sexta-feira, 21 de junho de 2019

Aberta a sucessão presidencial de 2022

Que mais poderia querer o presidente Jair Bolsonaro com menos de seis meses de governo? Por unanimidade, coisa rara, o Congresso autorizou-o a gastar mais R$ 250 bilhões sem os quais não fecharia as contas do governo deste ano. Foi o tal crédito suplementar aprovado na semana passada.

Até o final de julho, ou na volta do recesso de meio de ano, o Congresso aprovará a reforma da Previdência, apesar de Bolsonaro e do seu pouco empenho para tal. A reforma produzirá efeitos a médio e a longo prazo. Mas no curto influenciará a tomada de decisões para investimentos futuros.

Isso significa que Bolsonaro tem garantido pela frente um período de relativa tranquilidade de pelo menos 9 a 12 meses. Para um governo sem norte seria um ganho e tanto. Quando nada, não precisaria ter pressa em criar novos problemas. Mas quem disse que o capitão sabe ser paciente?


Para espanto de aliados e adversários, ele aproveitou, ontem, uma viagem a São Paulo para lançar-se candidato à reeleição. Sim, nem bem completou seis meses no cargo, e sem que ninguém o provocasse, Bolsonaro disse e repetiu que se o povo quiser ele topa governar por 8 anos.

Daqui por diante, o Congresso e demais instituições da República levarão em conta o que aditiu Bolsonaro quando tiverem que deliberar sobre qualquer coisa. Foi aberta a sucessão presidencial de 2022. E o principal candidato já está em campanha como se viu ontem na Marcha com Jesus.

De colete à prova de bala sob uma camiseta da marcha que reuniu mais de 3 milhões de pessoas na capital paulista, Bolsonaro comportou-se como candidato. No alto de um palanque, em meio a líderes evangélicos, repetiu o gesto de quem atira com uma arma. A plateia delirou. Só faltou pedir votos.

O capitão sente-se cada vez mais forte. Em duas semanas, demitiu quatro generais do seu governo, dois deles ministros. Demitiu o presidente do maior banco de investimento público. Esvaziou os poderes do Chefe da Casa Civil. E viu quem poderia lhe fazer sombra diminuir de estatura.

O ministro Sérgio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, foi atingido por denúncias que mancham sua trajetória como juiz. O ministro Paulo Guedes, da Economia, ex-Posto Ipiranga, indicou um nome para substituir Joaquim Levy na presidência do BNDES. Bolsonaro preferiu outro ligado aos seus filhos.

Está em curso uma reforma ministerial que só Bolsonaro conhece a extensão – ele e os garotos, naturalmente, além do guru da família. Desidrata-se a chamada ala militar do governo. Sobrou até para o general Augusto Heleno: o chefe da Agência Brasileira de Informações é agora um homem do presidente.

Ninguém tem mais emprego garantido. E ai de quem contrariar as vontades de Bolsonaro. O aviso vale também para o Congresso. Bolsonaro orientou seus eleitores a pressionarem os deputados para que revoguem a decisão do Senado contrária ao decreto da farra das armas. Os deputados ficaram furiosos.

Imagem do Dia

San Bartolome Albaicin, Granada (Espanha), Margaret Merry

Bancada do despudor tenta salvar seu privilégio

A crise deu aos deputados e senadores uma súbita sensação de utilidade. É como se a estagnação econômica e a ruína fiscal cutucassem a consciência dos congressistas, intimando-os a agir. Nunca houve no Congresso tanta gente disposta a aprovar uma reforma da Previdência. É decrescente o grupo dos que contestam a necessidade da reforma. Discute-se no máximo o tamanho da mexida.

Mas há um problema. Invariavelmente, os parlamentares vinculados a corporações tendem a encontrar soluções para os problemas apenas na Previdência dos outros. Na reta final da tramitação na Câmara, intensificaram-se os lobbies. E como na política os males vêm sempre para pior, os próprios políticos deflagraram um movimento de autoproteção.

