quinta-feira, 30 de outubro de 2025
Cláudio Castro assume sua necropolítica com o conceito de 'narcoterrorismo'
O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, rompeu de forma explícita com os paradigmas de segurança pública estabelecidos pela Constituição de 1988. Ao comentar a Operação Contenção, deflagrada no Complexo do Alemão e da Penha — a mais letal da história do estado, com 121 mortos —, Castro sintetizou os resultados do conceito de narcoterrorismo: “Temos muita tranquilidade de defendermos tudo que fizemos ontem. Queria me solidarizar com as famílias dos quatro guerreiros que deram a vida para salvar a população. De vítima, ontem, lá, só tivemos esses policiais.”
A frase é mais que uma defesa corporativa. Ao tratar os mortos como “narcoterroristas”, Castro inaugura no Brasil uma retórica que substitui a segurança pública pela lógica da guerra interna. Em nome da “defesa da população”, o Estado reivindica o poder de decidir quais vidas são protegidas e quais podem ser eliminadas. A operação de “cerco e aniquilamento”, do ponto de vista militar, foi bem-sucedida. Mas não desarticula o tráfico de drogas nem recupera o território, porque a violência volta à “normalidade” e, geralmente, as milícias ocupam o espaço dos traficantes no controle da economia informal.
O uso do termo “narcoterrorista” desloca o problema do crime do âmbito penal para campo da segurança nacional. É uma palavra importada da doutrina norte-americana da “narcoguerra”, usada na Colômbia e no México para justificar o emprego das Forças Armadas e a suspensão de garantias legais. Quando Castro adota esse enquadramento, ele rompe a fronteira entre direito e exceção. A favela deixa de ser território civil e passa a ser tratada como teatro de operações militares. A consequência imediata é a militarização ampliada da política de segurança, legitimando mortes em massa e esvaziando o controle judicial.
O conceito de “narcoterrorismo” não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Seu uso político é uma manobra simbólica, que transforma o criminoso em inimigo absoluto e o Estado em autoridade soberana sobre a vida e a morte. Obviamente, é uma ruptura de acordo com o ideário da extrema-direita brasileira, que Cláudio Castro (PL) representa. Trata-se, como aponta o sociólogo Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de uma forma de necropolítica: “O governo da morte como instrumento de poder”.
Segundo Bocayuva, conceitualmente, a necropolítica é o regime em que “o medo e a crueldade se tornam dispositivos de governo”. No caso do Rio, o “narcoterrorismo” fornece a gramática perfeita para que o governo adote a violência extrema nos confrontos com os traficantes, num contexto de guerra aberta na qual não há “suspeitos” nem “cidadãos em conflito com a lei”: são inimigos mesmo, que precisam ser fisicamente eliminados, em confrontos diretos e, muitas vezes, execuções sumárias. Com amplo apoio popular, é uma forma de combate que elimina qualquer possibilidade de direito.
O balanço da Defensoria Pública do Rio de Janeiro não deixa dúvida do êxito da operação, do ponto de vista da letalidade: 117 civis mortos para quatro agentes do Estado. Para o governador, só há quatro vítimas — os policiais. As outras mortes são tratadas como estatísticas colaterais, sem direitos a serem preservados. É a tradução literal da necropolítica: o Estado não apenas mata, mas escolhe quem merece ser chorado.
Bocayuva chama isso de “cartografia da morte” — uma geografia social em que o território periférico e o corpo negro são administrados como zonas de exceção. A militarização urbana, a naturalização da crueldade e a ausência de políticas de memória e reparação formam o tripé desse poder necropolítico.
Enquanto Castro exibia orgulho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reagiu com perplexidade e indignação. Em viagem oficial ao Sudeste Asiático, foi informado da operação apenas ao retornar ao Brasil. Reuniu-se de emergência com seus ministros, “estarrecido” com o número de mortos e com o fato de o governo federal não ter sido avisado. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi enviado ao Rio para acompanhar a crise e cobrar explicações.
O contraste entre o discurso de Castro e a reação de Lula simboliza duas concepções opostas de Estado: uma que se ancora na lógica da exceção, outra na Constituição de 1988. Quando o governador diz “ou soma no combate à criminalidade ou suma”, ele não apenas desafia o governo federal — nega a própria ideia de política como espaço de mediação, substituindo o diálogo pela força. Por óbvio, não faz isso por acaso.
