segunda-feira, 16 de novembro de 2020

É hora de trabalhar, presidente

Em agosto passado, o presidente Jair Bolsonaro anunciou, solenemente, que não participaria das eleições municipais como cabo eleitoral de ninguém, porque, segundo suas palavras, “tenho muito trabalho na Presidência e tal atividade (a campanha eleitoral) tomaria todo meu tempo num momento de pandemia e retomada da nossa economia”. Na mesma época, proibiu seus ministros de participarem da campanha, com argumento semelhante.

Como se sabe, contudo, Bolsonaro foi um dos mais ativos cabos eleitorais nesta campanha, bem como alguns de seus ministros. Nem a pandemia acabou nem a economia engrenou, mas o presidente achou espaço na sua agenda para entregar-se a suas especialidades – participar de eleições e ignorar promessas. O presidente alegou que pedia votos para seus candidatos somente “depois do expediente” – como se a Presidência fosse um cargo ocupado por um barnabé que bate cartão.

O problema é que Bolsonaro não trabalha. A prova disso é a absoluta incapacidade de seu governo de encaminhar as reformas e as medidas sem as quais o País não se recuperará tão cedo do desastre em curso. Há sempre uma desculpa para a procrastinação, e a mais recente era a realização das eleições municipais.

Pois bem: as eleições foram realizadas ontem e, portanto, não há mais razão para que o presidente e seus auxiliares não arregacem as mangas e façam o que deve ser feito. Para tentar mostrar serviço, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), chegou a anunciar que logo depois do primeiro turno das eleições o governo colocaria para votar uma extensa pauta, que inclui um projeto de renegociação das dívidas dos Estados, a autonomia do Banco Central e a regulamentação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). De novo, contudo, faltou articulação: o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, responsável por pautar as votações, disse desconhecer o tal pacote do governo. “Não estou nem sabendo disso aí. Não sei de onde veio essa pauta”, declarou Maia.

Esse é o padrão do governo Bolsonaro: a confusão, o mal-entendido e, principalmente, a falta de iniciativa do presidente da República, de quem todos esperam o norte da administração. Como Bolsonaro não sabe o que quer como presidente e já se queixou diversas vezes do fardo do cargo, esquiva-se de tomar decisões, esperando que ou as coisas se resolvam por si mesmas ou que o Congresso afinal se encarregue de tocar o País adiante.

O Congresso, praticamente desde a posse de Bolsonaro, assumiu o protagonismo político que, no presidencialismo, deveria obviamente ser do presidente. O problema é que os compromissos obscuros de Bolsonaro com o Centrão, que lhe garantem sobrevida no cargo a despeito de seus inúmeros atentados à dignidade da Presidência da República, podem acabar transformando o Congresso numa extensão do desastroso governo bolsonarista.

No início do ano que vem haverá eleição para a presidência da Câmara e do Senado, pleito que Bolsonaro tenta influenciar em favor do Centrão, cujo modus operandi ficou claro na disputa pela presidência da Comissão Mista de Orçamento (CMO). A CMO, responsável por votar a Lei de Diretrizes Orçamentárias, sem a qual o governo não tem respaldo para executar o Orçamento, nem sequer foi instalada, porque o Centrão quer a direção da comissão, desrespeitando um acordo parlamentar prévio. Como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, bateu o pé em relação ao acordo, o Centrão, como se fosse da oposição, passou a obstruir qualquer votação, inclusive de temas de interesse do governo, até que sua vontade seja feita.

É esse o senso de urgência dos governistas. Em nome de seus interesses, não se importam em adiar a aprovação de medidas importantes para o País. Enquanto isso, o presidente Bolsonaro, que deveria liderar o processo político, passa todo o expediente a fazer o que sabe melhor: criar confusão e ultrajar os brasileiros.

Com o fim do primeiro turno da eleição, acabou a última desculpa de Bolsonaro para não trabalhar. Qual será a próxima?

Custo que o Exército viria a pagar para ter Bolsonaro foi previsto, dito e escrito

Os níveis mais altos de militares do Exército, incluídos os reformados-mas-não-muito, estão sob interrogações sem respostas e, por isso, possíveis inquietações mal definidas. Nada indica, no entanto, o sentido adverso a Bolsonaro que exala dos comentários sobre contrariedade de altos estrelados com seu capitão-comandante. Na falta de indícios resistentes, a onda parece seguir a mesma pressa dedutiva que há pouco criou um Bolsonaro aderido à moderação.