Um grupo suprapartidário se move nos subterrâneos para amolecer as regras de aposentadoria dos parlamentares. Hoje, deputados e senadores desfrutam de uma maravilha chamada PSSC —Plano de Seguridade Social dos Congressistas. Com 35 anos de contribuição, pode-se amealhar uma aposentadoria de mais de R$ 33 mil. A reforma acabou com esse plano especial e instituiu regras de transição draconianas para quem já desfruta da mamata.

O diabo é que o pedaço mais despudorado da corporação parlamentar resiste à ideia de largar o osso. Nada de novo sob o Sol. Os privilegiados sempre enxergam seus privilégios como direitos. Por isso tentam mantê-los. O privilégio, quando é institucionalizado, vira religião. Espera-se que até o dia da votação essa bancada dos desavergonhados perceba que a sociedade já não se dispõe a dizer amém.

A Amazônia está à venda quem der menos leva

O desmatamento na Amazônia continua crescendo e afasta cada vez mais a chance de o país cumprir a meta de redução prevista para 2020. Pelos compromissos assumidos em 2010, o Governo Federal definiu que chegaria no próximo ano com uma taxa anual de 3.900 km2 de perda da cobertura florestal na Amazônia. No entanto, em 2018 esse índice chegou a 7.900 km2 (o maior da década) e os sistemas de alerta já indicam aumento de 20% do desmatamento entre agosto de 2018 e abril de 2019. Esses números mostram que Brasil continua destruindo um de seus maiores patrimônios sem gerar melhoria de qualidade de vida na região, que continua com indicadores socioeconômicos abaixo da média nacional.


Esse processo de devastação ocorre pelo enfraquecimento de políticas públicas de comando e controle do desmatamento, pela ausência de uma estratégia para desenvolvimento da região que valorize a floresta em pé e pela existência de leis federais e estaduais que estimulam o roubo de florestas públicas, que são desmatadas para assegurar sua posterior privatização. De fato, essas regras fundiárias que incentivam o desmatamento estão sofrendo uma leva de alterações preocupantes desde 2017, que tem passado despercebida por boa parte da sociedade brasileira. Em todas essas mudanças, a justificativa é de modernização da regularização fundiária e eliminação de burocracia. Porém, na prática as novas leis acabam favorecendo a grilagem.

A primeira grande alteração na legislação fundiária, que renovou os estímulos e benefícios à grilagem de terras na Amazônia, ocorreu em 2017, quando o Congresso Nacional aprovou a Medida Provisória nº 759/2016. Dentre os benefícios dessa nova regra estão a ampliação da área passível de titulação para 2.500 hectares (mil hectares a mais que a norma anterior); a anistia a quem invadiu terra pública entre 2005 e 2011, bem como a definição de valores muito abaixo do mercado na privatização dessas áreas. Os prejuízos para a sociedade trazidos por essa mudança de regras começam a ser melhor conhecidos agora. Um estudo do Imazon demonstrou que o governo já alocou para privatização uma área de 27,8 milhões de hectares na Amazônia. Se toda essa área for vendida pelas regras atuais, a sociedade brasileira poderá custear subsídios na ordem de 118 bilhões de reais, que representam a diferença entre o valor de mercado das terras e o valor cobrado pelo governo de acordo como a lei. Isso significa que os brasileiros custearão o roubo de terras públicas. Além disso, a privatização dessa área pode levar a um desmatamento adicional de 16.000 km2 até 2027, com emissões de gases do efeito estufa na ordem de 6,5 megatoneladas de CO2, que equivale a 15 anos de emissões do setor de energia no Brasil.

Após a alteração da lei federal, os estados da Amazônia também iniciaram uma nova onda de mudanças nas suas regras fundiárias que adota a mesma direção: legaliza o que era ilegal e estimula mais roubo de terra pública no futuro. A existência de leis nas diferentes esferas de governo sobre o tema ocorre porque a lei federal se aplica apenas às terras da União e cada estado tem o poder de estabelecer suas regras para tratar das áreas estaduais. Estimativas do Imazon apontam 33% da Amazônia Legal não possuem destinação fundiária ou não tem informação disponível publicamente a respeito. Desse total, a maior parte pertence aos estados (75%). Por isso, as regras estaduais importam até mais que as regras federais para decidir a destinação de uma enorme área de florestas públicas não destinadas.