Há uma disputa no imaginário da sociedade pela bandeira de ordem, que o governo federal tenta recuperar com a PEC do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e a nova Lei das Facções, que endurece as penas para os chefões do tráfico, ambas encalhadas na Câmara por pressão dos governadores de oposição, entre os quais Castro.
Na teoria de Achille Mbembe, autor do conceito, a necropolítica define o poder soberano como aquele que decide “quem deve morrer e quem pode viver”. No Rio, Cláudio Castro assumiu essa prerrogativa de modo explícito, revestido de legitimidade moral e linguagem popular. O “narcoterrorista” é um ser fora da lei, cuja eliminação é um ato heroico e patriótico, onde as favelas e comunidades periféricas se confundem com o campo de batalha. É o mesmo mecanismo simbólico que sustentou a guerra suja na Colômbia e a guerra perdida no México.
A frase é mais que uma defesa corporativa. Ao tratar os mortos como “narcoterroristas”, Castro inaugura no Brasil uma retórica que substitui a segurança pública pela lógica da guerra interna. Em nome da “defesa da população”, o Estado reivindica o poder de decidir quais vidas são protegidas e quais podem ser eliminadas. A operação de “cerco e aniquilamento”, do ponto de vista militar, foi bem-sucedida. Mas não desarticula o tráfico de drogas nem recupera o território, porque a violência volta à “normalidade” e, geralmente, as milícias ocupam o espaço dos traficantes no controle da economia informal.
O uso do termo “narcoterrorista” desloca o problema do crime do âmbito penal para campo da segurança nacional. É uma palavra importada da doutrina norte-americana da “narcoguerra”, usada na Colômbia e no México para justificar o emprego das Forças Armadas e a suspensão de garantias legais. Quando Castro adota esse enquadramento, ele rompe a fronteira entre direito e exceção. A favela deixa de ser território civil e passa a ser tratada como teatro de operações militares. A consequência imediata é a militarização ampliada da política de segurança, legitimando mortes em massa e esvaziando o controle judicial.
O conceito de “narcoterrorismo” não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Seu uso político é uma manobra simbólica, que transforma o criminoso em inimigo absoluto e o Estado em autoridade soberana sobre a vida e a morte. Obviamente, é uma ruptura de acordo com o ideário da extrema-direita brasileira, que Cláudio Castro (PL) representa. Trata-se, como aponta o sociólogo Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Cunha, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), de uma forma de necropolítica: “O governo da morte como instrumento de poder”.
Segundo Bocayuva, conceitualmente, a necropolítica é o regime em que “o medo e a crueldade se tornam dispositivos de governo”. No caso do Rio, o “narcoterrorismo” fornece a gramática perfeita para que o governo adote a violência extrema nos confrontos com os traficantes, num contexto de guerra aberta na qual não há “suspeitos” nem “cidadãos em conflito com a lei”: são inimigos mesmo, que precisam ser fisicamente eliminados, em confrontos diretos e, muitas vezes, execuções sumárias. Com amplo apoio popular, é uma forma de combate que elimina qualquer possibilidade de direito.
O balanço da Defensoria Pública do Rio de Janeiro não deixa dúvida do êxito da operação, do ponto de vista da letalidade: 117 civis mortos para quatro agentes do Estado. Para o governador, só há quatro vítimas — os policiais. As outras mortes são tratadas como estatísticas colaterais, sem direitos a serem preservados. É a tradução literal da necropolítica: o Estado não apenas mata, mas escolhe quem merece ser chorado.
Bocayuva chama isso de “cartografia da morte” — uma geografia social em que o território periférico e o corpo negro são administrados como zonas de exceção. A militarização urbana, a naturalização da crueldade e a ausência de políticas de memória e reparação formam o tripé desse poder necropolítico.
Enquanto Castro exibia orgulho, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reagiu com perplexidade e indignação. Em viagem oficial ao Sudeste Asiático, foi informado da operação apenas ao retornar ao Brasil. Reuniu-se de emergência com seus ministros, “estarrecido” com o número de mortos e com o fato de o governo federal não ter sido avisado. O ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, foi enviado ao Rio para acompanhar a crise e cobrar explicações.
O contraste entre o discurso de Castro e a reação de Lula simboliza duas concepções opostas de Estado: uma que se ancora na lógica da exceção, outra na Constituição de 1988. Quando o governador diz “ou soma no combate à criminalidade ou suma”, ele não apenas desafia o governo federal — nega a própria ideia de política como espaço de mediação, substituindo o diálogo pela força. Por óbvio, não faz isso por acaso.