​Não há sinais de insatisfação no Exército com o governo. Nisso se tem confirmado a comunhão de visões entre Bolsonaro e os referidos militares do Exército. Mesmo nas práticas que mais choquem o mundo da cidadania, como a entrega da Saúde e da vigilância farmacológica a militares sem a formação específica. Ou a destruição da riqueza natural, sobre ela recaindo a recente advertência aprovadora do general-vice Hamilton Mourão: “A eleição [nos EUA] não muda a política ambiental”.


O desgaste já é em nível de ridículo. Quem, no grupo de militares palacianos, tentou conter um pouco a produção bestial, teve como resultado a demissão grosseira, caso dos generais Santos Cruz e Rêgo Barros. Ou rompeu relações, como o indemissível Mourão. Os demais conduzem-se como acovardados. Para essas pessoas que se pensam admiráveis, poderosas, distinguidas pela força da arma, responsáveis pelo país que nem entendem, verem-se até em anedótico desafio a militares de verdade, convenhamos, há de doer. Mourão nem percebeu que seu remendo usual também ficou grotesco: a pólvora contra os EUA “foi retórica”. Não, foi mesmo insuficiência mental.

Nenhum dos incomodados sabe como deter a corrosão. E todos sabem que vai continuar. Com risco de chegar ao paroxismo de um impeachment atrasado, o capitão-comandante e seus subordinados generais, almirantes e coronéis a sair, ou melhor, marchar pela porta da cozinha. Todos pisando na imagem do Exército.

O vice Mourão tenta transferir as responsabilidades: ”Política não pode entrar no quartel”. O Exército não foi buscado por político algum, nenhum partido, por ninguém. A política, sim, foi invadida pelo Exército na pessoa do seu então comandante, Eduardo Villas Boas, que interveio no processo eleitoral, com disposição ostensiva, por ao menos duas vias. Uma, a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal, para o impedimento eleitoral de Lula. Outra, ao patrocinar, na condição de comandante do Exército e sempre no cenário do seu gabinete, a candidatura presidencial, a violência e a desordem mental de um excluído das Forças Armadas, elevado a símbolo político dos militares. O custo que o Exército viria a pagar para ter Bolsonaro, com um governo militarizado por generais e coronéis, foi previsto, dito e escrito. Por civis. Quem não previu o óbvio, muito menos preverá o desfecho.

A República e os quartéis

A República fez aniversário. Cento e trinta e um anos e ainda não tomou juízo. Começou instável, pela espada do Deodoro, e continua aí na corda bamba.

Essas frases foram escritas por Otto Lara Resende, em 1991. O diagnóstico continua certeiro. Só atualizei a contagem dos anos.

Em 15 de novembro de 1889, o país passou a ser governado por um marechal. Hoje está nas mãos de um capitão. Não foi só nisso que regredimos.

Na semana das eleições municipais, os holofotes se deslocaram dos candidatos para o comandante do Exército. O general Edson Pujol afirmou que as Forças Armadas “são instituições de Estado”. A obviedade não deveria chamar a atenção numa democracia.

“Não somos instituição de governo, não temos partido. Nosso partido é o Brasil”, disse o general. Ele cometeu um ato falho. A última frase estampava a camiseta de Jair Bolsonaro quando ele foi esfaqueado em Juiz de Fora.

Na sexta, o vice-presidente Hamilton Mourão endossou as palavras de Pujol. “Política não pode entrar dentro do quartel. Se entra política pela porta da frente, a disciplina e a hierarquia saem pelos fundos”, afirmou.

O general não costumava pensar assim. Antes de passar à reserva, ele foi punido duas vezes por se meter na política. Em 2015, Mourão afirmou que o impeachment de Dilma Rousseff significaria “o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. Em 2017, disse que Michel Temer promovia um “balcão de negócios” para não cair.

Nas duas ocasiões, o general sabia o que estava fazendo. Ao atacar presidentes, ele quebrou a hierarquia para se projetar na política. Deu certo. Em 2018, seria convidado a integrar a chapa de Bolsonaro.

A declaração de Pujol também não combina com a atuação de seu antecessor. Às vésperas da eleição, o general Eduardo Villas Bôas pressionou o Supremo Tribunal Federal a negar um habeas corpus ao ex-presidente Lula.

A interferência da caserna no Judiciário empolgou o então candidato Bolsonaro. “Estamos juntos, general”, tuitou o capitão, que seria o maior beneficiário do julgamento.