O primeiro a alterar a lei foi o Amapá com um projeto de lei que tramitou em 2017 em regime de urgência por 50 dias na Assembleia Estadual, contando com apenas uma audiência pública para discutir o projeto. Publicada em 2018, a nova lei estadual é quase uma cópia da federal, adotando os mesmos problemas, como os valores irrisórios para a venda de terras. A lei estadual permite inclusive que o estado use a mesma planilha de preços de terra elaborada pelo Incra.

Continuando a leva de mudanças, em 2019 o Mato Grosso alterou seu código de terras de 1977, que era um dos mais antigos em vigência na Amazônia. A tramitação ocorreu em 133 dias, já excluído o período de recesso da Assembleia Legislativa, e não há registro de audiência pública. A mudança foi parcial e retirou algumas exigências que eram cumpridas apenas no papel, além de fazer alguns ajustes. Por exemplo, a lei anterior exigia que todas as áreas estaduais fossem tituladas por meio de um processo de licitação. De fato, o órgão de terra publicava editais de licitação em diário oficial, mas na prática só recebia um lance: o do ocupante atual do imóvel. Outra mudança, essa positiva, foi estabelecer cláusulas que devem ser cumpridas pelos beneficiários dos títulos de terra para manterem o imóvel, como respeito à legislação ambiental e impedimento de trabalho análogo à escravidão. A falha em cumprir essas cláusulas em até 5 anos após a titulação enseja a retomada do imóvel pelo estado.

Porém, a lei estadual do Mato Grosso em vigor também favorece a grilagem de terras públicas de três formas. Primeiro, não institui um marco temporal para início de ocupações que podem ser regularizadas. Ou seja, uma área pública ocupada após a publicação da lei poderá ser regularizada se cumprir os requisitos legais, o que incentiva a continuidade das ocupações ilegais de terra pública no estado. Segundo, não define um tempo mínimo de ocupação da área para dar direito à regularização nos casos de venda, que abrangem áreas de até 2.500 hectares. Assim, alguém que ocupar uma área pública por apenas 1 ano poderia solicitar a regularização. Terceiro, flexibiliza os requisitos de regularização ao permitir a titulação para quem não ocupa o imóvel diretamente e não pratica cultura efetiva na área. A combinação desses três fatores resulta na possibilidade de regularizar aqueles que passarem a controlar uma área pública estadual a qualquer tempo, mesmo sem implementar atividades ou residir na área, o que são características típicas da especulação de terras.

Mais recentemente, a leva de afrouxamento das regras fundiárias chegou no Pará, estado campeão de conflitos agrários na Amazônia nos últimos quinze anos. Numa tramitação de apenas 33 dias e sem audiência pública, a Assembleia Legislativa aprovou em 11 de junho uma nova lei de regularização fundiária nas terras estaduais, que aguarda sanção do governador. O projeto foi encaminhado pelo próprio governo estadual sob justificativa de que as novas regras trarão a modernização da regularização fundiária no estado. No entanto, há vários aspectos controversos no texto aprovado.

Por exemplo, se sancionado, o projeto cria um novo conceito de legítimo ocupante de terra pública, que inclui pessoas que possuem outros imóveis e que não precisam morar na terra ocupada ou exercer qualquer atividade agrária na área, desde que pretendam fazê-lo no futuro. Ou seja, assim como na lei do Mato Grosso, trata-se do grileiro que especula terra para lucrar com a venda posterior do imóvel. O texto também elimina uma previsão legal que exigia cobrança de preços de mercado na venda de terras públicas. Mesmo com essa regra até então em vigor, um estudo do Imazon estimou que o governo do Pará deixaria de arrecadar R$ 9 bilhões na venda de terras, por praticar preços abaixo do mercado. Com a retirada dessa exigência, o órgão de terra não poderá ser contestado para aplicar valores de mercado.

