segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Pensamento do Dia

 


Uma demanda de urbanidade política

É possível que a cidade de Brasília tenha algo a ver com a deterioração qualitativa do Congresso. No governo Kubitschek, a transferência da capital para o Planalto Central não espelhava nenhuma grande transformação social, mas era a marca de uma reorganização simbólica, marketing do ímpeto industrialista da burguesia nacional. No sistema-mundo, vivia-se o apogeu do princípio anticolonial de autonomia dos povos periféricos, o Brasil despontava no Terceiro Mundo, com a ideologia do desenvolvimento à frente.

Brasília seria um símbolo forte disso tudo. Já em 1916, o sociólogo norte-americano Robert Park afirmava que cidade era algo mais que "um amontoado de homens, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde e telefone. A cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes, tradições e sentimentos" (em "A Cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano").

Nova capital, novo urbanismo, novo estado de espírito, eis Brasília. Há, entretanto, uma diferença entre urbanismo e urbanidade: o primeiro é o planejamento técnico e metódico de uma cidade, enquanto urbanidade é a criação contínua e espontânea dos habitantes sobre o status quo urbano. É o espírito contrário à depredação de equipamentos coletivos, à violência do tráfego e ao domínio territorial pela criminalidade.

Exceto o 8 de janeiro, Brasília não conhece o estado de pré-barbárie que tem caracterizado as megalópoles brasileiras. Mas sua urbanidade acontece de cima para baixo, pela presença acachapante de todo o aparato de governo e pela contenção habitacional. Com ressalva das cidades-satélites, os brasilienses atestam níveis razoáveis de vida urbana.

Ao olhar externo, entretanto, Brasília é uma urbe desvitalizada, isto é, que não parece ser vivida, como se cada qual estivesse cercado por um meio neutro, exterior ao sentido imediato, sem investimento afetivo. É o etos do seu modo de espacialização, cujo espaço-tempo sugere uma "República de 
Bruzundangas" (Lima Barreto) burocrática, hipercentralizadora, chupa-cabra do trabalho vivo nacional. Um biorritmo encapsulado: a capital é mais "federal" que do Brasil.

Certa vez, numa avaliação casual, disse Ulysses Guimarães que "o próximo Congresso a ser eleito será certamente pior do que o anterior". Talvez já intuísse o elo entre a ausência de representatividade do povo nos aparelhos de Estado e a inadequação dos parlamentares, cada vez mais destituídos de cosmopolitismo cívico. A frase se revelaria profética quanto ao estado presente da Câmara, antro do mais deslavado fisiologismo e caciquismo político.

Socialização e urbanismo fazem par. A geometria poética de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa abria-se a inovações institucionais, compatíveis com o futuro desenhado. É quando se interligam tempo e espaço. Mas o tempo seguinte, de desastrosa ditadura e degradação civil, desligou-se da criação, que permaneceu como bela forma vazia. A futurística marca espaço-temporal do Estado-Nação, sonhada pela burguesia desenvolvimentista com o nome de Brasília, é hoje resíduo ideológico de um espírito inacessível à esterilidade mental dos legisladores. Seus palácios, alvos depredatórios de golpistas palacianos e turbas ensandecidas.
Muniz Sodré

Democracia no Brasil é um grande sucesso

O que quer dizer democracia? A resposta vai variar conforme o gosto do freguês, e o livro "A Palavra e o Poder" (Civilização Brasileira) traz um rico painel desse debate no contexto brasileiro ao longo dos 40 anos da Nova República.

Ao pé da letra grega, democracia é o poder do povo. É mais simples entendê-la no experimento ateniense da Antiguidade, pelo qual os cidadãos se juntavam na praça para deliberar, ao peso de um voto por cabeça, sobre temas da coletividade.

No seu mínimo denominador comum, a democracia é meio de satisfazer o apetite humano pelo poder sem recurso à violência. Nesse sistema, ninguém precisa decapitar o rei ou derrotar a milícia inimiga para tornar-se governante. Basta vencer as eleições. Simples de formular, difícil de implementar.

