível que pareça, no Brasil ainda há quem duvide da existência desse pacto entre os três poderes, embora todos os sinais da existência sejam mais do que claros. O Congresso, por exemplo, está fazendo a parte dele nesse complô contra a Lava Jato e a favor da “descriminalização” da política, pois já aprovou a Lei do Abuso de Autoridade, emparedou o Pacote Anticrime do ministro Sérgio Moro e está ressuscitando o Caixa Dois e outras excrescências legislativas.

Correndo na mesma raia, o Supremo entope a Justiça Eleitoral de processos criminais, sabendo que tudo vai prescrever; retira o poder de fiscalização do antigo Coaf, da Receita Federal e do Banco do Brasil; e promove a blindagem de importantes investigados tipo Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, Gilmar Mendes, Dias Toffoli e muitos outros que se emaranharam no pente fino das declarações de renda e patrimônio.

E o presidente Jair Bolsonaro também colabora, ao fazer cara de paisagem, fingindo que não sabe de nada, dizendo que a blindagem do filho Flávio e de Queiroz significa apenas amplo direito de defesa e alegando que o corte das verbas da Polícia Federal foi mera coincidência.


Se não existisse o entendimento sinistro entre os Três Poderes, que é uma situação inimaginável em regime democrático, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, já se apressaria a colocar em julgamento a decisão que tomou solitariamente, em pleno recesso do Judiciário em julho, quando não somente mandou suspender o inquérito de Flávio Bolsonaro e Fabricio Queiroz, como também resolveu estender o ato a todos os investigados pela Receita, incluindo ele próprio, o amigo Gilmar Mendes e as veneradas esposas.

A prioridade a esse julgamento da blindagem geral seria obrigatória em qualquer país democrático. No Brasil do Pacto Sinistro, porém, vai ficar para as calendas, como se dizia antigamente. A prioridade de Toffoli é justamente ao contrário – quer julgar primeiro os recursos para cancelar as condenações da Lava Jato, soltar o ex-presidente Lula da Silva, junto com os outros políticos e empresários que cumprem pena, anular os inquéritos em curso e evitar a prisão de corruptos que ainda estão temporariamente fora da cadeia, como Michel Temer, Aécio Neves, Moreira Franco, Eliseu Padilha, Romero Jucá e muitos outros mais.

Este conluio entre os Três Poderes é uma novidade em país democrático, fruto do lobby mais bem estruturado que já se montou no Brasil, e não falta dinheiro para comprar consciências, inclusive na imprensa escrita, falada e televisada, como se dizia antigamente. Mas os militares que infestam o governo nada vêem e também fazem cara de paisagem, satisfeitos com a situação política, que lhes garante duplicidade de salários, altas mordomias, a sensação de poder e… o cartão corporativo, é claro.

Em outubro, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, deve colocar em pauta julgamentos do interesse dos criminosos, como os recursos que visam a anular as condenações do ex-juiz Sérgio Moro, questionam a constitucionalidade das prisões após condenação em segunda instância e discutem a validade da decisão da Segunda Turma que cancelou a sentença imposta por Moro a Aldemir Bendine, ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, aquele que “patrocinava “ a carreira artística da amante e alugava jatinho para lua-de-mel em Buenos Aires, tudo pago com dinheiro do Banco do Brasil, é claro.

A fábrica de inimigo de Bolsonaro

Temos aqui um post-padrão de Jair Carlos Bolsonaro – e que é a expressão sintética de alguns pilares fundamentais da mentalidade bolsonarista. Vamos, pois, examinar – destrinchar – a publicação. Creia, leitor: há uma longa história – ideias, portanto – a alicerçar a coisa.
“Enquanto lutamos entre nós o inimigo se fortalece.” Esta é uma construção típica do bolsonarismo, obra da forja artificial de crises e inimigos – a fábrica de teorias conspirativas – que alimenta a estrutura miliciana digital de apoio ao fenômeno reacionário do bolsonarismo. Está contida naquela pregação maior – sem a qual Jair Bolsonaro não seria presidente – que investe na tensão constante, na ameaça permanente (o inimigo sempre à espreita), que radicalizou a polarização a ponto mesmo de estabelecer um “nós contra eles” total, presente em todas as brechas e arestas do convívio social. Um nova etapa no processo de esgarçamento do tecido social que materializa a depressão política profunda em que vamos metidos.