Outro aspecto que merecia um amplo debate público no Pará é a possibilidade de privatização de florestas do estado. O texto aprovado na Assembleia Estadual considera que áreas públicas ocupadas ilegalmente com grande proporção de florestas conservadas estariam aptas à venda. Porém, ao admitir essa possibilidade, o projeto acabará estimulando a privatização das florestas públicas e entrará em conflito com o instrumento de concessão florestal previsto na Lei Federal nº 11.284/2006, que é aplicada pelo governo estadual.

Essa decisão sobre o destino das florestas paraenses necessita de uma discussão mais ampla e técnica, já que a privatização dessas áreas vai permitir que parte seja desmatada legalmente, além do risco de avanço do desmatamento ilegal. O Pará é o maior emissor de gases do efeito estufa entre os estados brasileiros, especialmente por conta do desmatamento de suas florestas. Mas até o momento o estado não possui uma política de mitigação e adaptação às mudanças do clima e o Fórum Paraense de Mudanças Climáticas aguarda há mais de dois meses a assinatura pelo Governador de um novo decreto para voltar a se reunir. Ou seja, a criação de um grupo de discussão de mudanças do clima, sem qualquer poder decisório, está aguardando há mais tempo que a tramitação e aprovação um projeto de lei que pode ter um impacto direto nas florestas públicas estaduais, incluindo desmatamento e emissões associadas de gases do efeito estufa.

Os casos de alterações das leis com trâmite acelerado e sem suficiente debate público chamam atenção para a baixa transparência das Assembleias Legislativas dos estados. Uma semana após a aprovar o PL no mesmo dia em primeiro e segundo turno, a Assembleia Legislativa do Pará ainda exibia uma notícia em seu sítio eletrônico de que apenas a votação de primeiro turno havia ocorrido. E o texto aprovado não estava disponível para consulta. A transparência também é deficiente nos órgãos estaduais de terra da Amazônia. Em média, apenas 22% das informações de divulgação obrigatória estavam disponíveis nos sítios eletrônicos destes institutos até 2017.

Esses exemplos mostram a dificuldade de fazer valer o interesse da sociedade ao invés de privilegiar interesses privados quando se discute terra e floresta na Amazônia. Governos federal e estaduais priorizam a venda do patrimônio da sociedade, replicando um modelo que historicamente gera desmatamento, conflitos e não traz progresso social à população da região. Diante da baixa transparência no destino das áreas públicas, é essencial que a sociedade se manifeste pela criação de grupos permanentes de acompanhamento da regularização fundiária pelos órgãos de terra. Do contrário, a tendência será de privatização, mas pelas regras atuais, quem chegar antes e pagar menos ficará com a terra.
Brenda Brito e Jeferson Almeida (Imazon)

Um presidente bicameral

Julian Jaynes é o autor de uma das mais esquisitas teorias da psicologia. Ele propôs que a mente de homens antigos (de até uns 3.000 anos atrás) não operava de modo metaconsciente, isto é, era incapaz de elaborar pensamentos sobre pensamentos, crenças sobre crenças etc.

Para Jaynes, a mente primitiva era bicameral, funcionando através de respostas automáticas não-conscientes calcadas principalmente no hábito. Volições assumiam a forma de comandos neurológicos que se apresentavam como vozes, uma espécie de alucinação auditiva.

Não sei bem quanto ao homem antigo, mas Jaynes talvez tenha descrito Jair Bolsonaro, que parece mesmo estar seguindo seus comandos internos sem jamais refletir se eles ajudam ou atrapalham o governo, se são bons ou não para a sociedade.

Com efeito, o presidente parece agir desvinculado de qualquer plano estratégico. Algumas de suas propostas configuram regressões civilizatórias, como é o caso do decreto que generaliza a posse e o porte de armas e das mexidas na legislação de trânsito que reforçam os piores hábitos dos maus motoristas.

Outras tantas são apenas folclóricas, como o fim do horário de verão e as fritatas de ministros e outros auxiliares. Aparentemente, o governo cogita até de reverter a tomada de três pinos. Nunca fui um entusiasta do novo plugue, mas, se há uma ideia de jerico, é mandar voltar atrás agora que os custos da mudança já estão praticamente pagos.