Há um componente da realidade que complica essa equação. As pessoas podem ser consideradas iguais diante da lei, mas elas não se sentem nem se comportam como se fossem iguais. Uma teia de relações de parentesco, de hierarquia e de posicionamento econômico desafia o ideal normativo.


Não foi à toa que as reformas de Clístenes, que precederam e viabilizaram as décadas de ouro da democracia de Atenas, atacaram a raiz sociológica do dilema político. A dominância do clã, das afinidades familiares, foi substituída pela do território. Tribalismo convive mal com democracia.

A República romana, que não foi uma democracia, ilumina outro aspecto do problema. O modelo não tenta corrigir desigualdades de origem. Ele as pressupõe, traduz e formaliza. SPQR, a sigla que ainda se vê gravada nas tampas de galeria da capital italiana, denota a associação entre oligarcas (os senadores) e comuns (a plebe) num sistema tenso de comandos e vetos. As democracias modernas também desenvolveram os seus mecanismos para conformar e equilibrar o embate entre as forças tradicionais e as plebiscitárias.

E como lidar com o perigo dos trapaceiros? Um sistema baseado em regras universais de entrada e saída do governo precisa se precaver contra quem não quer brincar assim. Em Atenas o risco da tirania era combatido com o ostracismo, que implicava o banimento da comunidade política de indivíduos suspeitos de tramarem a subversão da ordem. Alguém pensou em julgamentos em marcha no Supremo Tribunal Federal brasileiro?

Em Roma, a instituição restauradora se chamava ditadura. Por período definido, permitia-se que poderes absolutos fossem conferidos a um líder incumbido de debelar as ameaças ao regime e devolvê-lo ao curso normal. Dentro do propósito benéfico do instituto clássico, dá para discutir o inchaço circunstancial, frise-se o circunstancial, de prerrogativas de juízes brasileiros diante de assédios à democracia. Formalmente, o espírito da ditadura romana permanece em mecanismos constitucionais como os estados de sítio e de defesa das democracias contemporâneas.

Avaliada sob essa ótica minimalista, o ciclo da democracia brasileira que se iniciou em 1985 tem sido um grande sucesso. Dezenas de milhares de eleições foram realizadas no período nos níveis municipal, estadual e federal, e seus resultados, religiosamente obedecidos. Os eleitos para cargos executivos não receberam cheque em branco para fazer o que bem entendessem. Quem abusou, segundo o julgamento de magistrados ou corpos legislativos, foi legalmente deposto.

Quem urdiu a ruptura autoritária foi bloqueado em plena tentativa de virar a mesa e depois punido pelo sistema judicial.

É claro que se frustraram expectativas grandiosas sobre o que a democracia brasileira deveria propiciar em termos substantivos — um país mais próspero, mais justo e solidário. Mas talvez seja exigir demais desse belíssimo instrumento que a humanidade desenvolveu, mas que não passa disso, um instrumento. Os resultados dependem de quem o manuseia, e o diabo é que na democracia não temos ninguém em quem pôr a culpa pelas nossas mazelas senão em nós mesmos.

Passado e presente

Comecemos com uma curiosidade de duas ou três décadas atrás. Um respeitado historiador das coisas do comunismo, perguntado sobre a queda do Muro de Berlim, a implosão do edifício soviético e os naturais efeitos sobre sua disciplina, reconheceu sentir-se bastante deslocado no novo contexto. É que, sem poder negar o longo período de estudos e os muitos livros lidos e escritos, percebia ter passado subitamente da condição de historiador do presente para a de arqueólogo. Daí por diante, seus temas de eleição soariam esotéricos. O que teriam a dizer aos contemporâneos as escolhas dos antigos partidos comunistas – seja no poder, seja na oposição –, seus momentos de ascensão e declínio, suas incessantes idas e vindas diante da “questão democrática”?

