sexta-feira, 2 de agosto de 2024
A insurgência verde
Antes mesmo de se difundir o que vem sendo chamado de consciência ambiental, começavam a ter visibilidade, entre nós, manifestações populares espontâneas de outra variante dessa consciência. A que pode ser definida como consciência prática da relação homem-natureza, a consciência do vivido.
Migrantes vindos da roça, em recantos de favelas, na beira de riachos, nas sobras de terra urbana, semearam hortas e pomares, na tradição dos tempos coloniais das terras comunitárias. Acompanhei em São Paulo e no subúrbio a proliferação, nessa perspectiva, de versões populares do que Ernst Götsch, na Bahia, em seu notável experimento de regeneração produtiva do solo, chama de agrofloresta.
O antagônico da destruição decorrente da expansão da economia neoliberal, do capitalismo rentista, lucrativo no curto prazo e anticapitalista no tempo histórico. A desvalorização de tudo que não é imediatamente lucrativo, como tradições e pessoas.
Um senso comum de amadores da economia foi ocupando o lugar do que o pensador italiano Antonio Gramsci definiu como bom senso. A satanização de Gramsci pelos porta-vozes dessa modalidade de pobreza mental é bem expressão da visão redutiva de mundo dos patronos do lucro sem moral. Ou o que Thompson, em estudo célebre, define como economia moral, a que motivou a derrubada da Bastilha em 1789.
Coisa de gente tosca que se autodefine “de direita”, não porque saiba o que quer e o que pode, mas justamente porque não o sabe. Os que definem como de esquerda, supondo estigmatizá-los, quem e o que lhes revela as irracionalidades e a mentalidade do caos. Gente daquela melancólica reunião de governo de 22 de abril de 2020, quando o ministro da área ambiental sugeriu a possibilidade legal de, através de normas infralegais, contornar e violar as regras ambientais passando por baixo do arame farpado da lei.
Direita, como a brasileira, que não tem propriamente medo do comunismo, pois não sabe o que ele é. Tem, sim, medo do conhecimento cientificamente fundamentado que explica a realidade e suas tensões inovadoras. Tem medo do humanismo da tradição popular. Afirma-se conservadora, quando é apenas reacionária. Agarra-se ao presente de contradições e irracionalidades lucrativas porque tem medo das transformações sociais que emancipam e libertam as vítimas da injustiça econômica e da opressão social.
Basicamente, seus agentes sabem que não têm competência para construir o país do futuro nem para nele viver. Cospem no amanhã da pátria e no seu futuro histórico. É o escarro da sociedade do absurdo.
É justamente a concepção popular da questão ambiental, em países como o nosso, um dos refúgios da tradição conservadora, como expressão de um modo de vida excluído das relações econômicas dominantes. Último reduto dos grandes legados da história social e cultural, das pequenas maravilhas do saber dos simples.
Âmbito em que o ser humano se reconhece como ser totalizador e de totalidade em movimento. Isto é, como ser conectado com todos os domínios da vida na relação entre o homem e a natureza, o todo que propõe desafios e dá sentido à vida. Nessa perspectiva, as lutas sociais são lutas contra a vida sem sentido. Essa é a visão de mundo de esquerda. O resto é resto.
Quem é o protagonista desse mundo da liberdade, da superação, da humanização do homem e da transformação social? Teve momento em que os pensadores sociais demonstravam que o protagonista era a classe operária. Mas a sociedade capitalista sujeitou e fragilizou a classe trabalhadora ao minimizar o trabalho e transformar o próprio desemprego em fator de lucro e de lucratividade.
O sujeito da nova realidade possível é o homem simples, sujeito da contradição representada pelas vítimas incapturadas do desenvolvimento econômico socialmente excludente.
É nessa perspectiva que a questão ambiental não é apenas a questão do meio ambiente, mas a questão social da relação homem-natureza, a relação mediadora da necessidade de transformação social. A que propõe o homem de necessidades como autor das mudanças sociais. O homem não como produtor de coisas, de porcas e parafusos.
O homem dessa realidade é produtor do seu destino possível. Seu modo residual de ser, de viver e sobreviver e de pensar é fundamento da crítica de um modo capitalista de lucrar que já não coincide com um modo capitalista de participar nem mesmo na produção. Milhões de desempregados são disso o documento vivo.