O caos é tamanho que, de vez em quando, Bolsonaro até acerta, como é o caso da proposta de acabar com o teste toxicológico para motoristas profissionais (o tipo de exame escolhido nunca fez o menor sentido) e o veto à proibição da cobrança de bagagem em companhias aéreas.

Tenha ou não Bolsonaro uma mente bicameral, nada indica que ele alterará seu estilo de gestão. Isso significa que devemos nos preparar para mais três anos e meio de balbúrdia governamental.

Pensamento do Dia


A democracia se mata aos poucos

Candidato bilionário fala em reduzir programas sociais tem apoio de trabalhadores de baixa renda, outro, casado três vezes, empunha uma agenda retrógrada de costumes e tem o apoio de grupos religiosos em nome de"valores familiares", governante perde a eleição quando a economia do país está em seu melhor momento, campanha "antissistema" gera uma composição parlamentar ainda mais elitista e, finalmente, a pressão antiglobalização vem de partidos da extrema-direita.


A lista, que deixa de fora a eleição de um presidente adepto da liberação do porte de armas num dos países mais violentos do mundo, ora desestimula quaisquer esforços de compreensão da conjuntura ora produz obras apocalípticas que decretam o fim da história ou da civilização ocidental. Adam Przeworski não segue nem um caminho nem outro. O cientista político polonês, que se notabilizou por explicar como a democracia se compatibiliza com o capitalismo, não se compromete a oferecer 'a' resposta, mas despista as explicações que sugerem a globalização como causa de todos os males.

Przeworski não se incomodou com as estatísticas que mostram 23,6 mil livros publicados no século XX em inglês e registrados na Widener, a maior das bibliotecas de Harvard, contendo a palavra 'crise'. Tascou um "Crises of Democracy" (ainda sem tradução em português), como título do livro que lançará no segundo semestre pela editora da Universidade de Cambridge.

O autor recorda o historiador conservador inglês Thomas Macaulay que, em 1842, nove anos antes de Karl Marx, disse que o sufrágio universal era incompatível com a democracia. Recupera, então, sua formulação de que a democracia foi a resultante do compromisso de partidos da classe trabalhadora e sindicatos em aceitar uma economia de mercado desde que partidos burgueses e organizações empresariais convergissem com alguma redistribuição de renda. É a partir do rompimento desse compromisso, que busca suas respostas.

O equilíbrio funcionou enquanto os governos foram capazes de regular as condições de trabalho, implantar programas de seguridade social e equalizar oportunidades, de um lado, e promover investimentos e reagir ao declínio dos ciclos econômicos, de outro. Quando os sindicatos perderam a capacidade de organizar trabalhadores e os partidos socialistas, suas raízes e sua capacidade de se distinguir no mercado político, diz, o compromisso foi ameaçado. Com o declínio acentuado da participação da renda do trabalho e um contínuo aumento na desigualdade, combinado ao menor crescimento da economia e a uma menor mobilidade social, o rompimento parecia inevitável.

Nascido em Varsóvia, de pais médicos, em 1940, nove meses depois da ocupação alemã, Przeworski deixou a Polônia aos 21 anos, graduado em Filosofia e Sociologia, rumo a um doutorado na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos. De volta a Polônia, acabou deixando novamente o país em 1981 depois do golpe militar comandado pelo general Jaruzelski. Professor de universidades americanas, europeias e latino-americanas, assentou-se na Universidade de Nova York desde 1995. Em 2010 ganhou o Prêmio Johan Skytte, concedido pela Universidade de Uppsala e considerado o Nobel da ciência política.

Seus vínculos com o Brasil vêm do início da década de 1970, quando visitou o país pela primeira vez. Professor de fundadores do Cebrap, fez a conferência inaugural das comemorações dos 50 anos da instituição, quando apresentou algumas das conclusões do livro a ser publicado. Apesar de alguma intimidade com o Brasil, não se demora nas citações ao país, mas tira uma conclusão que pode ajudar a entender o que virá depois da névoa que domina a conjuntura nacional. De sua acurada lente sobre o cenário global, conclui que os militares deixaram de ser um ator político em quase todo o mundo. Os radicais de extrema-direita querem o poder pelo voto e, a despeito (ou por causa) do absenteísmo, têm sido bem-sucedidos. A corrosão da democracia é decorrência de um desgaste lento das instituições e não de uma tomada abrupta e violenta do poder.