Tudo isso, em tese, poderia inserir-se entre as discussões fora de moda, atropeladas pelas novas agendas, como a globalização, a unificação dos espaços econômicos, a emergência de uma sociedade civil mundial permeada por valores liberais. Era então difícil ou impossível prever que pouco mais adiante, numa estranha dobra do tempo, o quadro viraria de ponta-cabeça. Uma crise generalizada de legitimidade nas “democracias burguesas”, a começar pela mais vistosa delas – a norte-americana –, iria repor, evidentemente sob roupagem nova, dramas e dilemas com a aparência de já vividos e, ao menos em parte, solucionados.

Um rápido exame das discussões neste segundo governo Trump mostra que está de volta o mau presságio, ou a realidade já em curso, da autocratização política e do acirramento das tensões sociais. A nação divide-se em metades inconciliáveis, o decantado mecanismo de freios e contrapesos parece derreter, o Executivo concentra poderes e cerceia liberdades tidas como inexpugnáveis. “Fascismo!” – diagnosticam alguns, ressuscitando a palavra terrível dos anos 1930. E não faltaria sequer o traço de mobilização autoritária de massas, típico daquela tirania, só que nas novas condições de uma sociedade simultaneamente atomizada e reunida pelas redes sociais.

O desconsolado historiador a que antes nos referimos talvez reencontrasse aqui espaço para intervenções com uso prático. Lembraria que a presente onda autocrática, capitaneada por uma direita de novo tipo, golpeia por igual tanto progressistas quanto liberais-democratas e até conservadores, incomodados, estes últimos, com o lado “revolucionário” e puramente destrutivo do programa do populismo radical à moda Trump e congêneres. Não aceitaria a repetição preguiçosa do rótulo “fascista”, mas perceberia o sinal de traços semelhantes nas duas épocas, a nossa e a transcorrida há cem anos.

Em ambas, por exemplo, a dissolução de classes em massas de indivíduos propensos a seguirem cegamente o chefe autoritário, porto supostamente seguro numa era de sujeitos solitários e intensas mudanças. O diagnóstico, feito a seu tempo, entre outros, por Hannah Arendt, tem a virtude adicional de apontar que tais processos não são atributo exclusivo da direita radicalizada. Se fossem, aliás, não teríamos a ditadura stalinista e as estruturas totais de partidoEstado que os desavisados entenderam, e alguns ainda entendem, como formas superiores de ordem política.

Os velhos comunistas – diria também o historiador-arqueólogo repentinamente loquaz e certo de ter redescoberto um “lugar de fala” – construíram realidades potentes e eficazes, como as chamadas frentes populares. Não por acaso, o termo também saiu dos dicionários e adquiriu vida nova, como na França e em outras partes. A exemplo da encarnação anterior, oscila por vezes incoerentemente entre uma versão democrática e outra esquerdista. A primeira é intrinsecamente plural, abraçando a ideia de hegemonia como encontro e confronto entre forças diferentes e abertas umas às outras. A segunda, encerrada num círculo constituído de forças basicamente iguais, tem vocação hegemonista, operando “para fora” com uma tática desleal de cooptação e decapitação.

Que não se trata só de fórmulas caducas, que conviria aposentar de vez, está demonstrado pelo fato de que as duas versões continuam a sustentar modalidades bem diferentes de esquerda, uma democrática, outra autoritária. Como numa encruzilhada, um dos caminhos sugere a incorporação plena das regras do jogo e das obrigações de quem percebe um terreno comum aos democratas de todas as orientações. Fora deste terreno, o mais provável é a destruição recíproca das forças em luta, para retomar o espírito de uma frase marxiana bem conhecida.

