terça-feira, 3 de setembro de 2019

Paisagem brasileira


O nome de Deus em vão, e a 'força única' das milícias

O juiz Marcelo Semer, escritor e ex-presidente da Associação Juízes pela Democracia, lembrou no Twitter o que Jair Bolsonaro pensava sobre milícias, em 2008: "O governo deveria apoiá-las, já que não consegue combater os traficantes. E talvez, no futuro, legalizá-las".

O futuro chegou. 

Bolsonaro não mudou de ideia. Em sua vida pública, se fez algum movimento, foi de ré. Retrocesso é com ele mesmo. No que tange ao desrespeito, à discórdia, e teorias da conspiração, é craque. Em fevereiro de 2018, já como candidato, voltou a defender a milícia, em entrevista a Jovem Pan.

"Tem gente que é favorável à milícia, que é a maneira que eles têm de se ver livres da violência. Naquela região onde a milícia é paga, não tem violência”, prega, sem constrangimento.

Hoje, no Rio, a milícia é responsável pelo desaparecimento de uma pessoa a cada dois dias. Sem contar cemitérios clandestinos descobertos pela policia, com dezenas de ossadas. E, acredite se puder, os milicianos estão se unindo para formar uma “força única”. Não é vaticínio. É arremate, do delegado Gabriel Ferrando, titular da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas (Draco).

A milícia sempre esteve por perto da família Bolsonaro. Flávio, o senador, empregou parentes de milicianos em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio. Condecorou o major da PM Ronald Pereira, quando já era investigado como um dos autores da matança de cinco jovens na antiga boate Via Show, em 2003, na Baixada Fluminense.

Um dos milicianos que participou do assassinato da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, era vizinho de condomínio do presidente. O filho do capitão namorou a filha do assassino, que está preso.

As ligações do capitão e sua família com a milícia não só ameaçam a segurança da população. Envergonham o País. No final de maio, quando o tio da primeira-dama Michelle foi preso acusado de atuar com a milicia do Distrito Federal, a renomada The Economist contou aos seus leitores sobre os laços da família (que diz ter Deus acima de tudo), com milicianos.

O afamado Fabrício Queiroz, descoberto por Veja morando em São Paulo, faz elo entre os Bolsonaro e a milícia. Queiroz foi testa de ferro de Flávio. A Policia Federal no Rio de Janeiro avançou nas investigações sobre o ex-motorista do senador. Mas está de mãos atadas pelo “grande herói nacional” Sergio Moro.

Desmoralizado publicamente, Moro viu Bolsonaro trocar a superintendência da PF do Rio. Sem explicação. O sociólogo José Cláudio Souza Alves, autor de “Dos barões ao extermínio, a história da violência na Baixada Fluminense”, não tem dúvidas: “Queiroz é uma “peça de dobradiça”, que liga a política institucional às ações criminosas.

Há 26 anos, Souza Alvez estuda organizações que atuam como grupos de extermínio no Rio de Janeiro. Esses criminosos são os principais suspeitos pelo assassinato da vereadora e seu motorista. Essa semana, completam-se 540 dias desde o assassinato. Até hoje não se sabe quem mandou matá-los.

As milícias crescem e se multiplicam no governo Bolsonaro. Há fermento para isso: pregação oficial da violência na cidade e no campo, desgoverno, o pacote de segurança do mal-afamado Moro, que defende a ampliação da letalidade policial com o excludente de ilicitude, e o discurso enfurecido do capitão: bandido bom é bandido morto.

O doloroso relato da mãe que teve o filho assassinado pela milícia no ano passado, em Nova Iguaçu, é, sem dúvida, a face mais atormentada da cruel realidade brasileira e sua “força única” paramilitar. “Antes, tínhamos medo dos filmes de terror na televisão. Hoje, vivemos o terror ao vivo”.

Caminhamos rapidamente para a República das Milícias. 
Mirian Guaraciaba

Por causa de índio, não

(Brasil) está quase na ingovernabilidade no tocante às reservas. A intenção dessas grandes reservas, e isso sempre se discutiu na ONU, é que, pela autodeterminação dos povos indígenas, seriam novos países no futuro
Jair Bolsonaro

Cabeça fria, apesar das chamas

Estou na Amazônia para mais uma viagem de aprendizado na região. Ela é vastíssima, e minha capacidade de aprender é lenta e sinuosa. A floresta tem cem mil espécies animais, 43 mil vegetais. As queimadas devem arder até outubro, a julgar pela experiência dos últimos anos.

