É inadmissível vivermos no século XXI, em países desenvolvidos, com excedente econômico, onde há pessoas a viver na rua. Hoje, educamos os nossos filhos para não olharem, mas, se a sociedade ainda reage quando vê uma criança na rua, também devia reagir de igual forma quando é um adulto. As pessoas convenceram-se de que é uma inevitabilidade e desistiram do lado humanista.
Não pode haver dignidade na nossa vida sem haver dignidade comum.
Américo Nave, cofundador da Crescer
terça-feira, 25 de novembro de 2025
Água sacrificada para extrair matérias-primas essenciais
"Esta é a primeira vez que venho a esta conferência de uma região onde se encontram matérias-primas críticas. A ideia é bater às portas e dizer: ei, do que vocês estão falando? Por que falam de uma transição energética justa se o sacrifício é nosso? Nosso território fica na Puna, um lugar com pouquíssima água. E para extrair lítio, eles precisam de muita água. A contaminação dessa água será a nossa morte, tanto física quanto espiritual", disse Yber Sarapura, líder das comunidades da Bacia de Salinas Grandes em Jujuy, Argentina, durante a 12ª Semana das Matérias-Primas Críticas , realizada em Bruxelas entre 17 e 20 de novembro.
Yber Sarapura é um dos representantes de comunidades indígenas do sul global presente no encontro internacional, organizado pela Comissão Europeia , que reúne empresas, academia, sociedade civil, pesquisa e política em torno das matérias-primas críticas (MPC).
Níquel, cobre, manganês, cobalto, lítio e elementos de terras raras encabeçam a lista dessas matérias-primas, que são críticas devido à sua importância estratégica e econômica, bem como aos riscos em suas cadeias de suprimentos. Desde 2023, quando foi publicada a quinta versão da lista de matérias-primas críticas, Bruxelas firmou acordos com países ricos nesses materiais — Brasil, Chile, Argentina e Peru — para sua extração, visando garantir a transição energética. E agora, esses acordos também se estendem ao fornecimento para a indústria de defesa .
Vinte e três por cento dos elementos de terras raras (compostos por 17 minerais) estão no Brasil. Cinquenta e quatro por cento do lítio está na América do Sul. E as maiores reservas de cobre estão no Chile e no Peru, atualmente o primeiro e o segundo maiores exportadores mundiais.
Por outro lado, a UE precisará de 30% mais cobre e 60% mais lítio até 2050 (a partir de 2020). O interesse em parcerias é evidente. No entanto, é importante lembrar que o rio Trapiche secou em Catamarca; em Cajamarca, os rios apresentam cores diferentes devido aos resíduos minerais em seus leitos; e 1,3 quilômetros quadrados ao redor do Rio Blanco e da geleira Rinconada secaram.
Esses dados — provenientes de relatórios de organizações como a argentina FARN, a peruana CoperAcción e a Fundação Heinrich Böll — lançam uma luz diferente sobre essa cruzada europeia moderna pelas matérias-primas necessárias para supostamente alcançar um mundo mais verde.
No entanto, as comunidades locais e os ambientalistas estão se concentrando em um elemento que recebeu pouca atenção na conferência de Bruxelas: a água e o impacto de sua escassez na vida. Porque, entretanto, já é sabido: apesar de toda a inovação tecnológica em sua extração, a indústria de mineração requer água — muita água.
Vale ressaltar que representantes de instituições europeias afirmam o respeito aos direitos humanos, os mecanismos voluntários de diligência devida, o compromisso com a sustentabilidade e o progresso na indústria da reciclagem. Ao mesmo tempo, consideram essas matérias-primas essenciais, que em sua maioria se encontram fora da Europa, indispensáveis para a independência energética e a competitividade europeia na atual corrida geopolítica.
"Para quem esses minerais são essenciais? Para a indústria de mobilidade pessoal?", questiona Laura Castillo, pesquisadora da FARN. "Para as populações nos territórios onde o lítio é encontrado, a situação crítica é a dos pântanos andinos, zonas áridas já sob pressão das mudanças climáticas. Chove muito pouco e a quantidade de água perdida por evaporação é maior do que a que entra no sistema", afirma.