Há uma disputa no imaginário da sociedade pela bandeira de ordem, que o governo federal tenta recuperar com a PEC do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) e a nova Lei das Facções, que endurece as penas para os chefões do tráfico, ambas encalhadas na Câmara por pressão dos governadores de oposição, entre os quais Castro.
Na teoria de Achille Mbembe, autor do conceito, a necropolítica define o poder soberano como aquele que decide “quem deve morrer e quem pode viver”. No Rio, Cláudio Castro assumiu essa prerrogativa de modo explícito, revestido de legitimidade moral e linguagem popular. O “narcoterrorista” é um ser fora da lei, cuja eliminação é um ato heroico e patriótico, onde as favelas e comunidades periféricas se confundem com o campo de batalha. É o mesmo mecanismo simbólico que sustentou a guerra suja na Colômbia e a guerra perdida no México.
Letalidades e atrocidades
“A ditadura segue presente nas periferias.” A frase estava no pequeno cartaz que me fez companhia na Catedral da Sé, na noite de sábado, 25 de outubro, durante o culto inter-religioso em memória dos 50 anos do assassinato de Vladimir Herzog. Era um cartaz em papel bem firme, plastificado, quase do tamanho de uma página de jornal como este aqui. De um lado, trazia a foto de Manoel Fiel Filho, o metalúrgico alagoano que foi morto em 1976 pela repressão política da ditadura. Do outro lado, as palavras certeiras sobre a presença destrutiva da violência policial nos bairros mais pobres das metrópoles brasileiras.
Eu levantei o retrato muitas vezes durante o culto. Sempre que um discurso lembrava os desaparecidos ou um dos que tombaram sob tortura, como o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, eu o erguia. Dezenas de outras pessoas presentes, com pôsteres estampados com outros rostos, também elevavam os seus. O efeito cênico se traduzia em comunicação didática e expressão política: a História existe quando dela não nos esquecemos – e, se dela não nos esquecemos, sabemos tecer o presente. Fora disso, o que resta é a selva. A memória dos crimes perpetrados pelo arbítrio que varreu o País há 50 anos nos ajuda a vencer aqueles que querem reeditá-lo. Por isso dizemos: ditadura, nunca mais.
O problema é que persistem entre nós, até hoje, resquícios da violência de Estado. Voltemos os olhos na direção das periferias.
Anteontem, na terça-feira, a chamada “megaoperação” policial que varreu os complexos do Alemão e da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, a pretexto de combater as atividades criminosas do Comando Vermelho, deixou um saldo tenebroso. Na noite de terça, a contagem oficial chegava a 64 mortes. Quatro das vítimas eram policiais em serviço. Ontem, quando fechei este artigo, o cômputo tinha dobrado, batendo na casa dos 128. Diante da tragédia em progressão, o jornalista Jamil Chade observou: no mesmo dia, morreram em Gaza 104 pessoas.
Todos esses óbitos são inaceitáveis, sob qualquer aspecto, mas a cifra carioca, neste momento, estarrece mais. O Rio é uma cidade em paz, ao menos em tese. No entanto, quem mora em algumas comunidades vive sob permanente estado de terror. Não há outra palavra: estado de terror. Pior ainda, um estado de terror cujo pavio pode ser aceso pela autoridade pública. Pensemos um pouco sobre o que aconteceu na terça-feira. A fúria dos infernos só desabou sobre o chão, daquele jeito, porque as tropas do governo do Estado, com sua movimentação estabanada e sua descoordenação estapafúrdia, precipitaram o caos. As mortes foram causadas diretamente pelos agentes da lei.
Como interpretar o que houve? O que se passa na cabeça dos governantes? Será que não levam em conta as pessoas que moram naquilo que elas tomam como seu teatro de guerra eleitoreira? A autoridade não pensa na segurança de sua gente quando despeja seus soldados espetaculosos e ineficientes sobre as ruelas?
É a inversão total: no Rio de Janeiro dos nossos dias, a farda e os coturnos deflagram o morticínio, em vez de impedi-lo. A frase do cartaz que eu segurava foi, uma vez mais, comprovada pelos fatos: nas periferias, o terror é a lei.