No mundo inteiro, são muitíssimas as formas de insurgência contra a devastação da natureza e o negócio da destruição ambiental. O que com Lefebvre defino como insurgência da vida residual e insubmissa de resistência à alucinada economia da destruição lucrativa.
José de Souza Martins
Migrantes vindos da roça, em recantos de favelas, na beira de riachos, nas sobras de terra urbana, semearam hortas e pomares, na tradição dos tempos coloniais das terras comunitárias. Acompanhei em São Paulo e no subúrbio a proliferação, nessa perspectiva, de versões populares do que Ernst Götsch, na Bahia, em seu notável experimento de regeneração produtiva do solo, chama de agrofloresta.
O antagônico da destruição decorrente da expansão da economia neoliberal, do capitalismo rentista, lucrativo no curto prazo e anticapitalista no tempo histórico. A desvalorização de tudo que não é imediatamente lucrativo, como tradições e pessoas.
Um senso comum de amadores da economia foi ocupando o lugar do que o pensador italiano Antonio Gramsci definiu como bom senso. A satanização de Gramsci pelos porta-vozes dessa modalidade de pobreza mental é bem expressão da visão redutiva de mundo dos patronos do lucro sem moral. Ou o que Thompson, em estudo célebre, define como economia moral, a que motivou a derrubada da Bastilha em 1789.
Coisa de gente tosca que se autodefine “de direita”, não porque saiba o que quer e o que pode, mas justamente porque não o sabe. Os que definem como de esquerda, supondo estigmatizá-los, quem e o que lhes revela as irracionalidades e a mentalidade do caos. Gente daquela melancólica reunião de governo de 22 de abril de 2020, quando o ministro da área ambiental sugeriu a possibilidade legal de, através de normas infralegais, contornar e violar as regras ambientais passando por baixo do arame farpado da lei.
Direita, como a brasileira, que não tem propriamente medo do comunismo, pois não sabe o que ele é. Tem, sim, medo do conhecimento cientificamente fundamentado que explica a realidade e suas tensões inovadoras. Tem medo do humanismo da tradição popular. Afirma-se conservadora, quando é apenas reacionária. Agarra-se ao presente de contradições e irracionalidades lucrativas porque tem medo das transformações sociais que emancipam e libertam as vítimas da injustiça econômica e da opressão social.
Basicamente, seus agentes sabem que não têm competência para construir o país do futuro nem para nele viver. Cospem no amanhã da pátria e no seu futuro histórico. É o escarro da sociedade do absurdo.
É justamente a concepção popular da questão ambiental, em países como o nosso, um dos refúgios da tradição conservadora, como expressão de um modo de vida excluído das relações econômicas dominantes. Último reduto dos grandes legados da história social e cultural, das pequenas maravilhas do saber dos simples.
Âmbito em que o ser humano se reconhece como ser totalizador e de totalidade em movimento. Isto é, como ser conectado com todos os domínios da vida na relação entre o homem e a natureza, o todo que propõe desafios e dá sentido à vida. Nessa perspectiva, as lutas sociais são lutas contra a vida sem sentido. Essa é a visão de mundo de esquerda. O resto é resto.
Quem é o protagonista desse mundo da liberdade, da superação, da humanização do homem e da transformação social? Teve momento em que os pensadores sociais demonstravam que o protagonista era a classe operária. Mas a sociedade capitalista sujeitou e fragilizou a classe trabalhadora ao minimizar o trabalho e transformar o próprio desemprego em fator de lucro e de lucratividade.
O sujeito da nova realidade possível é o homem simples, sujeito da contradição representada pelas vítimas incapturadas do desenvolvimento econômico socialmente excludente.
É nessa perspectiva que a questão ambiental não é apenas a questão do meio ambiente, mas a questão social da relação homem-natureza, a relação mediadora da necessidade de transformação social. A que propõe o homem de necessidades como autor das mudanças sociais. O homem não como produtor de coisas, de porcas e parafusos.
O homem dessa realidade é produtor do seu destino possível. Seu modo residual de ser, de viver e sobreviver e de pensar é fundamento da crítica de um modo capitalista de lucrar que já não coincide com um modo capitalista de participar nem mesmo na produção. Milhões de desempregados são disso o documento vivo.
No mundo inteiro, são muitíssimas as formas de insurgência contra a devastação da natureza e o negócio da destruição ambiental. O que com Lefebvre defino como insurgência da vida residual e insubmissa de resistência à alucinada economia da destruição lucrativa.