Os ânimos parecem ter se acalmado. Angela Merkel deu o tom no G7 ao afirmar que é preciso fazer alguma coisa, sem dar a impressão de ser contra Bolsonaro.

Não se trata de um exercício de psicologia individual. Merkel é uma estadista, tem objetivos maiores, lida com pessoas complicadas como Trump. Percebeu talvez que Trump e Bolsonaro são frutos de uma época e que não podem ser tratados com os mesmos critérios do passado.

Bolsonaro anunciou que apresentaria uma política para a Amazônia. Mas, até o momento, afirmou apenas, em reunião com governadores, que era preciso explorar as terras indígenas.


Essa história de Bolsonaro com os índios brasileiros esbarra na Constituição. Para avançar sobre a superfície, precisa de emenda constitucional, e para avançar no subsolo indígena é necessária uma lei complementar, que Romero Jucá não conseguiu aprovar ao longo desses anos.

Algumas repercussões negativas ainda estão no horizonte: fundos suecos planejam deixar de investir no Brasil, compradores de couro, como a Timberland, querem se fechar para a nossa produção.

Importante lembrar que boicotes e sanções contra governos —pelo menos é a impressão que tenho ao longo dos anos que acompanhei — atingem as pessoas comuns e acabam fortalecendo os próprios governos visados.

As pessoas vivem grandes paixões políticas. O único caminho é mostrar a importância da floresta em pé, pelos seus serviços ambientais e pela riqueza de sua biodiversidade. Nada contra ninguém, é apenas prioritário divulgar o conhecimento científico sobre a floresta, os serviços ambientais que presta na regulação do clima, na segurança hidrológica, na captura do carbono.

No meio da semana, visitei o mercado Ver-o-Peso. É impressionante como convergem para ele os diferentes produtos amazônicos. Há 80 barracas de ervas medicinais e perfumes. Essas propriedades não são ainda comprovadas cientificamente. Mas a verdade é que a floresta e a sabedoria tradicional encontram um caminho suplementar para atenuar sofrimento e oferecer cuidados que nem o SUS pode oferecer.

O Itamaraty seguiu um novo rumo ao cobrar, no contexto do Acordo de Paris, o pagamento pela captura do carbono, já previsto. É muito melhor que pedir ajuda em horas difíceis. Não que a ajuda deva ser rejeitada. Mas, pensando bem nas dimensões do problema, 20 milhões de euros é o preço de dois apartamentos de luxo em Paris.

O importante é buscar os caminhos previstos no acordo. O governo Bolsonaro acha que o aquecimento global é uma invenção do globalismo marxista. É um pouco contraditório apoiar-se num acordo internacional de redução de emissões, considerando-a uma tarefa desnecessária.

Mas Bolsonaro decidiu continuar no Acordo de Paris. Por que não buscar também os benefícios que oferece? Um pouco de incoerência não faz mal a ninguém. Trump também não acredita no aquecimento global. Mas quer comprar a Groenlândia porque a região se tornará mais explorável com a temperatura em ascensão.

Existe hoje uma hostilidade populista às descobertas da ciência. No entanto, o caminho do conhecimento e da informação é essencial. Mesmo porque a maioria dos corações já deseja a floresta em pé. As manifestações no mundo inteiro demonstram isso. Mas revelam ainda pouca informação.

Os políticos brasileiros viajam muito para o exterior. Mas muito pouco para a Amazônia. A própria imprensa internacional é muito centrada em conflitos e pouco em universos ainda desconhecidos.

A sociedade brasileira está diante de um desafio. Certas escolhas, como já mostrou em livro Jared Diamond, podem selar o êxito ou o fracasso de um país.

A ideia básica é desenvolver a Amazônia de forma sustentável e inclusiva. O fato de não termos ainda conseguido esse objetivo não pode significar que é um erro.

Na verdade, isto está expresso em todos os planos regionais que o país destinou à Amazônia.

Bolsonaro acha que as pessoas o seguem em tudo. Não acredita nas pesquisas.