Mas não só nas periferias. Se é assim nas periferias, é assim necessariamente na cidade inteira. É assim não só porque as aulas em toda parte tiveram de ser interrompidas, não só porque o comércio foi fechado e as igrejas baixaram os seus portões de ferro. É assim não só porque uma bala perdida alcança corpos além das fronteiras de classe. É assim, também e principalmente, porque ninguém está a salvo na metrópole se as maiorias podem ser fuziladas a qualquer momento.
Até quando vamos sustentar a ilusão macabra de que um país pode se dividir em dois regimes sem se perder de si mesmo? Ou o Brasil é um só, com direitos iguais para todo mundo, ou não será Brasil nenhum. Ou paramos com esta doença de acreditar que os direitos dos de cima têm precedência sobre os direitos dos de baixo, ou nunca chegaremos a um Estado democrático.
Onde o poder público descuida da integridade física dos mais pobres, o regime democrático não passa de uma fachada de papelão esburacada por tiros, chamuscada por pólvora queimada e borrifada de sangue. Onde o governante despreza a vida de sua gente, o que existe é um antipoder público ou um poder antipúblico: uma extensão descarada do crime, não mais uma construção do espírito.
Repito o número: 128 mortos. Na conta estão os que não tiveram direito a julgamento e os inocentes que iam trabalhar, que passeavam na calçada, que queriam comprar um cigarro. No território onde faleceram não há democracia.
A repercussão na imprensa internacional é a pior possível. Ainda bem. A indignação do mundo, nesta hora, só nos ajuda. Este governo que chacina seu povo, esfacela os fundamentos da cultura democrática e reforça o império da violência ditatorial, este governo que se comporta como um bando de extermínio terá de responder por seus atos. Enquanto isso, a lógica da ditadura marca presença.
Eu levantei o retrato muitas vezes durante o culto. Sempre que um discurso lembrava os desaparecidos ou um dos que tombaram sob tortura, como o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, eu o erguia. Dezenas de outras pessoas presentes, com pôsteres estampados com outros rostos, também elevavam os seus. O efeito cênico se traduzia em comunicação didática e expressão política: a História existe quando dela não nos esquecemos – e, se dela não nos esquecemos, sabemos tecer o presente. Fora disso, o que resta é a selva. A memória dos crimes perpetrados pelo arbítrio que varreu o País há 50 anos nos ajuda a vencer aqueles que querem reeditá-lo. Por isso dizemos: ditadura, nunca mais.
O problema é que persistem entre nós, até hoje, resquícios da violência de Estado. Voltemos os olhos na direção das periferias.
Anteontem, na terça-feira, a chamada “megaoperação” policial que varreu os complexos do Alemão e da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, a pretexto de combater as atividades criminosas do Comando Vermelho, deixou um saldo tenebroso. Na noite de terça, a contagem oficial chegava a 64 mortes. Quatro das vítimas eram policiais em serviço. Ontem, quando fechei este artigo, o cômputo tinha dobrado, batendo na casa dos 128. Diante da tragédia em progressão, o jornalista Jamil Chade observou: no mesmo dia, morreram em Gaza 104 pessoas.
Todos esses óbitos são inaceitáveis, sob qualquer aspecto, mas a cifra carioca, neste momento, estarrece mais. O Rio é uma cidade em paz, ao menos em tese. No entanto, quem mora em algumas comunidades vive sob permanente estado de terror. Não há outra palavra: estado de terror. Pior ainda, um estado de terror cujo pavio pode ser aceso pela autoridade pública. Pensemos um pouco sobre o que aconteceu na terça-feira. A fúria dos infernos só desabou sobre o chão, daquele jeito, porque as tropas do governo do Estado, com sua movimentação estabanada e sua descoordenação estapafúrdia, precipitaram o caos. As mortes foram causadas diretamente pelos agentes da lei.
Como interpretar o que houve? O que se passa na cabeça dos governantes? Será que não levam em conta as pessoas que moram naquilo que elas tomam como seu teatro de guerra eleitoreira? A autoridade não pensa na segurança de sua gente quando despeja seus soldados espetaculosos e ineficientes sobre as ruelas?
É a inversão total: no Rio de Janeiro dos nossos dias, a farda e os coturnos deflagram o morticínio, em vez de impedi-lo. A frase do cartaz que eu segurava foi, uma vez mais, comprovada pelos fatos: nas periferias, o terror é a lei.