O outro caminho, radical na aparência, tem aspectos paradoxais. Na sua impaciência revolucionária, comete o erro fatal de dividir a sociedade em blocos antagônicos – “classe contra classe”, para lançar mão de outra expressão também de larga divulgação. Esquerda e direita duelariam à maneira do bem contra o mal, o que, entre outros resultados, não só paralisa a mudança social, como também replica e reforça a estratégia de polarização patológica, incessantemente produzida pelo nacionalismo populista que agora parece vir de todos os lados.
Luiz Sérgio Henriques

A algoritmização da morte e o paradigma da 'guerra' permanente

Os novos assassinatos de palestinos em Gaza ocorridos após o anúncio do cessar-fogo mediado por Donald Trump nos lembram da fragilidade extrema dos processos de paz na região. O mundo espera, com ceticismo, o desfecho de mais um capítulo desta guerra interminável que antecede, em muito, a violência do 7 de outubro de 2023 e que dificilmente terminará sem a concretização de um Estado Palestino livre e soberano. A cada trégua rompida, a cada vida interrompida, torna-se um imperativo moral fazermos um balanço destes dois anos de horror sistemático.

Desde os primeiros dias da ofensiva, o discurso oficial israelense sinalizou a natureza totalizante da operação. Embora o governo de Israel tenha declarado que o objetivo da operação era unicamente a destruição das capacidades militares do Hamas, a retórica e as ações sugeriram algo mais abrangente. Nas palavras do próprio ministro de defesa de Israel, Yoav Gallant, proferidas em 9 de outubro de 2023: “Estamos impondo um cerco total à Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”. A declaração, amplamente divulgada por veículos de imprensa internacionais, inaugurou uma política de cerco absoluto e de desumanização institucionalizada. Talvez a guerra nunca tenha sido uma resposta militar ao Hamas, mas sim um projeto de aniquilação coletiva, conduzido sob a lógica colonial de punição e erradicação.


Em outubro de 2025, o massacre na Faixa de Gaza completou dois anos. O conflito rapidamente transformou-se em um processo de devastação sem precedentes no século XXI. Em um território de apenas 365 km², habitado por cerca de 2,2 milhões de pessoas, foram lançadas quase 85 mil toneladas de explosivos. A intensidade dos ataques torna a região o território mais devastado per capita e por área de que se tem registro na era contemporânea.

Segundo o Ministério da Saúde local, 67 mil pessoas foram mortas desde o início da ofensiva, além de provavelmente uma dezena de milhares que estão sob os escombros. Entre as vítimas, 30 mil mulheres e meninas e 18 mil crianças e adolescentes. Outras 170 mil pessoas ficaram feridas, e o enclave registra hoje o maior número de crianças amputadas do mundo, com mais de 4 mil casos. Aproximadamente 80% dos edifícios e residências foram destruídos ou danificados. O volume de entulho de construção atinge 50 milhões de toneladas, ou cerca de 137 quilos por metro quadrado, número 14 vezes maior do que o total de detritos gerados por todos os conflitos armados do mundo desde 2008.

A dimensão humanitária da tragédia é igualmente alarmante. Estima-se que 500 mil pessoas, cerca de 22% da população, vivem em situação de fome extrema. A destruição de sistemas de água, energia e saúde, associada ao bloqueio quase total de insumos, agravou o colapso sanitário e empurrou a população para condições de sobrevivência precárias. Segundo a revista The Lancet (2025), a expectativa de vida dos homens caiu de 75,5 para 36 anos, e a das mulheres de 75,5 para 44 anos.

O genocídio em Gaza também nos apresentou a militarização da inteligência artificial e a algoritmização da morte (MAGALHÃES, 2025), processo pelo qual a decisão sobre quem vive e quem morre é mediada por sistemas automatizados de vigilância, cálculo e seleção de alvos. Drones, bancos de dados biométricos e softwares de rastreamento transformam a eliminação de corpos em uma operação estatística, esvaziada de responsabilidade moral. A “guerra”, nesse sentido, torna-se um exercício de administração tecnológica da vida, em que a morte é produzida com precisão matemática e legitimada pela linguagem da eficiência. A racionalidade algorítmica, ao reduzir a existência humana a parâmetros de risco e probabilidade, consolida a desumanização como política de Estado e insere o genocídio palestino na lógica mais ampla da governança automatizada da violência, típica do século XXI.