Ao vestir a faixa, o presidente premiou o militar com um cargo no Planalto. A filha dele está pendurada no gabinete da ministra Damares Alves.

No início do mês, surgiram novas informações sobre a atuação política de Villas Bôas. Nos meses que antecederam o impeachment de Dilma, ele teve “vários encontros” com o então vice-presidente Michel Temer, segundo relato do professor Denis Rosenfield.

O comandante do Exército reclamava da Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes da ditadura. Na mesma época, o senador Romero Jucá foi gravado dizendo que os chefes militares prometeram “garantir” a derrubada da presidente.

Ao assumir a cadeira de Dilma, Temer deu ministérios a dois generais ligados a Villas Bôas. Um deles assumiu a pasta da Defesa, que só havia sido ocupada por civis.

Começava ali o retorno dos militares ao centro do poder. Com a vitória de Bolsonaro, os generais pensaram que voltariam a mandar no país. Agora alguns se dizem arrependidos, mas não o suficiente para deixarem os cargos.

 Bernardo Mello Franco 

A esperança no combate ao ódio está nos livros

Estou lendo “O infinito num junco”, da escritora espanhola Irene Vallejo, uma história do livro e da leitura, já publicado em Portugal, mas, tanto quanto sei, ainda não disponível nas livrarias brasileiras. A páginas tantas, a propósito da insistente prática humana em queimar livros e bibliotecas — desde a destruição da Biblioteca de Alexandria até as fogueiras nazis —, Irene Vallejo cita uma frase do cartunista Andrés Rábago, El Roto: “As civilizações envelhecem, a barbárie renova-se.”

Concordo no que diz respeito às civilizações, mas não estou tão certo quanto à barbárie. A barbárie é sempre a mesma, move-se às cegas pelas ruas, gritando idênticas frases de ódio contra qualquer transformação. A estupidez não evolui. Transmite-se, como uma doença infame, ao longo dos séculos. Só as circunstâncias se renovam.


Uma das várias versões sobre a destruição da Biblioteca de Alexandria implica no crime o então governador provincial do Egito, Amer Ibn Alas. Quando lhe perguntaram o que fazer com tantos livros, Amer teria retorquido: “Se esses livros estiverem de acordo com o Corão, então são redundantes e, portanto, supérfluos. Se não estiverem, são heréticos.” Esta mesma versão assegura que os livros foram utilizados para aquecer os banhos públicos. Terão sido necessários seis meses para queimar todos os papiros.

Irene Vallejo mostra-nos que a história do livro é também uma história contra o livro — ou seja, contra o pensamento. Há as grandes fogueiras e há as pequenas fogueiras. Normalmente, as grandes começam por ser pequenas. Pensemos no Brasil: hoje, fundamentalistas cristãos queimam os livros de Paulo Coelho e de João Paulo Cuenca. Amanhã, estarão ateando fogo à Biblioteca Nacional. Depois de amanhã, se os deixarem, arrastarão até à fogueira os próprios escritores.

Na essência, não há diferença alguma entre a deformidade espiritual de um fundamentalista islâmico e de um fundamentalista cristão.

Uma única nuvem do tipo cumulus — aqueles flocos de algodão, bem definidos, que se destacam no azul do céu — pode pesar tanto quanto uma manada de elefantes. Obviamente, uma dessas nuvens é muito maior do que um elefante. Um cumulonimbus pode alcançar até 15 quilômetros de altura. Junta, a água esmaga. Dispersa, levita.

Acontece o mesmo com o ódio. Isolado, mal se dá por ele. O ódio isolado quase não tem peso. Um único homem tomado pelo ódio suscita mais facilmente troça do que terror. O problema é quando surgem homens que atuam como catalisadores de ódio. Estamos a ver isso acontecer neste preciso momento em países como Moçambique, onde, no último fim de semana, um grupo associado ao Estado Islâmico decapitou 50 camponeses.

Embora num contexto muito diferente, estamos a ver também isso suceder nos EUA, em torno do inacreditável delírio de Donald Trump, ocupado agora em criar uma laboriosa realidade paralela que lhe permita perpetuar-se no poder.

A única esperança no combate ao ódio e à loucura — como se conclui lendo “O infinito num junco” — está nos próprios livros. Como canta o português Manuel Freire, “não há machado que corte / a raiz ao pensamento. // Nada apaga a luz que vive / no amor, no pensamento.”