Curto-circuito

Não parece complicado. Coaf era para controlar atividades financeiras. Identificar operações atípicas e dar alarme. A Receita confere e cruza informações. Cada vez que um de nós se equivoca ou confunde dados na declaração de renda, recebe uma notificação e tem de provar com documentos o que informou. Nada de mais.


É bom que funcione assim, e todos os contribuintes sejam tratados de igual maneira. São mecanismos de controle. De compartilhamento de informações, inclusive com autoridades estrangeiras. Não de investigação. Quem investiga são outros canais. Mas estes, por vezes, só sabem que devem investigar ao receber sinais de alerta. Sem saber que há razões para isso, não pedem licença antes. Não adivinham.

Quando o STF obriga a sustar esse processo, ou políticos se alarmam porque houve sinais de alerta e as investigações começaram sem pedir licença, há uma mistura de canais. Um curto-circuito. É da mais elementar lógica: um órgão que existe para controlar tem de dar o alarme se algo parece estranho. E órgãos que existem para investigar então passam a investigar.

O que não se pode admitir, jamais, é que essas informações se tornem públicas antes da comprovação de que realmente houve má-fé ou delito. Isso é que é errado. Mas nunca vemos punição por vazamento de informação sigilosa, seja verdadeira ou falsa.

Aí ocorre outro curto-circuito. Fomos anestesiados pela distorção que recobre o delito do vazador sob o manto da proteção à fonte jornalística, assegurada pela Constituição. Esquecemos que há dados sigilosos. Vazá-los é crime. Apenas se a informação for falsa o jornalista passa a ser cúmplice ao divulgá-la — sob punição prevista em lei. Por isso, o bom profissional trata de investigar por conta própria. Mas quem vazou precisa ser punido logo, antes que o mal se espalhe.

O livre fluxo da energia democrática, essencial ao funcionamento das instituições, não pode ser confundido com curto-circuitos. Sobretudo quando se aproxima de poderosos, filhos e esposas.

Brasil de lixo


Seu garçom, faça o favor

Mesmo que o amemos com paixão, o Brasil é um país pouco fácil de se elogiar. Os tolos sempre acreditaram no marketing que nos vende como um paraíso tropical, onde tudo é belo e prazeroso, onde não há conflitos a encarar. Já os mais espertos perceberam a falácia do país da cordialidade e do risonho rosto ao sol, e protestam contra nossas dificuldades, das mais fundamentais às mais prosaicas, para o exercício do amor. O mestre Antônio Vieira, por exemplo, reclamava de nossos mosquitos que não paravam de picá-lo; assim como dom João VI ordenou a mudança para o Rio de Janeiro, porque não aguentava mais o mau cheiro nas ruas da Bahia.

Hoje, parte de nós, ao comentar o que somos, exerce uma lógica peculiar e muito original do que podemos chamar de “cultura de botequim”, que hoje domina a cultura brasileira em geral, depois de longo silêncio cuidadoso de desvalorização e de vergonha do que podíamos ser. Ou vir a ser.

A cultura de botequim se manifesta através de outra especialidade nacional, a “conversa de botequim”, à qual se dedicaram, com diferentes posturas e valores, poetas, romancistas e pensadores sobretudo cariocas. Entre eles, Noel Rosa pode ser considerado o pai da expressão. Grandes artistas como João do Rio, Marques Rebelo ou Nelson Rodrigues, entre tantos outros, nos fizeram conhecer bem esse mundo, em outros momentos do país. Pois, como toda criação dessa natureza, a cultura de botequim se transforma no tempo, conforme o que acontece e a influencia do lado de fora do botequim.

A conversa de botequim se caracteriza pela irresponsabilidade tóxica de seus praticantes, pela impertinência com que tratam assuntos pertinentes. No botequim, não se pensa duas vezes ao preferir a piada à verdade sem graça. Ninguém vacila em inventar um argumento falso para justificar o que pretende afirmar. Não se dá crédito ao que não serve para impor uma razão pouco razoável. Ganhara discussão é a prioridade, mesmo que não se saiba o que está certo ou errado, que não se dê muita importância à vitória. Mesmo que estejamos a espremer uma barata na sola do sapato, faremos isso porque é assim que se faz no mundo real dos heróis. Com um sorriso nos lábios, ainda que disfarçadamente triste.