José de Souza Martins
Isolacionismo velho de guerra
Famílias sinti alemãs em frente a barracão para isolá-las de rRavensburg,, em 1937 |
O radicalismo de direita está em ascensão na Europa. Temos que nos defender contra ele. Temos de educar os jovens!
Christian Pfeil, sobrevivente sinti dos campos nazistas
A próxima guerra total
A cada dia cresce meu temor de estarmos caminhando para uma guerra total. Não mais “conflitos locais”; guerra sem limites, com múltiplas Hiroshimas e Nagasakis em todos os continentes.
Isso porque vejo escalarem os confrontos entre Ocidente x outras potências, assim como falas cada vez mais abertas de agentes da guerra afirmando a inevitabilidade de um confronto total. Chamo “agentes da guerra” àqueles ligados ao complexo industrial-militar-consumista, inclusive autoridades da OTAN e dos “inimigos” desta. Há, ainda, movimentos geopolíticos explicáveis como preparação da guerra total.
Analisando as próximas eleições nos EUA a revista The Economist afirmou recentemente (25/07/24): “O senhor Trump tem uma visão [equivocada] de magnata do ramo imobiliário, de que a força é simplesmente músculo; a força é ampliada quando enraizada em princípios”. Todos os agentes da guerra sabem muito bem que a força e a segurança nacional não se baseiam apenas em mais músculos, isto é, armas; é fundamental manter coerência com certos princípios. No entanto, insistem em fechar os olhos à frequência com que nações ocidentais quebram aquele que é, talvez, o mais fundamental de seus princípios fundadores e legitimadores: os direitos humanos! Assim procedendo, enfraquecem suas nações.
Interessante notar que a visão de mundo dos chineses se fundamenta na noção, que remonta à Confúcio, de “poder nacional abrangente”. Nesta, o “abrangente” explicita a necessidade de equilíbrio entre os vários pilares da força nacional, entre eles a educação, a ciência, a satisfação popular com sua vida etc. Neste último sustentáculo, as mais ricas nações ocidentais estão patinando ou regredindo desde os anos 1980, ao contrário da China!
Como ainda reivindicar o monopólio da defesa dos direitos humanos e continuar a enviar armas para Netanyahu tentar se manter no poder aniquilando palestinos e ampliando a guerra para outras frentes?
Quanto às falas, o último ministro da defesa do Reino Unido, ainda no cargo, disse ser inevitável a guerra total. Neste corrente julho de 24, um ex-secretário geral da OTAN, Lord George Robertson, recém nomeado para rever a política de defesa da Inglaterra, disse que “a Inglaterra e seus aliados enfrentam um quarteto mortal, composto por Rússia, China, Iran e Coréia do Norte, que agem em conjunto contra o Oeste, compartilhando armas, componentes e inteligência”. E não é verdade que a Inglaterra e seus aliados agem em conjunto contra aqueles quatro, também compartilhando armas, componentes e inteligência? Assim agindo, negando o princípio da coerência e da realidade, como a semelhança entre ações dos dois campos, não estão os “agentes da guerra” tentando nos preparar para o confronto total, desejado apenas por eles e seus sócios?
E não aprenderam ainda, esses agentes da guerra, após milhares de conflitos, que não existe vitória total e permanente baseada na força? No mundo pós-Hiroshima e Nagasaki, não é tempo de mentes menos obtusas assumirem o comando?
Isso porque vejo escalarem os confrontos entre Ocidente x outras potências, assim como falas cada vez mais abertas de agentes da guerra afirmando a inevitabilidade de um confronto total. Chamo “agentes da guerra” àqueles ligados ao complexo industrial-militar-consumista, inclusive autoridades da OTAN e dos “inimigos” desta. Há, ainda, movimentos geopolíticos explicáveis como preparação da guerra total.
Analisando as próximas eleições nos EUA a revista The Economist afirmou recentemente (25/07/24): “O senhor Trump tem uma visão [equivocada] de magnata do ramo imobiliário, de que a força é simplesmente músculo; a força é ampliada quando enraizada em princípios”. Todos os agentes da guerra sabem muito bem que a força e a segurança nacional não se baseiam apenas em mais músculos, isto é, armas; é fundamental manter coerência com certos princípios. No entanto, insistem em fechar os olhos à frequência com que nações ocidentais quebram aquele que é, talvez, o mais fundamental de seus princípios fundadores e legitimadores: os direitos humanos! Assim procedendo, enfraquecem suas nações.