José Eduardo Agualusa

Pensamento do Dia

 

Brady Izquierdo Rodríguez (Cuba)


Saliva ou Pólvora

"O Rato que Ruge" é uma comédia inglesa de 1959 que tem um roteiro sensacional e interpretações brilhantes. Peter Sellers, o grande ator inglês interpreta quatro personagens e merece ser aplaudido de pé!

Eis um resumo do filme. Um pequeno país nos Alpes europeus, Fenwick, entra em bancarrota quando os Estados Unidos resolvem produzir o mesmo tipo de vinho Pinot, o que acaba com o mercado de Fenwick. Revoltadas, as autoridades e os habitantes de Fenwick declaram guerra aos Estados Unidos, o que causa ondas de gargalhadas no país americano.

Armado com arcos e flechas, o exército de Fenwick é enviado para a invasão do território Americano. A primeira parte da viagem é feita num ônibus, depois pegam um navio a vapor e finalmente chegam a New York.

Quis o destino que naquele dia a grande cidade americana estivesse em completo lockdown, pois é o dia de um treino contra uma nova bomba superpoderosa e os novaiorquinos devem ficar enfurnados em imensos abrigos subterrâneos.

Claro que o exército de Fenwck acha que sua presença assustou os americanos que fugiram do combate com o exército invasor. Achando-se vencedores, as autoridades de Fenwick usam muita saliva para exigir dos States um milhão de dólares, a retomada total de seu mercado de vinho e um completo armistício.

Mas por que estou me lembrando hoje desse filme de 1959? Simples: quando ouvi Bolsonaro dizer que depois da diplomacia (a saliva) só mesmo entrando com a pólvora (a guerra) poderíamos acertar o passo com os USA, me veio à mente, de imediato, a guerra de Fenwick com os States. Tudo isso porque o capitão não queria aceitar a vitória de Biden e a derrota de seu amigão, Trump. Ver nosso Brasil meio que declarar guerra aos Estados Unidos me trouxe à mente, imediatamente, o "Rato Que Ruge".

São muitos os eventos cômicos e as confusões geradas por esses dois exércitos: o da saliva e o da pólvora. Descrevê-las não tem graça. Graça tem assistir a esse filme extraordinário.

Procurem o filme para alugar. Garanto que não vão se arrepender.

O mundo pré-Trump se foi para não mais voltar

Quando se trata de política, muitos europeus acreditam que a diferença entre os Estados Unidos e a Europa seja análoga àquela entre o futebol europeu e o americano: como seu futebol, a democracia dos americanos é um jogo para iniciados. Seu sistema eleitoral, em que o candidato que perde o voto popular pode facilmente conquistar a Casa Branca, provavelmente faz todo sentido para eles, mas para mais ninguém.


Apesar das diferenças, entretanto, algumas das lições das eleições nos EUA são bastante relevantes para a Europa. Em sua peça teatral Jumpers, de 1972, o dramaturgo britânico Tom Stoppard sugere, jocosamente: "Não é a votação que faz a democracia, é a contagem." A eleição de 2020 provou que ele tinha razão.

A democracia é um sistema em que, ao aceitar a derrota, o perdedor legitimiza o resultado da eleição. Os ataques do presidente Trump à idoneidade do pleito não só danificam a reputação dos EUA, mas podem ser um presságio do que está por vir: uma proliferação de eleições contestadas, não só nos Estados Unidos, mas também no exterior.

Para partidários políticos em estados divididos, a ameaça mais existencial à democracia não é a ruptura das regras estabelecidas, mas a vitória da outra facção. E muitos estão mais e mais preparados para incendiar a casa, de forma a evitar que o outro lado assuma o poder. Em tal clima, há o risco de instituições imparciais, como tribunais, bancos centrais e a livre imprensa, serem instrumentalizadas politicamente.

A eleição americana também nos adverte que, mesmo nas sociedades mais devastadas pela pandemia, é mais provável os choques e perdas causados pela crise do coronavírus intensificarem as divisões existentes, do que proporcionarem unidade nacional e propósito coletivo.

Uma análise da agência de notícias Associated Press revelou que, de 376 distritos americanos com a mais elevada taxa per capita de casos de covid-19, a maioria esmagadora, 93%, votou em Trump. Os europeus devem ver os eventos nos EUA como uma advertência. Se os confinamentos forem prolongados, e as economias, paralisadas, nossas sociedades podem começar a se assemelhar ao caos explosivo que estamos vendo nos EUA.