Não escreve isso de ouvir falar. Faz jus ao empirismo que lhe deu fama. Entre 1788, data da primeira eleição nacional (nos Estados Unidos) de que se tem registro, até 2008, o poder político trocou de mãos no mundo como resultado de 544 eleições e 577 golpes. Em 68 países, incluindo Rússia e China, nunca houve mudança de poder entre partidos como resultado de uma eleição. Em apenas 13, democracia e capitalismo coexistem há um século sem interrupções porque fincados no compromisso de concessões de lado a lado.

São eloquentes os sinais apresentados da erosão desse compromisso. Os partidos que lideravam a arena política na maior parte dos países no início do século XX enfrentaram uma primeira chacoalhada no fim dos anos 1990 até o 'treme-terra' devastador pós-crise financeira de 2008. A falência dos partidos tradicionais é concomitante ao embaralhamento do seu espectro ideológico.

Nos países europeus, as pesquisas que cita indicam que, por larga maioria, os eleitores consideram 'obsoletas' as noções de direita e esquerda, mas a quase totalidade ainda é capaz de se localizar no espectro. Ou seja, os eleitores ainda têm uma identidade política mas já não encontram um sistema partidário que a reproduza. Foi nesse desencontro que desabrochou a extrema-direita. Dois achados de Przeworski lhe são contemporâneos: a queda no comparecimento eleitoral e a dissociação entre produtividade crescente e salário em declínio.

Esta, talvez, seja uma das dificuldades do pesquisador polonês em enquadrar o Brasil, uma vez que a ascensão da extrema-direita no país não se deu na presença nem de um nem de outro. O comparecimento eleitoral, em parte, pela obrigatoriedade do voto, pouco se altera no Brasil. Além disso, o que se assistiu, nos anos petistas em que germinaram o bolsonarismo, foi uma valorização salarial que superou o aumento de produtividade.

Apesar disso, o empobrecimento ainda está longe de igualar as condições de vida em que nasceram os regimes fascistas na primeira metade do século passado. Przeworski prefere denominar de populista a ascensão da extrema-direita hoje. E a identifica como irmã gêmea do neoliberalismo, por ambas conceberem a ordem social como uma geração espontânea, uma do povo, outra do mercado. Na visão de mundo de populistas e neoliberais, não há lugar para as instituições.

A raiva e a hostilidade dos eleitores prosperam sem filtros institucionais. A mais prosaica das pesquisas citadas no livro é aquela realizada nos Estados Unidos durante o feriado de Ação de Graças de 2017. Os encontros de celebração da data, tão popular nos EUA quanto o Natal no Brasil, que reuniram convidados de diferentes distritos eleitorais, duraram de 30 a 50 minutos menos do que aqueles realizados entre moradores do mesmo distrito.

Przeworski conclui o livro fiel à advertência de que não ofereceria previsões "capazes de fazer a astrologia parecer uma ciência", mas duas de suas observações ficam a ressoar ao fim de suas 240 páginas. "As eleições são a sereia da democracia", diz. É a partir delas que as esperanças se renovam. Os eleitores votam, esperam e aceitam o resultado. Mas se, eleição após eleição, as políticas públicas permanecem inalteradas, independentemente de quem a tenha ganho, os eleitores concluem que a democracia não tem serventia.

Talvez por isso, Przeworski se declare um pessimista moderado. A ascensão da extrema-direita com mudanças dentro das regras do jogo pode ter como reação um espectro partidário de cores mais definidas, sem partidos social-democratas, como diz, aburguesados, ou de direita, proletarizados. Só não se espere que uma política elitizada opere essa paleta de cores mais vivas. Mas se o Senado americano é um clube de milionários, na Câmara emergem deputados como Alexandria Ocasio-Cortéz, ex-balconista e filha de imigrantes, eleita no Bronx (NY), pelo Partido Democrata, que quer aprovar uma taxação de 70% sobre os super-ricos para financiar a agenda ambiental.