No botequim, o valor de quem fala mais alto, de preferência aos gritos, será sempre superior ao de quem é capaz de raciocinar sem muito escândalo. No botequim, o que vale mesmo é o tapa lerdo nas costas e o sucesso junto a um público que busca diversão na absoluta normalidade.

O botequim é, antes de tudo, o lugar de seres normais; dos que serão sempre de um só jeito, os que não querem surpreender e não se surpreenderão. O lugar da paz conquistada pela ignorância.

O julgamento de nós mesmos é o da auto desvalorização, ainda que disfarçada pelo galicismo literário a nos garantir que essa é a arma mais poderosa contra quem não acredita em nós. Há sempre uma versão pejorativa para cada virtude que por ventura se descubra em nós.

Hoje, mais do que nunca, o cara no botequim é um machista que coça o saco e cospe no chão, a cultivar linguagem vagabunda e misógina como suprema demonstração de poder e grandeza. Ele não admite mulheres no botequim, porque elas só existem para serem usadas e injuriadas de diferentes modos. A mulher do outro será sempre mais passada, além de suspeita; enquanto a nossa, uma bênção de perfeição e virtude. A conversa de botequim não admite autocrítica, nem revisão da qualidade de matrimônios desgastados.

A cultura de botequim é o clímax da masculinidade tóxica, o supremo instante de humilhação do outro. O cara no botequim é capaz de considerar a morte de uma esposa querida como a libertação do viúvo para a gandaia. A doença fatal não passa de um pretexto para a traição (“sempre desconfiei desse aneurisma, ele nunca me cheirou bem”). E se a vítima chorar no enterro, o botequim dirá que é apenas mimimi, puro disfarce. O importante é uma fodinha por semana; e, se a mulher do outro for menos apetitosa ou sei lá o quê, dizer simplesmente: “Não humilha cara, kkkkkk”. O botequim pensará que vamos aprender e nos acostumar ao sofrimento.

'Civilizados'

Todas as guerras e civilizações não prestam para nada, não fizeram nada de bom. Só uma sangueira danada e gente de joelhos rezando pela paz
Henry Miller "O colosso de Marússia"

A tradição da mentira no Brasil

No editorial “Os Problemas da delação” (29/8) o jornal O Estado de S. Paulo endossou o “viés formalista” da tese do STF (na verdade, a meu ver, ela é bem mais que só isso) que resultou na libertação de Aldemir Bendine, o elemento que o PT instalou na presidência da Petrobras e do Banco do Brasil em boa parte do período em que passaram pelo “maior assalto consentido já registrado na historia da humanidade”. Não existe qualquer dúvida quanto à culpabilidade de Bendine nem dos seus comparsas mas o precedente poderá resultar na libertação de praticamente todos os envolvidos, a começar pelo ex-presidente Lula, sobre cuja culpabilidade também não paira a menor dúvida.

Vem de muito longe o processo de domesticação do brasileiro para deixar-se cavalgar pelo absurdo sem reagir. O sistema de educação jesuíta, a ordem religiosa que por 389 anos teve o monopólio régio da educação no Brasil, não partia de perguntas nem visava a aquisição de conhecimento. Era um sistema defensivo criado para sustentar a qualquer preço a “verdade revelada” que fundamentava o sistema de poder e de organização da sociedade em castas detentoras de privilégios hereditários ameaçados pela revolução democrática.


O truque consiste em despir toda e qualquer ideia a ser discutida da sua relação com o contexto real que a produziu para examiná-la como se existisse em si mesmo, desligada dos fatos ou pessoas às quais se refere. Sem sua circunstância, a ideia transforma-se num corpo inerte, ao qual não se aplicam juízos de valor. Assim esterilizado, o raciocínio é, então, fatiado nos segmentos que o compõem, sendo a coerência interna de cada um examinada isoladamente nos seus aspectos formais, segundo as regras da lógica abstrata, as únicas que podem ser aplicadas a esse corpo dissecado.

Se qualquer desses segmentos apresentar a menor imperfeição lógica ou puder ser colocado em contradição com qualquer dos outros, a imperfeição “contamina” o todo e o debatedor fica autorizado a denunciar como falso o conjunto inteiro, mesmo que, visto vivo e dentro do seu contexto, ele seja indiscutivelmente verdadeiro.