Mas não só nas periferias. Se é assim nas periferias, é assim necessariamente na cidade inteira. É assim não só porque as aulas em toda parte tiveram de ser interrompidas, não só porque o comércio foi fechado e as igrejas baixaram os seus portões de ferro. É assim não só porque uma bala perdida alcança corpos além das fronteiras de classe. É assim, também e principalmente, porque ninguém está a salvo na metrópole se as maiorias podem ser fuziladas a qualquer momento.
Até quando vamos sustentar a ilusão macabra de que um país pode se dividir em dois regimes sem se perder de si mesmo? Ou o Brasil é um só, com direitos iguais para todo mundo, ou não será Brasil nenhum. Ou paramos com esta doença de acreditar que os direitos dos de cima têm precedência sobre os direitos dos de baixo, ou nunca chegaremos a um Estado democrático.
Onde o poder público descuida da integridade física dos mais pobres, o regime democrático não passa de uma fachada de papelão esburacada por tiros, chamuscada por pólvora queimada e borrifada de sangue. Onde o governante despreza a vida de sua gente, o que existe é um antipoder público ou um poder antipúblico: uma extensão descarada do crime, não mais uma construção do espírito.
Repito o número: 128 mortos. Na conta estão os que não tiveram direito a julgamento e os inocentes que iam trabalhar, que passeavam na calçada, que queriam comprar um cigarro. No território onde faleceram não há democracia.
A repercussão na imprensa internacional é a pior possível. Ainda bem. A indignação do mundo, nesta hora, só nos ajuda. Este governo que chacina seu povo, esfacela os fundamentos da cultura democrática e reforça o império da violência ditatorial, este governo que se comporta como um bando de extermínio terá de responder por seus atos. Enquanto isso, a lógica da ditadura marca presença.
Amanhã a babá não trabalha
Amanhã a babá não trabalha.
Talvez o motorista também falte.
E, por algumas horas, os moradores dos condomínios de luxo do Rio de Janeiro talvez percebam – não o luto, mas o incômodo logístico – causado pela chacina de hoje. Mais de cem pessoas mortas nas favelas. Quatro policiais também. A tragédia é noticiada em letras minúsculas. Nas coberturas à beira–mar, a vida segue, porque o sangue derramado não mancha o piso de mármore.
A favela sangra, e o país finge normalidade.
A ONU se disse horrorizada com a letalidade da operação, mas o Estado brasileiro parece anestesiado pela crença perversa de que “combate ao tráfico” é sinônimo de “licença para matar”.
O discurso oficial fala em “segurança pública”. A Constituição, no artigo 144, também fala: diz que a segurança é dever do Estado e direito de todos, e que sua finalidade é proteger pessoas e patrimônio.
Mas, nas vielas, o que se protege é o medo. E o que se patrimonializa é a morte.
É nas favelas que a polícia entra atirando, e é nas favelas que o Estado faz o luto coletivo parecer rotina.
Mas é nos condomínios de luxo que o crime se recicla, se financia, se protege.
As grandes apreensões de armas, as investigações de lavagem de dinheiro, as conexões entre milícias e políticos não se dão nas lajes, estão nos andares altos, nas contas bancárias discretas, nos contratos públicos e privados que alimentam a engrenagem.
O dinheiro do tráfico tem endereço fiscal, não geográfico.
E quase nunca esse endereço é uma favela.
A Constituição garante, no artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e que a vida é inviolável.
Mas o Estado escolhe quem é “todos” e quem é exceção.
Há brasileiros com direito à investigação e brasileiros com direito à bala.
Há territórios onde o Estado só chega quando decide matar.
E há outros, protegidos por muros e blindagens, onde ele nunca ousa entrar.
Chamar de “operação policial” o que é uma execução coletiva é um eufemismo que serve para limpar a consciência de quem aperta o gatilho e de quem o financia.
A elite brasileira segue acreditando que a violência é um problema de quem morre, não de quem lucra com o medo.
E, por isso, amanhã a babá não trabalha, e talvez isso gere algum desconforto.
Mas ninguém perguntará o nome das mulheres mortas, das crianças traumatizadas, dos corpos que desapareceram entre helicópteros e blindados.
O Estado que mata não é apenas violento, é inconstitucional.
Fere o artigo 1º, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.
Viola o artigo 3º, que impõe a erradicação da pobreza e da marginalização como objetivo nacional. E trai o artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida.
Cada incursão militar nas favelas é, juridicamente, uma suspensão temporária da Constituição.
É o Estado declarando guerra contra parte de seu próprio povo.