A segunda observação é sobre a imperceptível destruição da democracia por ela mesma. O autor cita uma lei que o governo polonês conseguiu aprovar no parlamento obrigando a Corte Constitucional a examinar as moções por ordem de chegada. Como a fila faz com que uma ação demore 3,5 anos para chegar ao plenário, o governo tem todo esse tempo para fazer valer uma lei que pode vir a ser considerada inconstitucional.

Face a fatos congêneres nos três Poderes, no Brasil, o exemplo polonês parece inocente. Para pegar um único casuísmo, em 2015, o Congresso aprovou a PEC da Bengala, apresentada pelo então senador Pedro Simon (PMDB-RS) dez anos antes, aumentando de 70 para 75 a idade com a qual os ministros do Supremo Tribunal Federal se aposentam.

Os argumentos vitoriosos foram o de que a mudança acompanharia os ganhos etários da população brasileira, além de proporcionar uma economia aos cofres públicos, uma vez que, ao vincular todo o Judiciário, evitaria o acúmulo de aposentadorias e vencimentos de novos contratados. A mudança, no entanto, tirou da então presidente Dilma Rousseff a possibilidade de indicar cinco ministros da Corte que chegariam aos 70 anos antes de 2018. Ficará para o buraco negro da história a dúvida sobre o que teria sido da Lava-jato se a operação que pavimentou a ascensão de Jair Bolsonaro, hoje posta em xeque pelos áudios entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, teria sido tão amplamente chancelada por um Supremo com outra composição.

Besteirol empossado

Se você fizer uma análise das bobagens que se têm vivido, é um negócio impressionante. É um show de besteiras. Isso tira o foco daquilo que é importante. Tem muita besteira. Tem muita coisa importante que acaba não aparecendo porque todo dia tem uma bobagem ou outra para distrair a população, tirando a atenção das coisas importantes. Tem de parar de criar coisas artificiais que tiram o foco. Todo mundo tem de tomar consciência de que é preciso parar com bobagem
General Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-secretário de Governo da Presidência da República 

O papel das cidades globais

A questão internacional mais ventilada nos últimos anos foi o ressurgimento do nacionalismo, principalmente graças à eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos. Com a onda nacionalista, começamos a ver retrocessos em diversas áreas, notadamente na liberação do comércio internacional.

Essa, porém, não é a principal das várias tendências que estão moldando nosso futuro. Pode muito bem ser um “momento” e não um movimento de longo prazo. Esta é a tese de um importante texto postado poucas semanas atrás por Ivo Daalder, presidente do Chicago Council on Global Affairs. Ele escreveu: “A tendência mais importante de nossa época é a urbanização. Pela primeira vez na história, a população é mais urbana que rural. E o ritmo da urbanização está aumentando a olhos vistos. Só este ano as cidades ganharão 80 milhões de pessoas. São 200 mil por dia. A maioria delas está se mudando para cidades com 500 mil habitantes ou mais. As grandes cidades respondem por três quartos da oferta mundial de bens, serviços e empregos. Motores da prosperidade global, lugares como Londres, Tóquio, Chicago e Pequim cada vez mais influenciam o comportamento social em todo o mundo graças às ideias e à cultura que produzem”. Esse pano de fundo é essencial para compreendermos a crescente pressão exercida pelos prefeitos de grandes cidades para influenciar não apenas os governos de seus países, mas também as instituições internacionais.

Obviamente, nem tudo são flores. As dificuldades com que as megalópoles se deparam são o reverso da moeda. As grandes cidades do Primeiro Mundo são destinos preferenciais das fortes correntes migratórias da atualidade e, como temos visto frequentemente, alvos do terrorismo, com exemplos dramáticos em Nova York, Londres, Paris e Madri.