Segundo a fé bolsonarista, haveria uma luta maior, contra aqueles – concentrados no establishment, Congresso, STF e imprensa neste balaio – que operam para impedir que a revolução purificadora cavalgada por Bolsonaro prospere. Por isso, o presidente pede – já falou a respeito com todas as letras – unidade; que seus apoiadores lhe deem um voto de confiança (eterno). Que não pelejem entre si. Que não – nem sequer timidamente – o critiquem (ou serão traidores, caçados pelos milicianos digitais). Refere-se, por exemplo, à indicação do novo procurador-geral da República, que estremeceu o chão do bolsonarismo, aquele que é em boa parte assentado sobre o fetiche do combate à corrupção como o maior problema do Brasil. Enquanto se perde tempo com desconfianças internas, atenção!, o inimigo se fortalece – eis o alarme disparado pelo bolsonarismo.


“Não temos como agradar a todos, vasculham minha vida e de minha família desde 1988, quando me elegi vereador.” Outro recorte de abordagem recorrente no discurso bolsonarista. Bolsonaro pode se comunicar com muitos, a depender das circunstâncias, como ocorreu na eleição de 2018, em que – dada a força do antilulopetismo – alcançou milhões e preencheu o campo do centro político; mas fala (no sentido de se dirigir) para poucos, investindo na polarização, ciente de que ocupa posição privilegiada: sentado na cadeira de presidente, senhor do peso da caneta do Executivo, sabe que uma base fiel de 15%, talvez 20%, do eleitorado é baita ponto de partida para sustentá-lo como candidato muito competitivo – por que não favorito? – a 2022.

Pesquisas eleitorais que indicam queda de popularidade, a rigor, pouco lhe importam. Bolsonaro não tem – e sabe que não tem – o perfil de candidato vencedor em primeiro turno. Não é um agregador. Ele precisa da cisão – de ganchos que deem materialidade aos extremos. Precisa de Lula vivo, de Lula ativo, de Lula solto. Precisa de gatilhos que emprestem verossimilhança à radicalização. Na disputa presidencial argentina, por exemplo, quem realmente acredita que ele torce por Macri, se será a vitória do kirchenerismo a lhe dar a narrativa alarmante dos riscos de retrocesso à esquerda na América do Sul?

Não se trata, pois, de não ter como agradar a todos. Mas de não querer – deliberadamente – fazê-lo. Ele chegou até aqui – com sucesso – dividindo, rachando. Não agradar a todos significa agradar aos seus. Bolsonaro precisa cultivar seu nicho eleitoral tanto quanto multiplicar inimigos e ameaças. É uma engrenagem que se retroalimenta. Nada mais óbvio do que lubrificar esse motor com a vitimização de perseguido – pobre vida vasculhada – há trinta anos.

“Nossa inimiga: parte da GRANDE IMPRENSA. Ela não nos deixará em paz. Se acreditarmos nela será o fim de todos.” Manifestação exemplar de ordem unida – de convocação. Não interessa se em modalidade infantil. Não interessa. É o presidente da República quem chama, quem aponta. Não é pouca coisa. O uso do “nossa”, abrindo o parágrafo, faz a diferença. O inimigo não é apenas de Bolsonaro ou da corte governante, mas também dos que estão com ele nas ruas, dos seus fiéis. É investimento tribal; uma aposta em acolher – um canto que mui fácil e especialmente atrai os ressentidos, a própria carne do bolsonarismo.

Vê-se, neste manifesto, o presidente – em desabrido exercício paternalista – exortar aos seus como se disciplinasse os filhotes. Trata-se de evidente movimento limitador de existências individuais. O presidente fala ao gado; manada já longamente testada. Basta tocar o berrante. Indicar o norte. Funcionou na campanha, e a campanha nunca acabou – o bolsonarismo, sabe-se, consiste em campanha infinita. Está dado. O inimigo é este – e acabou. É guerra. Não há tempo para pensar. Que se avance. Não haverá paz.

Claro que a grande imprensa seria a inimiga. Qual a novidade? Sempre foi – assim como será toda a instituição, de natureza autônoma, que não se submeter ao controle do líder carismático. Isso serve, por exemplo, para a Polícia Federal.

Imprensa equivale a fazer circular informação livremente. Desqualificar a imprensa equivale a desacreditar a informação – um empreendimento bolsonarista tocado pessoalmente pelo presidente: este segundo o qual quem crê no jornalismo decreta o próprio fim e dos demais; de todos. E isto vindo de um presidente que tem a pretensão de se noticiar diretamente, sem intermediários. Isto vindo de um presidente que desinforma como método; que – é preciso dizer – mente como estratégia.
Carlos Andreazza

Sob o signo de Jano

O mito romano de Jano (do latim Janus ou Ianus) era representado com duas cabeças, simbolizando os términos e os começos, o passado e o futuro, o dualismo relativo de todas as coisas. No seu templo, as portas principais ficavam abertas em tempos de guerra e eram fechadas durante a paz. Era o deus tutelar de todos os começos, patrono de todos os finais. O principal monumento em sua glória se encontra em Roma, no Museu do Vaticano: o busto Ianus Geminus. Não à toa, Jano acabou escolhido para representar o primeiro mês do ano do calendário romano (janeiro, do latim januarius), pelo imperador Numa Pompílio (715-672 a.C.).

