Desde os primeiros dias da ofensiva, o discurso oficial israelense sinalizou a natureza totalizante da operação. Embora o governo de Israel tenha declarado que o objetivo da operação era unicamente a destruição das capacidades militares do Hamas, a retórica e as ações sugeriram algo mais abrangente. Nas palavras do próprio ministro de defesa de Israel, Yoav Gallant, proferidas em 9 de outubro de 2023: “Estamos impondo um cerco total à Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”. A declaração, amplamente divulgada por veículos de imprensa internacionais, inaugurou uma política de cerco absoluto e de desumanização institucionalizada. Talvez a guerra nunca tenha sido uma resposta militar ao Hamas, mas sim um projeto de aniquilação coletiva, conduzido sob a lógica colonial de punição e erradicação.
Em outubro de 2025, o massacre na Faixa de Gaza completou dois anos. O conflito rapidamente transformou-se em um processo de devastação sem precedentes no século XXI. Em um território de apenas 365 km², habitado por cerca de 2,2 milhões de pessoas, foram lançadas quase 85 mil toneladas de explosivos. A intensidade dos ataques torna a região o território mais devastado per capita e por área de que se tem registro na era contemporânea.
Segundo o Ministério da Saúde local, 67 mil pessoas foram mortas desde o início da ofensiva, além de provavelmente uma dezena de milhares que estão sob os escombros. Entre as vítimas, 30 mil mulheres e meninas e 18 mil crianças e adolescentes. Outras 170 mil pessoas ficaram feridas, e o enclave registra hoje o maior número de crianças amputadas do mundo, com mais de 4 mil casos. Aproximadamente 80% dos edifícios e residências foram destruídos ou danificados. O volume de entulho de construção atinge 50 milhões de toneladas, ou cerca de 137 quilos por metro quadrado, número 14 vezes maior do que o total de detritos gerados por todos os conflitos armados do mundo desde 2008.
A dimensão humanitária da tragédia é igualmente alarmante. Estima-se que 500 mil pessoas, cerca de 22% da população, vivem em situação de fome extrema. A destruição de sistemas de água, energia e saúde, associada ao bloqueio quase total de insumos, agravou o colapso sanitário e empurrou a população para condições de sobrevivência precárias. Segundo a revista The Lancet (2025), a expectativa de vida dos homens caiu de 75,5 para 36 anos, e a das mulheres de 75,5 para 44 anos.
O genocídio em Gaza também nos apresentou a militarização da inteligência artificial e a algoritmização da morte (MAGALHÃES, 2025), processo pelo qual a decisão sobre quem vive e quem morre é mediada por sistemas automatizados de vigilância, cálculo e seleção de alvos. Drones, bancos de dados biométricos e softwares de rastreamento transformam a eliminação de corpos em uma operação estatística, esvaziada de responsabilidade moral. A “guerra”, nesse sentido, torna-se um exercício de administração tecnológica da vida, em que a morte é produzida com precisão matemática e legitimada pela linguagem da eficiência. A racionalidade algorítmica, ao reduzir a existência humana a parâmetros de risco e probabilidade, consolida a desumanização como política de Estado e insere o genocídio palestino na lógica mais ampla da governança automatizada da violência, típica do século XXI.
O colapso humanitário em Gaza manifesta-se também na experiência cotidiana da fome e do desespero. As longas filas por alimentos e água, muitas vezes sob bombardeios, transformaram o que deveria ser a busca por sobrevivência em um ato letal. Relatos de agências humanitárias descrevem pessoas mortas ao tentar alcançar caminhões de ajuda ou recolher grãos entre os escombros, enquanto outras percorrem quilômetros sob fogo cruzado em busca de um pedaço de pão. Cerca de 2.600 pessoas morreram e quase 20 mil foram feridas por disparos de arma de fogo efetuados por agentes de segurança da Gaza Humanitarian Foundation (GHF) ou pelas tropas de Israel enquanto buscavam alimentos.
O sofrimento humano, nesse contexto, assume uma dimensão psicológica e coletiva: famílias inteiras vivem sob trauma permanente, marcadas pela perda e pelo medo constante. Crianças manifestam sintomas de colapso emocional, insônia, mutismo e crises de ansiedade em um ambiente onde o ruído das explosões substituiu o silêncio da noite. O cotidiano, esvaziado de qualquer segurança, tornou-se a própria coreografia da precariedade: existir passou a significar sobreviver entre ruínas.
A recente libertação de Omar Yahya Al-Qarinawi, adolescente palestino com autismo, provocou uma comoção internacional genuína, mas também revelou o abismo moral que estrutura o olhar do mundo sobre o conflito. A imagem de sua fragilidade exposta, após meses de encarceramento sem julgamento, deveria ter despertado uma reflexão sobre a violência sistêmica que sustenta o regime de ocupação. Contudo, a narrativa dominante limitou-se a tratar o episódio como exceção humanitária e não como sintoma de uma política de aprisionamento em massa.
Atualmente, milhares de palestinos encontram-se detidos em prisões israelenses, incluindo cerca de duzentas mulheres e seiscentas crianças e adolescentes, muitos submetidos a tortura, isolamento e privações sistemáticas. Essa prática, consolidada como técnica de governo, constitui uma das expressões mais perversas do controle colonial. Nesse contexto, é inevitável evocar Hannah Arendt, para quem o mal moderno se realiza na banalização da violência e na indiferença moral de seus executores. A libertação de Omar, ainda que celebrada, não interrompe o funcionamento dessa máquina desumanizadora, apenas a expõe.