Interessante notar que a visão de mundo dos chineses se fundamenta na noção, que remonta à Confúcio, de “poder nacional abrangente”. Nesta, o “abrangente” explicita a necessidade de equilíbrio entre os vários pilares da força nacional, entre eles a educação, a ciência, a satisfação popular com sua vida etc. Neste último sustentáculo, as mais ricas nações ocidentais estão patinando ou regredindo desde os anos 1980, ao contrário da China!
Como ainda reivindicar o monopólio da defesa dos direitos humanos e continuar a enviar armas para Netanyahu tentar se manter no poder aniquilando palestinos e ampliando a guerra para outras frentes?
Quanto às falas, o último ministro da defesa do Reino Unido, ainda no cargo, disse ser inevitável a guerra total. Neste corrente julho de 24, um ex-secretário geral da OTAN, Lord George Robertson, recém nomeado para rever a política de defesa da Inglaterra, disse que “a Inglaterra e seus aliados enfrentam um quarteto mortal, composto por Rússia, China, Iran e Coréia do Norte, que agem em conjunto contra o Oeste, compartilhando armas, componentes e inteligência”. E não é verdade que a Inglaterra e seus aliados agem em conjunto contra aqueles quatro, também compartilhando armas, componentes e inteligência? Assim agindo, negando o princípio da coerência e da realidade, como a semelhança entre ações dos dois campos, não estão os “agentes da guerra” tentando nos preparar para o confronto total, desejado apenas por eles e seus sócios?
E não aprenderam ainda, esses agentes da guerra, após milhares de conflitos, que não existe vitória total e permanente baseada na força? No mundo pós-Hiroshima e Nagasaki, não é tempo de mentes menos obtusas assumirem o comando?
A banalização do mal e o fim da política
Enquanto peço o café, o olhar desvia-se para a televisão. Páro. Estremeço ao ver a notícia que ocupa o ecrã. Um homem, um avô, violou o neto de três anos. Sento-me e continuo a olhar, enojada. Em estúdio, o apresentador lança a discussão. “Este homem merecia o quê?”. Ouve-se, ainda fora do plano, alguém a responder “castração”. Os minutos seguintes são para uma psicóloga discorrer sobre como a castração química, por não impedir o desejo, pode tornar os abusos ainda mais perversos.
No dia a seguir, deixo as crianças na escola e, junto ao portão, tropeço no fim de uma conversa. Comenta-se a forma como algumas pessoas se recusam a dar prioridade a grávidas e bebés. Um pai, de ar plácido, reage perante um desses relatos, com uma voz que não denuncia sequer irritação. “Esse homem merecia a pena de morte”. Nenhuma reação.
Ponho os auscultadores e sigo pela rua, ouvindo um podcast. A reportagem do The New York Times é sobre o que será um Trump 2.0 e fala sobre a forma como o agora candidato à Casa Branca tem um plano para remover os obstáculos que refrearam o seu primeiro mandato.
O microfone vai para Ed Young, de Brick, New Jersey, que está num comício de Donald Trump. É 78.º comício de Trump a que vai. “Espero que quando for reeleito se acabe o Mr. Nice Guy. Espero que haja um acerto de contas”. E como? “Bem, sabe, esta é a minha fantasia, aquilo de que este país precisa mesmo. Quer dizer, não vai acontecer. Na minha fantasia aquilo de que precisamos é de um julgamento ao estilo de Nuremberga para este país. E que todos os eleitos democratas sejam julgados por traição. E, se forem condenados, que sejam castigados, tal e qual como os nazis em Nuremberga. Espero por Deus ver criminosos malvados e traidores como os democratas serem presos e condenados”.
A castração, a pena de morte, a prisão política. O desejo de aniquilação do outro, motivado por um suposto sentido de justiça. A forma como a racionalidade desapareceu de um discurso público inflamado por uma indignação contínua e estéril, está a ter efeitos profundos.