Além de questionar o hiperconsumo das sociedades do "norte global", o especialista da FARN destaca a necessidade de aplicar ferramentas já existentes, como a avaliação ambiental estratégica, para planejar o território e isentar ecossistemas sensíveis da extração.
Nesse sentido, segundo fontes oficiais, o atual governo chileno tomou medidas para proteger 30% dos salares do país, onde não haverá extração de lítio. Além disso, no Chile, o lítio não é um mineral sujeito a concessão; o presidente concede o direito de extraí-lo por meio de licitação pública, após consulta às comunidades afetadas.
Representantes da Coligação Europeia de Matérias-Primas, uma plataforma de ONGs europeias que lidam com os impactos de projetos extrativistas, estão apresentando uma proposta semelhante a Bruxelas: que sejam determinadas "zonas proibidas", que seja realizada uma consulta prévia e que, em caso de consentimento, ou "licença social", seja acordada a partilha dos lucros.
Medo devido a experiências passadas
"O medo da escassez de água é o principal fator de oposição e de conflitos com a mineração", explica Johanna Sydow, chefe da divisão de política ambiental internacional da Fundação Heinrich Böll.
"Por um lado, são feitos estudos de impacto para cada projeto, sem levar em conta o valor cumulativo da escassez de água. Por outro lado, os governos continuam a baixar os padrões de proteção ambiental, deixando as pessoas desprotegidas. No Peru, na Sérvia e em Gana, mesmo recebendo água da mineradora, as pessoas têm que beber água contaminada", destaca Johanna Sydow.
Assim, em meio a painéis e debates sobre alta tecnologia para recuperação de lítio de baterias, mobilidade com emissão zero, tecnologia aeroespacial e visões de um futuro sustentável, Iber Sarapura apresenta o caso de Salinas Grandes e da Lagoa de Guayatayoc.
"É difícil dialogar com as mineradoras. Elas usam qualquer foto nossa como pré-consulta. Não usam nosso documento KachiYupi, 'as pegadas de sal', para nos consultar", aponta o líder comunitário. Ofereceram realocação ou outros benefícios? "Não queremos dinheiro, nem terras. Este território é nosso desde antes do Estado argentino, que busca qualquer forma de se livrar de nós. Nossa resposta é não", conclui.
Yber Sarapura é um dos representantes de comunidades indígenas do sul global presente no encontro internacional, organizado pela Comissão Europeia , que reúne empresas, academia, sociedade civil, pesquisa e política em torno das matérias-primas críticas (MPC).
Níquel, cobre, manganês, cobalto, lítio e elementos de terras raras encabeçam a lista dessas matérias-primas, que são críticas devido à sua importância estratégica e econômica, bem como aos riscos em suas cadeias de suprimentos. Desde 2023, quando foi publicada a quinta versão da lista de matérias-primas críticas, Bruxelas firmou acordos com países ricos nesses materiais — Brasil, Chile, Argentina e Peru — para sua extração, visando garantir a transição energética. E agora, esses acordos também se estendem ao fornecimento para a indústria de defesa .
Vinte e três por cento dos elementos de terras raras (compostos por 17 minerais) estão no Brasil. Cinquenta e quatro por cento do lítio está na América do Sul. E as maiores reservas de cobre estão no Chile e no Peru, atualmente o primeiro e o segundo maiores exportadores mundiais.
Por outro lado, a UE precisará de 30% mais cobre e 60% mais lítio até 2050 (a partir de 2020). O interesse em parcerias é evidente. No entanto, é importante lembrar que o rio Trapiche secou em Catamarca; em Cajamarca, os rios apresentam cores diferentes devido aos resíduos minerais em seus leitos; e 1,3 quilômetros quadrados ao redor do Rio Blanco e da geleira Rinconada secaram.
Esses dados — provenientes de relatórios de organizações como a argentina FARN, a peruana CoperAcción e a Fundação Heinrich Böll — lançam uma luz diferente sobre essa cruzada europeia moderna pelas matérias-primas necessárias para supostamente alcançar um mundo mais verde.