Como nenhuma proposição humana é capaz de passar incólume por esse exercício de dissecação a pessoa começa a duvidar da própria capacidade de discernimento. Desclassificados o senso comum (até hoje a base do sistema jurídico anglo-saxônico) e a razão como instrumentos bastantes para dirimir controvérsias, tudo acaba tendo de ser decidido por um juiz segundo uma regra artificial que deve ser vaga o bastante para permitir as mais variadas interpretações, de modo a conferir a esse juiz uma virtual onipotência.

Invocar o límpido preceito do “na dúvida, a favor do réu” para justificar o movimento que, visto no conjunto tem o óbvio propósito de manter a impunidade dos representantes do povo que traem seus representados — a própria negação do sentido de “democracia” — é um exemplo prático de como esse sistema põe a verdade a serviço da mentira e a lei a serviço do crime. Seguido à risca ele garante que nenhum réu com dinheiro suficiente para pagar advogados possa ser condenado em definitivo e nenhum “direito adquirido” pela privilegiatura (são estes que estrangulam economicamente a nação; o que nos roubam sem o recurso à lei é apenas troco) venha a ser desafiado.

O esquema de Antonio Gramsci é um aggiornamento da dialética defensiva jesuíta. Ele marca o momento da rendição da utopia socialista e o decidido abraço da casta que ela pôs no poder pelos caminhos do privilégio na luta contra a meritocracia, o pressuposto essencial da democracia. A paulatina conversão dessa luta de uma disputa entre verdades concorrentes para a destruição do próprio conceito de verdade (a “pós-verdade”) inclui o reconhecimento da relação indissolúvel entre democracia e verdade (cujo agente intermediador é a imprensa que não sobreviverá se não reassumir esse papel). E a admissão do fato de que onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de uma deliberação da maioria contra si mesma, e que só uma trapaça pode produzir esse efeito homenageia a superioridade moral que os seus inimigos sempre negaram à democracia ao longo de todo o século 20.

A apropriação pelas ditaduras socialistas dos métodos do capitalismo pré-democrático, o ataque maciço contra os direitos do consumidor, o esmagamento do indivíduo e a concentração extrema da riqueza frutos da volta dos monopólios, a globalização da censura gramsciana agora deslocada para o campo do comportamento, os ensaios de Vladimir Putin para o falseamento da eleição americana, as primeiras ações de censura das mega-plataformas da internet, os movimentos coordenados de militâncias internacionais contra e a favor de governos nacionais tendo a Amazônia (e não somente ela) como pretexto, desenham os contornos que terá a guerra no novo mundo hiperconectado. As UTI’s serão invadidas, os cateteres de sustentação da vida (no caso brasileiro o do agronegócio) serão implacavelmente arrancados das veias das economias moribundas, os interesses de casta da privilegiatura estarão sempre acima de tudo. Mas os únicos remédios conhecidos seguem sendo os mesmos de sempre: a exposição da verdade e o culto ao merecimento.

O Brasil não precisa de “um novo pacto social”. O Brasil precisa do seu primeiro pacto social. Fazer a revolução democrática que saltou. Mudar o poder de dono pela primeira vez em sua história. E a única maneira conhecida de consegui-lo sem que a tentativa degenere num sistema de opressão da maioria sobre a minoria é com a velha receita dos iluministas. Uma democracia efetivamente representativa, o que só o sistema de eleições distritais puras proporciona, com uma cidadania armada de recall, referendo, iniciativa legislativa e a prerrogativa de reconfirmação periódica dos poderes dos seus juízes, pela razão muito elementar de que fora dos contos da carochinha, só tem algum controle sobre o seu destino e condição de proteger o que é seu quem tem o poder de demitir.

Bolsonaro prova que erro pode ser aperfeiçoado

A decisão de Jair Bolsonaro de falar na abertura da Assembleia Geral da ONU sobre Amazônia é uma evidência de que há males que vêm para pior. Um acerto dificilmente pode ser melhorado. Mas não há sob Bolsonaro erro que não possa ser aperfeiçoado. A despeito da nova cirurgia a que será submetido, o presidente disse que irá à ONU mesmo que seja sentado numa cadeira de rodas ou deitado numa maca.