O colapso humanitário em Gaza manifesta-se também na experiência cotidiana da fome e do desespero. As longas filas por alimentos e água, muitas vezes sob bombardeios, transformaram o que deveria ser a busca por sobrevivência em um ato letal. Relatos de agências humanitárias descrevem pessoas mortas ao tentar alcançar caminhões de ajuda ou recolher grãos entre os escombros, enquanto outras percorrem quilômetros sob fogo cruzado em busca de um pedaço de pão. Cerca de 2.600 pessoas morreram e quase 20 mil foram feridas por disparos de arma de fogo efetuados por agentes de segurança da Gaza Humanitarian Foundation (GHF) ou pelas tropas de Israel enquanto buscavam alimentos.

O sofrimento humano, nesse contexto, assume uma dimensão psicológica e coletiva: famílias inteiras vivem sob trauma permanente, marcadas pela perda e pelo medo constante. Crianças manifestam sintomas de colapso emocional, insônia, mutismo e crises de ansiedade em um ambiente onde o ruído das explosões substituiu o silêncio da noite. O cotidiano, esvaziado de qualquer segurança, tornou-se a própria coreografia da precariedade: existir passou a significar sobreviver entre ruínas.

A recente libertação de Omar Yahya Al-Qarinawi, adolescente palestino com autismo, provocou uma comoção internacional genuína, mas também revelou o abismo moral que estrutura o olhar do mundo sobre o conflito. A imagem de sua fragilidade exposta, após meses de encarceramento sem julgamento, deveria ter despertado uma reflexão sobre a violência sistêmica que sustenta o regime de ocupação. Contudo, a narrativa dominante limitou-se a tratar o episódio como exceção humanitária e não como sintoma de uma política de aprisionamento em massa.

Atualmente, milhares de palestinos encontram-se detidos em prisões israelenses, incluindo cerca de duzentas mulheres e seiscentas crianças e adolescentes, muitos submetidos a tortura, isolamento e privações sistemáticas. Essa prática, consolidada como técnica de governo, constitui uma das expressões mais perversas do controle colonial. Nesse contexto, é inevitável evocar Hannah Arendt, para quem o mal moderno se realiza na banalização da violência e na indiferença moral de seus executores. A libertação de Omar, ainda que celebrada, não interrompe o funcionamento dessa máquina desumanizadora, apenas a expõe.

O genocídio em Gaza, portanto, não é apenas um conflito regional, mas um reflexo moral e estrutural da política contemporânea. Ao fim de dois anos, o enclave tornou-se o epicentro visível da degradação ética e institucional do nosso tempo, revelando como a lógica da segurança e do poder tem suplantado a própria noção de humanidade. Gaza é hoje o espelho em que o sistema internacional se contempla e fracassa, incapaz de afirmar os princípios que fundaram o direito e a convivência global após 1945. Diante dessa barbárie, não há neutralidade possível: o modo como os Estados e as instituições internacionais têm atuado destrói não apenas o futuro da Palestina, mas o próprio sentido contemporâneo de humanidade.
Juan Filipe Loureiro Magalhães

'Lawrence da Arábia' e Gaza: cem anos de areia, sangue e ilusões

Entre o mito britânico e o caos palestiniano, T. E. Lawrence – o protagonista do filme de David Lean – continua a cavalgar entre a História e a ficção. Cem anos depois, o deserto ainda é o mesmo. Só mudaram as armas, as fronteiras e os homens que prometem paz ou fazem guerra à frente das câmaras e dos microfones dos canais de televisão.

O deserto é um lugar ingrato para visionários. T. E. Lawrence percebeu isso tarde, mas Hollywood tratou de lhe dar uma eternidade dourada. Lawrence da Arábia (1962) é um daqueles filmes que envelhecem melhor do que as histórias que os inspiraram. Peter O’Toole brilha, as dunas cintilam e a epopeia parece quase espiritual.

Mas o verdadeiro Lawrence não era propriamente um poeta perdido na areia: era também um homem de gabinete, obcecado por mapas e fronteiras. O Império Britânico precisava de intérpretes e mediadores. Ele quis ser ambos. Falava árabe, mas pensava como um europeu do início do século XX, convicto de que podia corrigir um continente inteiro com boa vontade e engenharia.