Sua representação de caras opostas, uma olha para frente e outra olha para trás, pode ser entendida como se examinasse as questões por todos os seus aspectos. O filósofo e sociólogo alemão Jüngen Habermas, um dos expoentes da famosa Escola de Frankfurt e da tradição da teoria crítica e do pragmatismo, em novembro de 1984, numa palestra no parlamento espanhol, invocou a imagem de Jano para falar sobre o caráter inacabado da modernidade. Habermas dedicou a vida ao estudo da democracia, especialmente por meio de suas teorias do agir comunicativo, da política deliberativa e da esfera pública.

Àquela época, estudava a crise do Estado de bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas, tema que abordou no seu discurso, intitulado a Nova obscuridade, cujas notas estão reunidas numa coletânea de textos publicada com o mesmo nome no Brasil, pela Editora Unesp (2011). Passaram-se quase 35 anos, desde então, suas previsões se consolidaram em muitos aspectos. De fato, houve uma mudança de paradigma da sociedade do trabalho para a sociedade da comunicação. Essa mudança explica muito do que está acontecendo hoje no Brasil, principalmente na política.


Nas utopias da ordem, entre as quais estão o velho “socialismo real” comunista e o Estado de bem-estar social-democrata, as dimensões de felicidade e da emancipação se confluíam com aquelas da intensificação do poder e da produção de riqueza social. Segundo Habermas, os projetos de forma de vida racionais entravam em uma simbiose ilusória com a dominação racional da natureza e com a mobilização das energias sociais: “A razão instrumental desencadeada em forças produtivas e a razão funcionalista desdobrando-se em capacidades de organização e planejamento deveriam abrir caminho para a vida humana digna, igualitária e ao mesmo tempo libertária”. Essa foi a grande ilusão da sociedade do trabalho.

A esquerda brasileira sempre pautou a atuação na centralidade do trabalho. De certa forma, a eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a chegada do PT ao poder, erroneamente, simbolizaram o coroamento dessa concepção, mas ela já estava ultrapassada pela sociedade da comunicação e a economia do conhecimento. Além disso, o transformismo e a degeneração no poder deixaram de lado essas utopias. A esquerda que não se corrompeu dispõe de ferramentas teóricas para fazer esse diagnóstico, mas não consegue, porque é prisioneira de velhos dogmas em relação à antiga sociedade industrial e ao valor do trabalho na geração de riquezas.

Não foi à toa que se viu surpreendida nas últimas eleições pelo surgimento de novos atores políticos, com ideias diametralmente opostas, alguns dos quais até obscurantistas e reacionários, mas que souberam ocupar o vácuo político criado pela ultrapassagem da sociedade do trabalho e suas formas de representação (sindicatos, partidos operários etc.) e operar no âmbito da nova sociedade da comunicação, numa disputa que se assemelha muito à guerra entre os taxistas e os motoristas do Uber (perdão pela simplória comparação). A eleição do presidente Jair Bolsonaro não deixa de ser, no plano da disputa pelo poder, um fenômeno associado a essas mudanças.

A despedida dos conteúdos utópicos da sociedade do trabalho, porém, não fecha a dimensão utópica da consciência histórica e da confrontação política, mas exige uma mudança de eixo: a centralidade está na defesa da democracia. Nesse aspecto, é sempre bom lembrar a crítica de Hannah Arendt às ideias centradas no trabalho, porque levaram e ainda levam a soluções autoritárias para a sociedade. Segundo ela, a condição humana está relacionada a três atividades fundamentais que caracterizam a vida: “labor” (o processo biológico do corpo humano), “trabalho” (a criação de objetos e transformação da natureza) e “ação” (a única atividade que independe da medição da matéria e se correlaciona com a condição humana da pluralidade). O que determina a condição humana é o agir e pensar politicamente, daí a importância vital do espaço público e das liberdades.

Eis uma chave para olhar o passado e o futuro, como Jano. É preciso defender uma sociedade na qual a comunicação cotidiana e o discurso da vontade possibilitem uma vida melhor e mais segura, num ambiente de plena liberdade, no qual todos possam dar sua efetiva contribuição. O “lugar de fala” não basta como conteúdo utópico da sociedade da comunicação. É por meio da ação que os homens são capazes de demonstrar quem são.