O genocídio em Gaza, portanto, não é apenas um conflito regional, mas um reflexo moral e estrutural da política contemporânea. Ao fim de dois anos, o enclave tornou-se o epicentro visível da degradação ética e institucional do nosso tempo, revelando como a lógica da segurança e do poder tem suplantado a própria noção de humanidade. Gaza é hoje o espelho em que o sistema internacional se contempla e fracassa, incapaz de afirmar os princípios que fundaram o direito e a convivência global após 1945. Diante dessa barbárie, não há neutralidade possível: o modo como os Estados e as instituições internacionais têm atuado destrói não apenas o futuro da Palestina, mas o próprio sentido contemporâneo de humanidade.
Juan Filipe Loureiro Magalhães
Segundo o Ministério da Saúde local, 67 mil pessoas foram mortas desde o início da ofensiva, além de provavelmente uma dezena de milhares que estão sob os escombros. Entre as vítimas, 30 mil mulheres e meninas e 18 mil crianças e adolescentes. Outras 170 mil pessoas ficaram feridas, e o enclave registra hoje o maior número de crianças amputadas do mundo, com mais de 4 mil casos. Aproximadamente 80% dos edifícios e residências foram destruídos ou danificados. O volume de entulho de construção atinge 50 milhões de toneladas, ou cerca de 137 quilos por metro quadrado, número 14 vezes maior do que o total de detritos gerados por todos os conflitos armados do mundo desde 2008.
A dimensão humanitária da tragédia é igualmente alarmante. Estima-se que 500 mil pessoas, cerca de 22% da população, vivem em situação de fome extrema. A destruição de sistemas de água, energia e saúde, associada ao bloqueio quase total de insumos, agravou o colapso sanitário e empurrou a população para condições de sobrevivência precárias. Segundo a revista The Lancet (2025), a expectativa de vida dos homens caiu de 75,5 para 36 anos, e a das mulheres de 75,5 para 44 anos.
O genocídio em Gaza também nos apresentou a militarização da inteligência artificial e a algoritmização da morte (MAGALHÃES, 2025), processo pelo qual a decisão sobre quem vive e quem morre é mediada por sistemas automatizados de vigilância, cálculo e seleção de alvos. Drones, bancos de dados biométricos e softwares de rastreamento transformam a eliminação de corpos em uma operação estatística, esvaziada de responsabilidade moral. A “guerra”, nesse sentido, torna-se um exercício de administração tecnológica da vida, em que a morte é produzida com precisão matemática e legitimada pela linguagem da eficiência. A racionalidade algorítmica, ao reduzir a existência humana a parâmetros de risco e probabilidade, consolida a desumanização como política de Estado e insere o genocídio palestino na lógica mais ampla da governança automatizada da violência, típica do século XXI.
O colapso humanitário em Gaza manifesta-se também na experiência cotidiana da fome e do desespero. As longas filas por alimentos e água, muitas vezes sob bombardeios, transformaram o que deveria ser a busca por sobrevivência em um ato letal. Relatos de agências humanitárias descrevem pessoas mortas ao tentar alcançar caminhões de ajuda ou recolher grãos entre os escombros, enquanto outras percorrem quilômetros sob fogo cruzado em busca de um pedaço de pão. Cerca de 2.600 pessoas morreram e quase 20 mil foram feridas por disparos de arma de fogo efetuados por agentes de segurança da Gaza Humanitarian Foundation (GHF) ou pelas tropas de Israel enquanto buscavam alimentos.
O sofrimento humano, nesse contexto, assume uma dimensão psicológica e coletiva: famílias inteiras vivem sob trauma permanente, marcadas pela perda e pelo medo constante. Crianças manifestam sintomas de colapso emocional, insônia, mutismo e crises de ansiedade em um ambiente onde o ruído das explosões substituiu o silêncio da noite. O cotidiano, esvaziado de qualquer segurança, tornou-se a própria coreografia da precariedade: existir passou a significar sobreviver entre ruínas.
A recente libertação de Omar Yahya Al-Qarinawi, adolescente palestino com autismo, provocou uma comoção internacional genuína, mas também revelou o abismo moral que estrutura o olhar do mundo sobre o conflito. A imagem de sua fragilidade exposta, após meses de encarceramento sem julgamento, deveria ter despertado uma reflexão sobre a violência sistêmica que sustenta o regime de ocupação. Contudo, a narrativa dominante limitou-se a tratar o episódio como exceção humanitária e não como sintoma de uma política de aprisionamento em massa.
Atualmente, milhares de palestinos encontram-se detidos em prisões israelenses, incluindo cerca de duzentas mulheres e seiscentas crianças e adolescentes, muitos submetidos a tortura, isolamento e privações sistemáticas. Essa prática, consolidada como técnica de governo, constitui uma das expressões mais perversas do controle colonial. Nesse contexto, é inevitável evocar Hannah Arendt, para quem o mal moderno se realiza na banalização da violência e na indiferença moral de seus executores. A libertação de Omar, ainda que celebrada, não interrompe o funcionamento dessa máquina desumanizadora, apenas a expõe.
O genocídio em Gaza, portanto, não é apenas um conflito regional, mas um reflexo moral e estrutural da política contemporânea. Ao fim de dois anos, o enclave tornou-se o epicentro visível da degradação ética e institucional do nosso tempo, revelando como a lógica da segurança e do poder tem suplantado a própria noção de humanidade. Gaza é hoje o espelho em que o sistema internacional se contempla e fracassa, incapaz de afirmar os princípios que fundaram o direito e a convivência global após 1945. Diante dessa barbárie, não há neutralidade possível: o modo como os Estados e as instituições internacionais têm atuado destrói não apenas o futuro da Palestina, mas o próprio sentido contemporâneo de humanidade.
Juan Filipe Loureiro Magalhães

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