Mudanças climáticas têm um impacto, ao que tudo indica, crescente na vida urbana. A elevação do nível médio do mar poderá afetar profundamente as grandes cidades litorâneas. Tais áreas são grandes poluidoras da água e da atmosfera, respondendo por setenta por cento das emissões de CO2. Devido à falta de dinheiro e de vontade política ou competência por parte das autoridades, a poluição dos cursos d’água é uma dolorosa cena que os residentes de São Paulo são obrigados a contemplar diariamente.

O choro de um adulto que escreveu seu nome

Nada nem ninguém me emocionou mais nesta semana do que o pedreiro Carlos Leôncio. Ele tentou esconder o choro com braços e mãos, enquanto contava sorrindo à GloboNews sua conquista. “Há dois meses, na sala de informática, eu li e escrevi meu nome pela primeira vez na tela do computador. Cheguei em casa e quase não consegui dormir. De verdade. Juro por Deus. É maravilhoso, né?”

Carlos Leôncio é meu herói. Até me fez esquecer a ginástica frenética de flexões, flexibilizações e frituras de Bolsonaro, o soldado de Jesus que tem uma obsessão entre tantas: armas para todos. Passei batido pelo batom roxo da Marta, que no fim das contas era uma propaganda, mas fiquei de queixo caído com o salário de Tite, R$ 1,2 milhão por mês! O “professor” da Seleção ganha 345 vezes o salário de um professor de educação básica no Brasil.


O pedreiro que aprendeu a ler e escrever seu nome resgata o melhor de mim. Eu poderia me concentrar no escárnio de governos de esquerda e direita no Brasil, que insistem em desprezar a Educação. Poderia me deprimir porque 11,2 milhões de brasileiros não sabem ler nem escrever. São analfabetos. Fora os trabalhadores que se comunicam no WhatsApp apenas por áudio, porque escrevem errado e se envergonham. Fora o ministro da Educação que não sabe conjugar o verbo haver. Fora os políticos que maltratam nosso idioma. Fora os analfabetos funcionais que não conseguem interpretar um texto. Mas existe Carlos Leôncio.

O mesmo programa da GloboNews mostrou crianças em pé no porta-malas de um carro de passeio, indo para a escola no Tocantins. Com os ônibus escolares enguiçados e abandonados, o transporte foi improvisado no carro superlotado, sem cinto de segurança, corcoveando nos buracos. “A gente chega em casa com o corpo dolorido, mas vale a pena para conseguir vencer na vida”, disse uma estudante adolescente. A prefeitura de Natividade, a 270 km de Palmas, contratou o motorista, mas agora o afastou. E as aulas das crianças? E a preocupante evasão no ensino médio? E nosso lugar vexaminoso no ranking mundial?

Há exatos 10 anos, em 2009, escrevi. “Na próxima década, quem sabe o Brasil poderá finalmente descobrir qual deve ser o maior investimento do Estado. Como reduzir a violência e melhorar a segurança? Educação. Como diminuir a pobreza, a fome e a desigualdade? Educação. Como melhorar a saúde? Educação. Como aumentar a taxa de emprego? Educação. Começa quando a criança nasce. Não dá para esperar até 4 ou 6 anos. A carência emocional e intelectual na primeira infância é meio caminho perdido”.

Dez anos depois, saímos da esquerda para a direita e a Educação continua fora das prioridades. As ações mais incisivas do governo Bolsonaro e seus ministros nessa área são folclóricas, irrelevantes, nocivas. Bloqueio inicial de R$ 7,4 bilhões no orçamento da educação pública. Hinos no recreio. Slogans nacionalistas. Atestado ideológico de professores. Intervenção moral e cívica nas questões do Enem e nos livros sobre a ditadura. Estímulo a ensino religioso e domiciliar, o tal homeschooling.

A terceirização de deveres constitucionais do Estado, como educação e segurança, choca mais que o salário do Tite. O Brasil tem 11 milhões de jovens que não estudam nem trabalham. Carlos Leôncio, vi e revi seu depoimento. Inspirador. É maravilhoso, sim, ler e escrever. Os jovens precisam de livros, de computadores, de oportunidades, não de armas. Só o conhecimento liberta e salva.