Nos seus diários – ou melhor, em Os Sete Pilares da Sabedoria – há menos romantismo do que pragmatismo. Lawrence via o Médio Oriente como um corpo adormecido que precisava de um choque externo. E acreditava que esse choque seria judaico. Que o sionismo, recém-nascido, traria modernidade ao deserto e produtividade a uma terra onde, nas suas palavras, “o sol queima mais do que as ideias florescem”.

A lenda do “amigo dos árabes” é, no mínimo, uma meia verdade. Lawrence lutou ao lado das tribos árabes contra o Império Otomano, mas nunca deixou de ser um homem do Império Britânico. Via nos árabes coragem e fé, mas também desorganização e atraso. E via nos judeus, que começavam a regressar à Palestina, um modelo ocidental capaz de transformar ruínas em cidades.

A equação de Lawrence era simples e perigosa: o entusiasmo árabe com a disciplina judaica. “Arabia for the Arabs, Judea for the Jews”, escreveu. Um slogan que hoje faria tremer qualquer diplomata da ONU ou negociador de paz. Lawrence sonhava com fronteiras limpas, como linhas traçadas num papel. Mas o deserto nunca foi um mapa. É, na verdade, uma metáfora. E ele, com todo o seu fervor idealista, acabou engolido por ela.

Num hotel de Londres, em 1919, Lawrence sentou à mesma mesa o príncipe Faisal, representante dos árabes, e Chaim Weizmann, líder do movimento sionista. Serviu chá, traduziu, sorriu. Acreditava que aquele gesto simples podia mudar o curso da História.

Por alguns minutos, pareceu possível: os dois homens apertaram as mãos e assinaram um acordo que prometia colaboração entre árabes e judeus na futura Palestina. Chamaram-lhe Acordo Faisal-Weizmann. Só que durou o tempo de arrefecer a chávena e nem chegaram a beber o bule todo.

Lawrence, otimista incurável, achava que os povos podiam entender-se se partilhassem o mesmo dicionário. Descobriu tarde que a palavra “terra” (prometida) tem traduções incompatíveis.

Poucos meses depois, Lawrence visitou Gaza. Winston Churchill, então ministro das Colónias, também foi. O cenário parecia diplomático: multidões, bandeiras, discursos. Mas a rua gritava “morte aos judeus”, enquanto os ingleses pensavam que eram aplausos. Lawrence percebeu as manifestações hostis, mas calou-se. Aprendeu o que o Ocidente ainda hoje não entende: no Médio Oriente, o entusiasmo e o ódio soam quase iguais. A sua utopia multicultural derreteu-se como gelo no deserto. Cem anos depois, Gaza continua a repetir o mesmo coro, agora amplificado por megafones e drones. O idealismo europeu virou ruído de fundo num conflito sem data de validade. E se Lawrence pudesse ver o estado do mundo que quis reformar, talvez escrevesse o epitáfio que lhe faltou: “Aqui jaz a ingenuidade.”

David Lean pegou nessa tragédia política e transformou-a num épico existencial. O cinema fez o que sempre faz quando não sabe lidar com a política: filmou o deserto e calou as causas.

Em Lawrence da Arábia, não há judeus, nem Weizmann, nem acordos de paz. Há luz, poeira, vento e o olhar azul de Peter O’Toole. Lean filmou a solidão, não a diplomacia.

A areia tornou-se símbolo de pureza quando, na realidade, escondia cadáveres e ressentimentos. Foi um golpe de génio e de manipulação. A lenda venceu a História. Hollywood lavou o sangue com estética e deu-nos um herói trágico onde havia um burocrata sonhador.

Lawrence acreditava que os árabes precisavam dos judeus, e que os judeus precisavam da terra. Hoje, essa fórmula parece uma ironia cruel.

Israel floresceu – tecnológico, urbano, próspero, mas também violento. Gaza definhou, pobre, sitiada, furiosa, até ser dominada pelo Hamas.