No entanto, as comunidades locais e os ambientalistas estão se concentrando em um elemento que recebeu pouca atenção na conferência de Bruxelas: a água e o impacto de sua escassez na vida. Porque, entretanto, já é sabido: apesar de toda a inovação tecnológica em sua extração, a indústria de mineração requer água — muita água.
Vale ressaltar que representantes de instituições europeias afirmam o respeito aos direitos humanos, os mecanismos voluntários de diligência devida, o compromisso com a sustentabilidade e o progresso na indústria da reciclagem. Ao mesmo tempo, consideram essas matérias-primas essenciais, que em sua maioria se encontram fora da Europa, indispensáveis para a independência energética e a competitividade europeia na atual corrida geopolítica.
"Para quem esses minerais são essenciais? Para a indústria de mobilidade pessoal?", questiona Laura Castillo, pesquisadora da FARN. "Para as populações nos territórios onde o lítio é encontrado, a situação crítica é a dos pântanos andinos, zonas áridas já sob pressão das mudanças climáticas. Chove muito pouco e a quantidade de água perdida por evaporação é maior do que a que entra no sistema", afirma.
Além de questionar o hiperconsumo das sociedades do "norte global", o especialista da FARN destaca a necessidade de aplicar ferramentas já existentes, como a avaliação ambiental estratégica, para planejar o território e isentar ecossistemas sensíveis da extração.
Nesse sentido, segundo fontes oficiais, o atual governo chileno tomou medidas para proteger 30% dos salares do país, onde não haverá extração de lítio. Além disso, no Chile, o lítio não é um mineral sujeito a concessão; o presidente concede o direito de extraí-lo por meio de licitação pública, após consulta às comunidades afetadas.
Representantes da Coligação Europeia de Matérias-Primas, uma plataforma de ONGs europeias que lidam com os impactos de projetos extrativistas, estão apresentando uma proposta semelhante a Bruxelas: que sejam determinadas "zonas proibidas", que seja realizada uma consulta prévia e que, em caso de consentimento, ou "licença social", seja acordada a partilha dos lucros.
Medo devido a experiências passadas
"O medo da escassez de água é o principal fator de oposição e de conflitos com a mineração", explica Johanna Sydow, chefe da divisão de política ambiental internacional da Fundação Heinrich Böll.
"Por um lado, são feitos estudos de impacto para cada projeto, sem levar em conta o valor cumulativo da escassez de água. Por outro lado, os governos continuam a baixar os padrões de proteção ambiental, deixando as pessoas desprotegidas. No Peru, na Sérvia e em Gana, mesmo recebendo água da mineradora, as pessoas têm que beber água contaminada", destaca Johanna Sydow.
Assim, em meio a painéis e debates sobre alta tecnologia para recuperação de lítio de baterias, mobilidade com emissão zero, tecnologia aeroespacial e visões de um futuro sustentável, Iber Sarapura apresenta o caso de Salinas Grandes e da Lagoa de Guayatayoc.
"É difícil dialogar com as mineradoras. Elas usam qualquer foto nossa como pré-consulta. Não usam nosso documento KachiYupi, 'as pegadas de sal', para nos consultar", aponta o líder comunitário. Ofereceram realocação ou outros benefícios? "Não queremos dinheiro, nem terras. Este território é nosso desde antes do Estado argentino, que busca qualquer forma de se livrar de nós. Nossa resposta é não", conclui.
Reflexões fáceis, problemas encardidos
Sabe o leitor que, na vida pública, existem indagações fáceis de responder, indagações difíceis e indagações rigorosamente irrespondíveis.
Hoje, eu gostaria de falar sobre uma que tem aparecido nas três categorias. Refiro-me à questão dos partidos políticos. Suponhamos que você vá a Brasília e pergunta a um indivíduo qualquer, escolhido a esmo: o que você entende por partido político? O mais provável é que ele nada responda ou então diga algo assim: partido é um grupo de pessoas que comungam certos valores e se reúnem para tentar realizálos, disputando eleições. Eu retrucaria: um grupo de pessoas que comungam certos valores? De onde você tirou isso? Aqui em Brasília é que não foi, não é?