Bolsonaro antecipou as linhas gerais do discurso que pretende fazer na ONU. Quer mostrar, com "muito patriotismo", que a Amazônia "foi praticamente vendida para o mundo". Deseja deixar claro que não vai "aceitar esmola de país nenhum a pretexto de preservar a Amazônia". Resistirá porque é por meio desse auxílio externo que, segundo ele, a floresta "está sendo loteada e vendida".


Por trás desse discurso do presidente Bolsonaro estão velhas obsessões do ex-deputado Bolsonaro. Hoje, o presidente se queixa do excesso de reservas indígenas. Em abril de 1998, quando ainda era um deputado do baixíssimo clero, disse na Câmara que a cavalaria brasileira foi muito incompetente. "Competente", segundo ele, "foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país".

Desde que assumiu o trono, Bolsonaro tenta conciliar duas exigências conflitantes: ser Bolsonaro e exibir o bom senso que a Presidência exige do seu ocupante. Quando fala de Amazônia, o presidente se enche de tambores e clarins. Se disser na ONU 10% do que anuncia, Bolsonaro mostrará que é errando que se aprende ... A errar. Fornecerá material para a retaliações contra exportadores brasileiros. Ficará demonstrado que o patriotismo também pode ser uma forma de suicídio comercial.

Pensamento do Dia


Brasil, campeão em consumo de cocaína e em violência

O Brasil é o sexto país mais populoso do mundo, a sexta economia mundial e, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o quinto maior exportador de alimentos. Isso é o que todos sabem. O que se desconhece é que essa nação da América do Sul, com pouco mais de 209 milhões de habitantes, é a segunda em número de consumidores de cocaína, só atrás dos Estados Unidos, segundo as próprias autoridades deste país.

Além disso, com 30 homicídios dolosos para cada 100 mil habitantes, é um dos países mais violentos: só em 2018, 60 mil pessoas foram assassinadas, quase o dobro das executadas na guerra dos narcocartéis no México, no mesmo ano.

Ampliar a visão da atividade do crime organizado em outras partes do mundo permite ver de outra perspectiva a problemática do que sucede no próprio país, e conectar pontos, já que nenhum desses fenômenos é realmente isolado.

A complexa situação do Brasil é um caso de estudo que mereceria interesse global: tem tanto impacto nos EUA, devido à quantidade de armas importadas desse país, quanto na Europa, pois organizações criminosas como a 'Ndrangheta, da Itália, ou o Cartel de Juárez, do México, encontraram solo fértil para lavagem de dinheiro e para usá-lo como trampolim para o tráfico de cocaína na Europa.


De 20 a 22 de agosto, fui convidada a participar do seminário interdisciplinar Atividade de inteligência e confrontação com organizações criminosas, organizado pela Polícia Federal do Brasil (PF). A prestigiada corporação que realizou a Operação Lava Jato, desmantelando uma rede de corrupção entre a companhia majoritariamente estatal Petrobras e empresas privadas – como a Odebrecht, que aplicou o mesmo esquema de corrupção em outras partes da América Latina e na África.

Para situar melhor: a Lava Jato colocou na prisão o ex-presidente de esquerda Luiz Inácio Lula da Silva, em meio a protestos por parte do Partido dos Trabalhadores (PT), segundo o qual se tratou de uma operação política para impedir que o ex-sindicalista concorresse nas eleições presidenciais de 2018.

Agora a PF parece ter um novo objetivo. Com base na experiência de outros países como México e Itália, sua meta é entender o funcionamento das três principais organizações criminosas do país: o Primeiro Comando Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV) e as dezenas de milícias.

Elas representam o maior risco de segurança nacional, pela violência que geram, o tráfico e distribuição de drogas para consumo interno, e o controle territorial. As milícias, integradas em sua maioria por policiais militares, têm presença em diversas partes do país, inclusive a Amazônia, que por estes dias se consome em chamas diante dos olhos indignados da comunidade internacional. Mas sem dúvida a Amazônia não é a única coisa que arde no Brasil, e sim uma decomposição criminosa de prognóstico reservado.

Esta é a primeira de uma série de reflexões sobre a situação do crime organizado no Brasil, de acordo com os diagnósticos da própria PF e de acadêmicos como Gabriel Feltran, o sociólogo Sergio Adorno e Camila Nunes Dias.