A profecia cumpriu-se pela metade. Lawrence subestimou a força da humilhação. Pensou que o progresso económico traria paz espiritual. Esqueceu-se de que identidade não se compra com infraestrutura. A sua visão de “cooperação produtiva” morreu logo que o primeiro colono ergueu uma bandeira. Era um idealista em guerra com o realismo britânico e com o orgulho árabe. Um homem que acreditava em pontes, mas acabou apenas a construir metáforas.

Corta para 2025. Donald Trump, mediador de um novo acordo de paz entre Israel e o Hamas. O homem que já vendeu tudo – do casino ao patriotismo – decide vender também a paz. A diferença é que Trump acredita que ela se faz com assinaturas em direto e slogans em prime time. Até ver… Lawrence, pelo menos, acreditava em ideias. Trump acredita em manchetes.

Mas ambos partilham algo essencial: a mesma ilusão de que o deserto pode ser domesticado. Ver Trump a posar entre Netanyahu e líderes árabes para selfies históricas é ver a caricatura do sonho de Lawrence, a mesma encenação imperial, só com menos poeira e mais marketing.

Há algo profundamente literário neste ciclo de promessas e fracassos. Gaza é hoje o espelho daquilo que Lawrence não quis aceitar: o deserto nunca foi o problema, o homem é que é.

Os impérios mudaram, os mediadores mudaram, as armas modernizaram-se, mas o solo é o mesmo. E o silêncio entre duas orações continua a ser o verdadeiro campo de batalha. Lawrence da Arábia ensinou-nos que o deserto é belo de longe, mas impossível de habitar. O mesmo vale para a paz.

Se há lição a tirar de Lawrence e dos seus sucessores, é esta: o deserto nunca se engana. Ouve todas as promessas, vê todos os acordos e continua imóvel.

Lawrence acreditava que podia desenhar um mundo melhor com régua e tinta. Trump acredita que pode fazê-lo com um tweet e depois com uma “Gaza Riviera”. Nenhum deles percebeu que o deserto não lê comunicados. E enquanto o Ocidente insiste em “resolver o Médio Oriente” como quem resolve um sudoku diplomático, o deserto continua a observar, paciente, sarcástico, eterno. As praias de Gaza, antes refúgios de lazer, transformaram-se com o conflito. São agora apenas lugares de sobrevivência e memória.

A seca na seara dos valores

O processo civilizatório se assemelha a uma régua que mede a evolução de costumes, princípios e valores, avanços e retrocessos. A régua está a mostrar, hoje, uma era de retrocessos, com a decadência moral (a libertinagem), a regressão social (as novas gerações são menos respeitosas ou educadas do que as anteriores), a perda de valores e a crença de que princípios como família, autoridade e religião estão sendo enfraquecidos.

Nem sempre ocorrem mudanças que emolduram a grandeza do Homem, principalmente ante a paisagem de devastação que flagra a crescente litigiosidade entre seres e Nações, a desvairada competividade no campo dos negócios e empreendimentos, a luta acirrada entre grupos, alas e até credos religiosos, cada qual com a ambição de brilhar na galeria dos maiores e melhores. O evangelismo subiu ao palco do espetáculo. A política acende a chama da polarização, sob a velha bandeira da luta de classes, como se constata na peroração eleitoral do presidente Luiz Inácio, que volta a bater no surrado refrão do “nós contra eles”.


Apesar de certos avanços fluírem sob a teia de pesquisas científicas em muitas áreas, como as ciências biomédicas, a inteligência artificial, a agricultura, a maquinaria produtiva, é inegável que, no sagrado nicho dos valores, a Humanidade vê arrefecido seu ideário de valores éticos.