Aí me dirijo a um segundo indivíduo, ali mesmo na Esplanada dos Ministérios. O que você entende por partido político? E ele: “Ora, só pode ser um grupo de sujeitos que fica à espreita, esperando a chance de destruir o País. Veja o caso da Argentina. Políticos, militares, trotskistas, anarquistas, achavam que o país era bom demais para o que os argentinos mereciam. Em vez de vários partidos, vamos trazer o Perón de volta da Espanha, ele vem com Isabelita, sua segunda mulher e a coloca como vice-presidente, por precaução, porque já está um pouco velho. Aí, o que aconteceu? Ora, na hora H, Perón morreu, ela foi posta em prisão domiciliar, todos quebraram o pau e pronto: não têm mais país, mas também não têm essa coisa abominável a que chamam partidos”.
A essa altura, resolvi dirigir-me a um senhor bem aparecido, com cara de cavalheiro, obviamente uma pessoa letrada. Fiz-lhe a pergunta e ele, com um sorriso de felicidade por ter sido inquirido, respondeu-me: “Ora, isso é comigo mesmo”.
E prosseguiu: “Partidos são a engrenagem fundamental da democracia representativa. Sem partidos, não há democracia. E a recíproca é verdadeira: sem democracia não há partidos, porque ditaduras não os toleram”.
Formidável, respondi a ele, mas o que, exatamente, é um partido?
Respondeu-me o cavalheiro que iríamos muito longe se fôssemos discorrer sobre outros países. Fiquemos no Brasil. Desde logo, o partido tem de ter caráter nacional, ou seja, não admitimos partidos regionais. Uma vez constituídos, têm direito a financiamento (recursos do Fundo Partidário) e a acesso gratuito ao rádio e à TV para divulgar seus programas, pois não é concebível que nosso imenso eleitorado compareça às urnas desprovido de informações idôneas sobre as alternativas entre as quais terá o direito e o dever de fazer sua escolha. E, naturalmente, a Constituição não estabelece restrições quantitativas quanto ao número de partidos.
Ótimo, ótimo, lhe respondi, mas continuo sem uma ideia exata sobre o que é, de fato, um partido. “Ora – respondeu-me – é muito simples. Primeiro, o grupo interessado em formar um partido precisa registrar sua intenção no Cartório de Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Observe que aí ele já começa a existir. Depois o referido grupo deve comparecer ao Tribunal Superior Eleitoral portando uma senhora maçaroca. Um catatau do qual haverá de constar os estatutos e o programa do partido, bem como algumas centenas de páginas com assinaturas de eleitores de vários Estados, sendo essa a prova do indispensável “caráter nacional” da recém-criada agremiação”.
E daí em diante, o que acontece? “Ora”, respondeu-me o interlocutor com a mesma distinção que demonstrara até esse ponto. “Daí em diante, desde que conquiste o desejado número de assentos parlamentares, o partido contribui para o bem do País na exata proporção da qualidade de seus membros. Tivemos em nossa história partidos que fizeram coisas admiráveis. É verdade que esses, nos dias de hoje, rarearam. Ocupam-se principalmente em inserir na legislação os chamados privilégios corporativistas, quero dizer, normas legais para a proteção e a progressão profissional de pequenos grupos, que os recompensam com apoio eleitoral; isso, naturalmente, nos níveis nacional, estadual e municipal. Dado que a vida política edulcora o coração das pessoas, muitos também se esforçam para arranjar empregos para amigos e parentes. E, sobretudo, trabalham com afinco para influenciar o Orçamento federal anual, pois, afinal de contas, nada há de mais execrável que a mania da chamada “área econômica” de querer equilibrar a arrecadação e o gasto.