Embora se costume louvar a genialidade da democracia em suplantar divisões nas sociedades modernas, a experiência americana dos últimos quatro anos revelou que a política democrática também é capaz de solidificar e intensificar essas divisões. As eleições expuseram o fato que democratas e republicanos não são apenas dois partidos políticos: eles se tornaram dois países diferentes em guerra eleitoral mútua. E essa guerra política não terminará com a derrota trumpista.
Demografia pode ser destino

A partir da experiência americana, os europeus também podem aprender que, na política, demografia geralmente é destino. Números definitivamente importam: quando eles mudam, o poder troca de mãos. A narrativa democrática há muito tem insistido que o que decide a vitória eleitoral é a mudança de mentalidade dos votantes. Contudo o poder também pode se inverter quando um eleitorado é alterado.

Isso ocorre quando uma nova geração com preferências coletivas fortes alcança a maioridade, como foi o caso das democracias ocidentais nas décadas de 1960 e 1970. Mas também pode acontecer quando um grupo considerável de novos eleitores passa a integrar o corpo político, reconfigurando-o.

Tal se deu em diversos países, ao ser introduzido o sufrágio universal, ou em consequência de migrações em grande escala. A mudança da composição demográfica em estados como Arizona ou Geórgia é o que ajuda a explicar o respeitável desempenho de Joe Biden, mais do que uma mudança nas mentes da população.

Assim, não surpreende que tantos partidos nativistas vejam o número crescente de imigrantes em seus países como uma ameaça não apenas econômica ou cultural, mas também política. As maiorias étnicas temerosas de se tornar minorias em seus próprios países permanecerão a mais poderosa fonte de apoio para os populistas nativistas dos EUA e da Europa.

Do ponto de vista institucional, o parlamentarismo europeu está mais bem posicionado para resistir à polarização política extrema, mas o exemplo polonês também mostra que não é necessariamente uma defesa confiável contra ela. As democracias europeias serão contaminadas pela polarização à moda americana, se não encontrarmos uma forma de mediar o abismo entre as áreas urbanas e rurais, entre os que tiveram educação universitária e os demais, e entre as preferências políticas de jovens e idosos.

A experiência americana pode igualmente sugerir que uma nova geração progressista, cuja vasta maioria votou em Biden, possa estar pronta para quebrar o jugo populista que oprime a sociedade. Mas no tocante à promessa política da geração mais jovem, os europeus deve ser cautelosos em adotar o sonho americano inteiramente.

Na Europa, os que têm menos de 30 anos representam uma percentagem muito menor da população do que nos EUA. Um estudo recente do Centro pelo Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge revelou que, por todo o planeta, as gerações jovens se mostram cada vez mais insatisfeitas com a democracia, não só em termos absolutos, mas também em relação a gerações anteriores em fases da vida comparáveis. E o fato de alguém ter votado em Biden não significa que seja imune aos encantos do majoritarismo populista, principalmente partindo da esquerda.

Ainda levará algum tempo até o próximo presidente americano ser oficialmente anunciado, e provavelmente será preciso esperar até meados de janeiro para saber quem vai dominar o Senado. Contudo, mesmo no cenário mais otimista, seria equivocado os europeus se fiarem nos americanos como vinham fazendo há décadas. O fato de haver novamente um democrata na Casa Branca não significa que o mundo pré-Trump tenha retornado.

Os europeus tinham bons motivos para crer que a destruição da União Europeia constasse da agenda de um segundo governo Trump. Agora que esse risco está aparentemente banido, será errado os europeus esperarem Biden nos dizer o que espera da Europa. É hora de o bloco ir até Washington e apresentar uma visão do futuro da parceria transatlântica, baseada nas novas realidades em ambos os lados do oceano.
Ivan Krastev, presidente do Centro de Estratégias Liberais em Sófia (Bulgária) e associado permanente do Instituto de Ciências Humanas de Viena

Rir dos gracejos dos déspotas já produziu milhões de mortes

Nada foi mais nefasto na História do que minimizar as ameaças e os gracejos dos déspotas. O Brasil conteve o riso quando na quarta-feira chegou a ameaçar uma guerra contra os Estados Unidos na Amazônia. Disse ao chanceler Ernesto Araújo que “quando acaba a saliva, tem que ter pólvora”.