A ambição, a luta do poder pelo poder, a inveja, a mentira, as falsidades que campeiam e impregnam a interlocução entre as pessoas, enfim, a ideia de que se deve tirar proveito de tudo constituem, entre outros, os braços que puxam o planeta para o seio de nossa ancestralidade. Olhe-se para esse mundo que dá adeus à ética. Olhe-se para a ética do governo de Donald Trump, amplamente debatida e criticada por especialistas, órgãos de fiscalização e opositores. O império Trump – pasmem! – cobra do governo Trump compensação equivalente a R$ 1,2 bilhão por investigações contra ele. Segundo o ‘New York Times’, a situação não tem paralelo na história dos EUA. Muitos dos funcionários do Departamento de Justiça responsáveis por aprovar os pagamentos foram indicados pelo republicano e atuaram como seus advogados. O caso envolve conflito de interesses, o uso da presidência para ganho pessoal e o enfraquecimento de normas e instituições éticas.

O nosso passado foi marcado pela valorização do compromisso. Os nossos pais e avós, ao firmarem negócios, garantiam pela palavra dada ao seu parceiro, o fechamento do acordo. Vi meu pai vendendo ou comprando terras e gado sob a força da palavra e do aperto de mão. Os papéis no cartório apenas finalizavam uma liturgia sagrada: a força da palavra. O débito, o crédito, a crença, a aceitação, a rejeição de alguma coisa tinham por trás o compromisso explícito pela palavra. A identidade das pessoas era ancorada na palavra e nos princípios que regiam a vida do cotidiano. Claro, havia desavenças. E até mortes no universo de famílias que lutavam entre si pelo poder. Mas um certo respeito se via até entre rivais.

A educação era um monumento de grandeza. Os pais lutavam, suavam, apuravam seus recursos para formar os filhos. Os recursos não eram investidos em bolsas de valores. Eram guardados em velhos e pesados cofres ou sob o colchão. Formar um filho, dar a ele a educação para enfrentar os desafios do futuro, compunha o sonho dos chefes e família. Orgulhavam-se de sua família bem-educada, bem instruída.

O educador era uma referência. De saber, de grandeza, de boa orientação, de conjunção de valores. Os professores realizavam seu labor com grande senso de responsabilidade, cobrando dos discentes disciplina e rigor no cumprimento das tarefas.

À propósito, pinço a lição da palestra de um rabino por ocasião de um casamento. A historinha se alastra num vídeo que circula nas redes sociais. Um ex-aluno encontra seu professor, aproxima-se dele e pergunta: “lembra de mim”? Responde o rabino: “Não, quem é você? Ah, você deve ter sido meu aluno”. O rapaz relembra a história, quando na escola, viu um colega com um lindo e caro relógio. Surripiou o relógio do amigo. Que, ao constatar o roubou, abriu o bico. Quem foi, quem não foi? Balbúrdia. O professor fechou a porta e pediu que todos formassem uma fila. O raptor ficou desesperado. Iria ser flagrado pois o professor iria procurar o relógio em todos os bolsos. Pediu para todos fecharem os olhos. E assim conseguiu recuperar o roubo. O ex-aluno: “professor, o senhor salvou minha alma, minha dignidade. O senhor sabe que fui eu”. O mestre: “mas eu nunca soube que foi você. Eu também estava de olhos fechados”.

Belo exemplo de educador. Que não tinha intenção de punir, mas a de transmitir o legado de consideração pelo outro. Uma aula de Dignidade. Que cai bem nesses tempos de acusações recíprocas, de falsidades, de ódio, de guerras fratricidas. Somos um mundo cheio de carências materiais. A fome ataca e ainda mata milhões. Mas a fome espiritual, essa que esvazia nossos sentimentos, destrói nossa seara de valores, ataca grupos e classes, com foco mais forte nos habitantes de cima da pirâmide social, movidos pelo impulso da ambição. Qual a razão? A vontade de poder. Nietzsche escreveu sobre “A vontade de poder”. Após sua morte, a irmã Elizabeth publicou uma coletânea de notas inéditas. Ali se lê: “Você quer um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso! E vocês também são essa vontade de poder – e nada além disso”.

Essa vontade, no meio da crise que a democracia vive na contemporaneidade, expande a era dos extremos, dos conflitos e da radicalização.