A organização jurídica, como veem, é impecável. Nada escapou à atenção da Constituição de 1988 e à subsequente legislação ordinária. O único senão é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Incapaz de crescer pelo menos dois e meio por cento ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa já pífia renda anual per capita. Com Lula na Presidência, pleiteando a reeleição e uma entidade chamada Centrão funcionando como a estufa que cedo ou tarde nos trará uma plêiade de estadistas, o distinto cavalheiro que tão bem me atendeu em Brasília terá de me explicar melhor como sobrevive um país desprovido de verdadeiros partidos políticos.
Hoje, eu gostaria de falar sobre uma que tem aparecido nas três categorias. Refiro-me à questão dos partidos políticos. Suponhamos que você vá a Brasília e pergunta a um indivíduo qualquer, escolhido a esmo: o que você entende por partido político? O mais provável é que ele nada responda ou então diga algo assim: partido é um grupo de pessoas que comungam certos valores e se reúnem para tentar realizálos, disputando eleições. Eu retrucaria: um grupo de pessoas que comungam certos valores? De onde você tirou isso? Aqui em Brasília é que não foi, não é?
Aí me dirijo a um segundo indivíduo, ali mesmo na Esplanada dos Ministérios. O que você entende por partido político? E ele: “Ora, só pode ser um grupo de sujeitos que fica à espreita, esperando a chance de destruir o País. Veja o caso da Argentina. Políticos, militares, trotskistas, anarquistas, achavam que o país era bom demais para o que os argentinos mereciam. Em vez de vários partidos, vamos trazer o Perón de volta da Espanha, ele vem com Isabelita, sua segunda mulher e a coloca como vice-presidente, por precaução, porque já está um pouco velho. Aí, o que aconteceu? Ora, na hora H, Perón morreu, ela foi posta em prisão domiciliar, todos quebraram o pau e pronto: não têm mais país, mas também não têm essa coisa abominável a que chamam partidos”.
A essa altura, resolvi dirigir-me a um senhor bem aparecido, com cara de cavalheiro, obviamente uma pessoa letrada. Fiz-lhe a pergunta e ele, com um sorriso de felicidade por ter sido inquirido, respondeu-me: “Ora, isso é comigo mesmo”.
E prosseguiu: “Partidos são a engrenagem fundamental da democracia representativa. Sem partidos, não há democracia. E a recíproca é verdadeira: sem democracia não há partidos, porque ditaduras não os toleram”.
Formidável, respondi a ele, mas o que, exatamente, é um partido?
Respondeu-me o cavalheiro que iríamos muito longe se fôssemos discorrer sobre outros países. Fiquemos no Brasil. Desde logo, o partido tem de ter caráter nacional, ou seja, não admitimos partidos regionais. Uma vez constituídos, têm direito a financiamento (recursos do Fundo Partidário) e a acesso gratuito ao rádio e à TV para divulgar seus programas, pois não é concebível que nosso imenso eleitorado compareça às urnas desprovido de informações idôneas sobre as alternativas entre as quais terá o direito e o dever de fazer sua escolha. E, naturalmente, a Constituição não estabelece restrições quantitativas quanto ao número de partidos.
Ótimo, ótimo, lhe respondi, mas continuo sem uma ideia exata sobre o que é, de fato, um partido. “Ora – respondeu-me – é muito simples. Primeiro, o grupo interessado em formar um partido precisa registrar sua intenção no Cartório de Pessoas Jurídicas do Distrito Federal. Observe que aí ele já começa a existir. Depois o referido grupo deve comparecer ao Tribunal Superior Eleitoral portando uma senhora maçaroca. Um catatau do qual haverá de constar os estatutos e o programa do partido, bem como algumas centenas de páginas com assinaturas de eleitores de vários Estados, sendo essa a prova do indispensável “caráter nacional” da recém-criada agremiação”.