O Brasil é um país onde a desigualdade tem endereço e a morte tem CEP.
Enquanto o asfalto debate “segurança”, o morro enterra filhos.
Enquanto a elite posta indignação seletiva nas redes sociais, mães de periferia lavam o chão do sangue.
O que se chama de “combate ao tráfico” é, na prática, o combate à favela.
E o verdadeiro tráfico, o de armas, de influência, de dinheiro público, permanece intocado, protegido por sobrenomes e escritórios de advocacia de alto padrão.
Amanhã a babá não trabalha.
E talvez, no incômodo passageiro de quem terá de levar os próprios filhos à escola, o Brasil perceba o que sempre se recusou a enxergar: a vida na favela vale menos porque o Estado assim decidiu.
E enquanto não decidirmos o contrário, não haverá Constituição que nos salve da barbárie.
Talvez o motorista também falte.
E, por algumas horas, os moradores dos condomínios de luxo do Rio de Janeiro talvez percebam – não o luto, mas o incômodo logístico – causado pela chacina de hoje. Mais de cem pessoas mortas nas favelas. Quatro policiais também. A tragédia é noticiada em letras minúsculas. Nas coberturas à beira–mar, a vida segue, porque o sangue derramado não mancha o piso de mármore.
A favela sangra, e o país finge normalidade.
A ONU se disse horrorizada com a letalidade da operação, mas o Estado brasileiro parece anestesiado pela crença perversa de que “combate ao tráfico” é sinônimo de “licença para matar”.
O discurso oficial fala em “segurança pública”. A Constituição, no artigo 144, também fala: diz que a segurança é dever do Estado e direito de todos, e que sua finalidade é proteger pessoas e patrimônio.
Mas, nas vielas, o que se protege é o medo. E o que se patrimonializa é a morte.
É nas favelas que a polícia entra atirando, e é nas favelas que o Estado faz o luto coletivo parecer rotina.
Mas é nos condomínios de luxo que o crime se recicla, se financia, se protege.
As grandes apreensões de armas, as investigações de lavagem de dinheiro, as conexões entre milícias e políticos não se dão nas lajes, estão nos andares altos, nas contas bancárias discretas, nos contratos públicos e privados que alimentam a engrenagem.
O dinheiro do tráfico tem endereço fiscal, não geográfico.
E quase nunca esse endereço é uma favela.
A Constituição garante, no artigo 5º, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e que a vida é inviolável.
Mas o Estado escolhe quem é “todos” e quem é exceção.
Há brasileiros com direito à investigação e brasileiros com direito à bala.
Há territórios onde o Estado só chega quando decide matar.
E há outros, protegidos por muros e blindagens, onde ele nunca ousa entrar.
Chamar de “operação policial” o que é uma execução coletiva é um eufemismo que serve para limpar a consciência de quem aperta o gatilho e de quem o financia.
A elite brasileira segue acreditando que a violência é um problema de quem morre, não de quem lucra com o medo.
E, por isso, amanhã a babá não trabalha, e talvez isso gere algum desconforto.
Mas ninguém perguntará o nome das mulheres mortas, das crianças traumatizadas, dos corpos que desapareceram entre helicópteros e blindados.
O Estado que mata não é apenas violento, é inconstitucional.
Fere o artigo 1º, que estabelece a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.
Viola o artigo 3º, que impõe a erradicação da pobreza e da marginalização como objetivo nacional. E trai o artigo 5º, que garante a inviolabilidade da vida.
Cada incursão militar nas favelas é, juridicamente, uma suspensão temporária da Constituição.
É o Estado declarando guerra contra parte de seu próprio povo.
O Brasil é um país onde a desigualdade tem endereço e a morte tem CEP.
Enquanto o asfalto debate “segurança”, o morro enterra filhos.
Enquanto a elite posta indignação seletiva nas redes sociais, mães de periferia lavam o chão do sangue.
O que se chama de “combate ao tráfico” é, na prática, o combate à favela.
E o verdadeiro tráfico, o de armas, de influência, de dinheiro público, permanece intocado, protegido por sobrenomes e escritórios de advocacia de alto padrão.
Amanhã a babá não trabalha.
E talvez, no incômodo passageiro de quem terá de levar os próprios filhos à escola, o Brasil perceba o que sempre se recusou a enxergar: a vida na favela vale menos porque o Estado assim decidiu.
E enquanto não decidirmos o contrário, não haverá Constituição que nos salve da barbárie.
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