Quando, numa reunião privada, um dos diretores da Polícia Federal falou do nível de consumo de cocaína no Brasil, o dado causou espanto: "O segundo país consumidor do mundo?" "Sim", confirmou o diretor. "E como isso aconteceu?"

Em primeiro lugar, o país partilha uma fronteira de mais de 11 mil quilômetros com dez outros. Três deles, Bolívia, Peru e Colômbia, são os provedores de cocaína do mundo, com uma participação de 10%, 20% e 70%, respectivamente, segundo o último informe do Escritório das Nações Unidas contra Droga e Crime (UNODC).

A produção na região cresce constantemente, enquanto o mercado de consumo nos EUA míngua: embora em 2017 se tenham registrado 5,9 milhões de consumidores, ou 2,2% da população, em 2006 essa proporção era de 2,6%.

Já no Brasil, o consumo aumenta a cada ano: 1,46 milhão, ou 0,7% dos cidadãos, consomem cocaína. Levando em conta todos os derivados da droga, como o crack, a cifra chega a 5,6 milhões de usuários.

A explicação dos funcionários da PF é que nos três países produtores um grama de cocaína-base tem um preço médio de venda de um dólar, e no Brasil, de cinco dólares – quase o mesmo que uma embalagem de cigarros. Enquanto isso, nos EUA esse preço oscila entre 30 e 50 dólares o grama, e na Europa, de 58 a 180 dólares.

Uma das razões é que o custo de transporte é muito menor entre os dois lados da porosa fronteira sul-americana, e a produção na zona aumentou vertiginosamente. Em muitos países os usuários tendem a ser de classe média-alta, por conta do preço da cocaína; no Brasil todo mundo tem acesso econômico à droga e seus derivados.

O investimento e o risco dos grupos criminosos no Brasil, para comprar e traficar cocaína, é mínimo, e um dos mais bem articulados nesse ponto é o PCC. Como observa o professor Gabriel Feltran, a matemática é assustadoramente simples.

É alto no Brasil o índice de roubo de veículos para financiar a compra de cocaína e armas. Em sua grande maioria os veículos são vendidos, completos ou em partes, no mercado negro do Paraguai, onde, até muito recentemente era fácil legalizá-los e em seguida traficá-los a outras partes do país ou do continente.

Por exemplo: uma camionete Toyota de modelo recente roubada no Brasil pode ser vendida no Paraguai por 3 mil dólares, com os quais se compram três quilos de cocaína na Colômbia, Peru ou Bolívia. Vendida no Brasil, ela traz um lucro de 15 mil dólares, que costuma reverter na compra de mais cocaína, armas e contrabando de cigarros.

O PCC foi criado em 1993, em São Paulo, por um grupo de réus de alta periculosidade que protestavam contra as condições de encarceramento. Embora seus líderes estejam na prisão há mais de 20 anos, ainda comandam a organização criminosa que controla a grande maioria dos presídios em São Paulo e outros 21 dos 27 estados brasileiros. Segundo as autoridades, o comando soma mais de 20 mil integrantes, que têm uma visão "ideológica" e empresarial e faturam 200 milhões de dólares ao ano.

Embora os mesmos cárceres onde nasceu o PCC sejam um de seus mais importantes centros de distribuição de droga, a organização está ampliando seus horizontes: há apenas algumas semanas a Polícia Federal deteve em São Paulo Nicola Assisi, um importante atravessador, através de quem a organização criminosa 'Ndrangheta, da Calábria, traficava cocaína para a Europa. Seu fornecedor era o PCC, gerando-lhe lucros multimilionários.

Quem com Bic fere com Bic será ferido

O embaixador francês no Brasil, Michel Miraillet, caiu em desgraça no Palácio do Planalto por causa de uma resposta que deu ao presidente Jair Bolsonaro.

Na última quinta-feira, em sua transmissão semanal ao vivo no Facebook, Bolsonaro anunciou que doravante não usaria mais a caneta BIC para assinar seus despachos.

Por quê? Ora, porque BIC é uma marca francesa. E Bolsonaro se acha em guerra com o presidente francês Emmanuel Macron por conta da devastação da Amazônia.