E daí em diante, o que acontece? “Ora”, respondeu-me o interlocutor com a mesma distinção que demonstrara até esse ponto. “Daí em diante, desde que conquiste o desejado número de assentos parlamentares, o partido contribui para o bem do País na exata proporção da qualidade de seus membros. Tivemos em nossa história partidos que fizeram coisas admiráveis. É verdade que esses, nos dias de hoje, rarearam. Ocupam-se principalmente em inserir na legislação os chamados privilégios corporativistas, quero dizer, normas legais para a proteção e a progressão profissional de pequenos grupos, que os recompensam com apoio eleitoral; isso, naturalmente, nos níveis nacional, estadual e municipal. Dado que a vida política edulcora o coração das pessoas, muitos também se esforçam para arranjar empregos para amigos e parentes. E, sobretudo, trabalham com afinco para influenciar o Orçamento federal anual, pois, afinal de contas, nada há de mais execrável que a mania da chamada “área econômica” de querer equilibrar a arrecadação e o gasto.
A organização jurídica, como veem, é impecável. Nada escapou à atenção da Constituição de 1988 e à subsequente legislação ordinária. O único senão é que continuamos aprisionados na chamada “armadilha do baixo crescimento”. Incapaz de crescer pelo menos dois e meio por cento ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrar nossa já pífia renda anual per capita. Com Lula na Presidência, pleiteando a reeleição e uma entidade chamada Centrão funcionando como a estufa que cedo ou tarde nos trará uma plêiade de estadistas, o distinto cavalheiro que tão bem me atendeu em Brasília terá de me explicar melhor como sobrevive um país desprovido de verdadeiros partidos políticos.
Aznar, o oráculo
Podemos dormir descansados, o aquecimento global não existe, é um invento malicioso dos ecologistas na linha estratégica da sua “ideologia em deriva totalitária”, consoante a definiu o implacável observador da política planetária e dos fenómenos do universo que é José María Aznar. Não saberíamos como viver sem este homem. Não importa que qualquer dia comecem a nascer flores no Árctico, não importa que os glaciares da Patagónia se reduzam de cada vez que alguém suspira fazendo aumentar a temperatura ambiente uma milionésima de grau, não importa que a Gronelândia tenha perdido uma parte importante do seu território, não importa a seca, não importam as inundações que tudo arrasam e tantas vidas levam consigo, não importa a igualização cada vez mais evidente das estações do ano, nada disto importa se o emérito sábio José María vem negar a existência do aquecimento global, baseando-se nas peregrinas páginas de um livro do presidente checo Vaclav Klaus que o próprio Aznar, em uma bonita atitude de solidariedade científica e institucional, apresentará em breve. Já o estamos a ouvir. No entanto, uma dúvida muito séria nos atormenta e que é altura de expender à consideração do leitor. Onde estará a origem, o manancial, a fonte desta sistemática atitude negacionista? Terá resultado de um ovo dialéctico deposto por Aznar no útero do Partido Popular quando foi seu amo e senhor? Quando Rajoy, com aquela composta seriedade que o caracteriza, nos informou de que um seu primo catedrático, parece que de física, lhe havia dito que isso do aquecimento climático era uma treta, tão ousada afirmação foi apenas o fruto de uma imaginação celta sobreaquecida que não havia sabido compreender o que lhe estava a ser explicado, ou, para tornar ao ovo dialéctico, é isso uma doutrina, uma regra, um princípio exarado em letra pequena na cartilha do Partido Popular, caso em que, se Rajoy teria sido somente o repetidor infeliz da palavra do primo catedrático, já o oráculo em que o seu ex-chefe se transformou não quis perder a oportunidade de marcar uma vez mais a pauta ao gentio ignaro?
Não me resta muito mais espaço, mas talvez ainda caiba nele um breve apelo ao senso comum. Sendo certo que o planeta em que vivemos já passou por seis ou sete eras glaciais, não estaremos nós no limiar de outra dessas eras? Não será que a coincidência entre tal possibilidade e as contínuas acções operadas pelo ser humano contra o meio ambiente se parece muito àqueles casos, tão comuns, em que uma doença esconde outra doença? Pensem nisto, por favor. Na próxima era glacial, ou nesta que já está principiando, o gelo cobrirá Paris. Tranquilizemo-nos, não será para amanhã. Mas temos, pelo menos, um dever para hoje: não ajudemos a era glacial que aí vem. E, recordem, Aznar é um mero episódio. Não se assustem.
José Saramago, "O caderno"
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