Pode dizer-se que são efeitos de linguagem. Talvez a comentadora que, em estúdio, fala na castração estivesse a agir sob o efeito da repulsa óbvia que o crime provoca. Talvez o apresentador não se tenha sequer questionado sobre os efeitos que a pergunta que lançou tem sobre quem acaba de ser confrontado com um ato tão abjeto. Certamente que o pai que conversava à porta da escola não pretendia matar quem recusa dar a vez a uma grávida. E o apoiante de Trump usa mesmo a expressão “fantasia” e tem o cuidado de afirmar que aquilo que deseja “não vai acontecer”. E, no entanto, esta forma de agir sobre o mundo com a vontade de aniquilar o outro é cada vez mais frequente, ao ponto de se tornar banal. É com a banalização do mal que estou preocupada.
Estamos perante o fim da política. Aniquilar aquele com quem não se concorda, de forma real ou simbólica, é renunciar à política. Quem nos instiga a indignação excitada, quem promove o ódio sobre o outro, quer verdadeiramente que renunciemos à política, deixando o campo aberto para que sejamos conduzidos sem reação para um mundo que promete lei e ordem, mas que se alimenta do caos necessário para que uma pequena elite reine incontestada sobre a turba oprimida e alienada.
Do que precisamos não é de indignação. É de pensamento crítico. Aquele que obriga a tudo o que está fora de moda. Ouvir, ler, refletir, atrasando a reação, aceitar o erro, mudar de ideias, abdicar de certezas. Seremos ainda capaz disso?
No dia a seguir, deixo as crianças na escola e, junto ao portão, tropeço no fim de uma conversa. Comenta-se a forma como algumas pessoas se recusam a dar prioridade a grávidas e bebés. Um pai, de ar plácido, reage perante um desses relatos, com uma voz que não denuncia sequer irritação. “Esse homem merecia a pena de morte”. Nenhuma reação.
Ponho os auscultadores e sigo pela rua, ouvindo um podcast. A reportagem do The New York Times é sobre o que será um Trump 2.0 e fala sobre a forma como o agora candidato à Casa Branca tem um plano para remover os obstáculos que refrearam o seu primeiro mandato.
O microfone vai para Ed Young, de Brick, New Jersey, que está num comício de Donald Trump. É 78.º comício de Trump a que vai. “Espero que quando for reeleito se acabe o Mr. Nice Guy. Espero que haja um acerto de contas”. E como? “Bem, sabe, esta é a minha fantasia, aquilo de que este país precisa mesmo. Quer dizer, não vai acontecer. Na minha fantasia aquilo de que precisamos é de um julgamento ao estilo de Nuremberga para este país. E que todos os eleitos democratas sejam julgados por traição. E, se forem condenados, que sejam castigados, tal e qual como os nazis em Nuremberga. Espero por Deus ver criminosos malvados e traidores como os democratas serem presos e condenados”.
A castração, a pena de morte, a prisão política. O desejo de aniquilação do outro, motivado por um suposto sentido de justiça. A forma como a racionalidade desapareceu de um discurso público inflamado por uma indignação contínua e estéril, está a ter efeitos profundos.
Pode dizer-se que são efeitos de linguagem. Talvez a comentadora que, em estúdio, fala na castração estivesse a agir sob o efeito da repulsa óbvia que o crime provoca. Talvez o apresentador não se tenha sequer questionado sobre os efeitos que a pergunta que lançou tem sobre quem acaba de ser confrontado com um ato tão abjeto. Certamente que o pai que conversava à porta da escola não pretendia matar quem recusa dar a vez a uma grávida. E o apoiante de Trump usa mesmo a expressão “fantasia” e tem o cuidado de afirmar que aquilo que deseja “não vai acontecer”. E, no entanto, esta forma de agir sobre o mundo com a vontade de aniquilar o outro é cada vez mais frequente, ao ponto de se tornar banal. É com a banalização do mal que estou preocupada.
Estamos perante o fim da política. Aniquilar aquele com quem não se concorda, de forma real ou simbólica, é renunciar à política. Quem nos instiga a indignação excitada, quem promove o ódio sobre o outro, quer verdadeiramente que renunciemos à política, deixando o campo aberto para que sejamos conduzidos sem reação para um mundo que promete lei e ordem, mas que se alimenta do caos necessário para que uma pequena elite reine incontestada sobre a turba oprimida e alienada.
Do que precisamos não é de indignação. É de pensamento crítico. Aquele que obriga a tudo o que está fora de moda. Ouvir, ler, refletir, atrasando a reação, aceitar o erro, mudar de ideias, abdicar de certezas. Seremos ainda capaz disso?
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