Na sexta-feira, sem desrespeitar as normas de elegância que orientam a atuação de diplomatas em qualquer parte do mundo, Miraillet postou no Twitter:

Sim, o BIC é francês, mas ele também é brasileiro! O BIC é um dos principais empregadores de Manaus e provavelmente centenas de colaboradores ficarão surpresos com o fato de essa realidade ainda não ter atingido o Planalto.

Diplomatas experientes do Itamaraty comemoraram a resposta sem fazer alarde. Por ali, desde que o embaixador neófito Ernesto Araújo assumiu o Ministério, as normas da boa educação estão em baixa.

No site oficial da BIC consta que a empresa está no Brasil desde 1956 e que emprega mais de 1.200 pessoas em diversas regiões do país produzindo itens de papelaria, lâminas e isqueiros.

Presidente ungido por Deus

Deus escolheu Bolsonaro para liderar 210 milhões de brasileiros
Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, ao ungir o presidente

Bolsonaro inventa o 'desacato da autoridade'

O Prêmio Esso deste ano deveria ser entregue ao grupo de repórteres que toda manhã se junta à porta do Alvorada e espera atrás de grades que o presidente da República cumpra o protocolar desjejum de desaforos, caras enfezadas, perdigotos, dedo em riste e ameaça contra eles, suas empresas e o futuro do jornalismo. Todo dia, tudo sempre igual. Os repórteres matutinos do Alvorada comem o pão que o diabo amassou.

Sua excelência borra a manteiga de ódio na torrada das desconfianças e, quando não ofende os profissionais, joga café rancoroso na cara de algum novo inimigo que a noite mal dormida lhe revelou. Sua santidade, o Papa, não perde por esperar. Os jornalistas nada comentam. Nem o excesso de bromato, o leite derramado na toalha da civilização ou o breakfast servido em pé. Seguem os rigores da profissão. Perguntam. Anotam. Publicam.

O americano Hunter Thompson, um dos inventores do jornalismo gonzo, que incentivava o repórter a se intrometer na matéria, tinha uma tática peculiar de esquentar as pautas. Diante de uma entrevista meia boca, que levaria o leitor ao sono imediato, Thompson, sempre com alguma droga na cuca, partia para o desacato. Mandava um esculacho no quengo da vítima. O entrevistado reagia, dizia um palavrão, fazia-se o escarcéu - e, pronto, Hunter Thompson tinha uma gonzo-matéria.

Viver no Brasil ficou assustador. A floresta queima, os radares saíram das estradas e na semana passada o presidente relinchou orgulhoso, misto de vaqueiro e jegue, na live da rede social. Os jornalistas não reclamam. Basta abrir o microfone e a matéria, como um café solúvel, se faz por si própria. Antes, após alguma pergunta mais contundente, eram processados por "desacato à autoridade". Bolsonaro xinga, humilha, vira as costas. Inventou o "desacato da autoridade".

Por falar em chifradas, ponha-se nesta arena o americano Ernest Hemingway, que tinha como sonho ver todas as touradas e não precisar escrever uma linha sobre elas. O jornalista Joel Silveira encontrou-o num bar de Paris. Sabia que o escritor não estava para entrevista, mas seguiu o instinto de repórter. Joel tinha a esperança de levar pelo menos um soco no meio dos cornos e ganhar o lead. Perguntou ao autor de "Paris é uma festa" se toparia um safari entre os touros da ilha de Marajó. Hemingway sequer bufou. Jogou na mesa o dinheiro do martini e, rápido, picou a mula. Tudo com discrição forçadamente exagerada para não deixar uma linha sequer para a matéria do brasileiro.

Os jornalistas acampados na porta do Alvorada não precisam provocar. Além dos bons princípios da profissão, acrescentaram às qualificações de cada um o exercício quase budista de controlar os instintos primitivos. Respiram fundo, tampam o nariz e a cada espanto que ouvem deixam de gritar de volta que o rei não só está nu, mas doido varrido. Por isso se faz meritório o Prêmio Esso a esses pacientes repórteres nas grades do Alvorada. Eles contam até dez, não topam o chamamento diário à briga. Levam os desaforos para a redação e, como é da espécie, simplesmente publicam. Deixam que o touro presidencial faça o trabalho inédito de se espetar ele próprio com as bandeirolas do ridículo.