É verdade que dadas as proporções entre o aparato bélico dos Estados Unidos e o do Brasil, a frase soa como piada. E, no entanto, é verdade que o aspirante a ditador Jair Bolsonaro, que foi expulso do Exército quando era apenas capitão e sempre teve complexo dos generais, sonha em fazer uma guerra. Flertou com participar de um possível conflito armado contra a Venezuela e agora posa de valentão desafiando a maior potência bélica do planeta.



A História mostra que, com personagens como Stalin, Hitler, Mussolini ou o caudilho Franco, para ficarmos nos tempos modernos, suas bravatas de personagens medíocres não podem ser levadas na brincadeira.

E é curioso que todos eles apareçam em suas biografias com uma sanha especial contra homossexuais e mulheres.

Segundo seus biógrafos, existe uma curiosa coincidência entre estes perigosos complexados e sua capacidade de semear o mundo de cadáveres. E aparentemente em todos eles se revela no final um conflito não resolvido com sua sexualidade e sua paixão por armas, símbolo fálico do poder.

Em Stalin o mal-estar com a sexualidade era tal que chegou a proibir o Kama Sutra e anunciou que na Rússia “a sexualidade havia acabado”. Seus complexos o levaram a sacrificar milhões de pessoas.

Na Itália, o ditador Benito Mussolini, considerado no princípio um excêntrico e até mesmo palhaço, acabou levando o país a declarar guerra à Etiópia quando a Itália era assolada pela fome e pela pobreza.

Il Duce também tinha relações complexas com sua sexualidade. Ele se gabava, por exemplo, humilhando a dignidade das mulheres, que gostava de fazer amor apenas com “sujas e peludas”. Os italianos riram de seus gracejos e Mussolini acabou entregando o país nas mãos do nazismo.

Em relação a Hitler, ainda existem muitas lacunas em sua biografia, talvez porque muitos documentos acabaram desaparecendo para sempre quando a Áustria foi literalmente destruída. Do Adolf Hitler também foi estudada sua aversão aos homossexuais, os possíveis conflitos com sua própria sexualidade para explicar sua violência que culminou no maior holocausto da história com seis milhões de pessoas, principalmente judeus, sacrificadas em campos de concentração.

De Hitler se chegou a dizer que seus problemas nunca resolvidos com a sexualidade e sua fobia pelos homossexuais se deviam ao fato de que talvez ele próprio fosse um gay enrustido. E até pelo complexo por ter perdido um testículo, algo que nunca foi comprovado.

Do caudilho Franco, na Espanha, que levou o país a uma guerra civil que fez um milhão de mortos, à qual se seguiram 40 anos de ditadura em que continuaram as execuções e torturas, sabe-se que foi ridicularizado desde que era soldado por ter voz de mulher e baixa estatura, razão pela qual lhe deram um fuzil menor. O fuzil era pequeno, mas a vingança nascida de seus complexos não teve limites.

Franco também desprezava os homossexuais, que chamava de “mariquinhas”, e dizia-se que era um “sem jogo, sem religião e sem mulheres”. Acabou, no entanto, como Mussolini, entregando-se por cálculo político aos braços do Vaticano, que o encheu de privilégios e criou o “nacional catolicismo”.

Em vão, a psicologia e a psicanálise se empenharam em estudar os problemas internos não resolvidos dos ditadores. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos com o derrotado presidente Trump e está acontecendo com o Bolsonaro no Brasil.

Também foi escrito sobre o caudilho brasileiro que sua possível agressividade e fobia por homossexuais e mulheres viriam de uma homossexualidade mal resolvida.

Pensa-se até que o presidente permaneceu psicologicamente ligado à fase anal devido ao seu evidente gosto pela escatologia. Seu amor pelas armas é tanto que surpreendeu durante uma Marcha para Jesus em São Paulo, quando apareceu feliz e sorridente fazendo o gesto de disparar um revólver com as mãos imitando uma execução.

O desprezo pelos homossexuais ficou evidente quando ele confessou que teria preferido ver um filho morto, atropelado por um carro, a que fosse gay. E sua fobia pelas mulheres ficou plasmada quando revelou que seu quarto filho, Laura, de nove anos, nasceu mulher por uma “fraquejada sua”, pois seu desejo era que também fosse homem.

Às vezes penso o que o coração dessa menina sentirá quando crescer e lhe contarem que o pai não queria que fosse mulher, mas homem como seus outros quatro filhos. Ou quando lhe contarem que o pai chegou a dizer no Congresso a uma colega deputada que só não a estupraria “porque era feia”.

Dias atrás Bolsonaro surpreendeu o país ao qualificá-lo como um povo de “maricas e covardes cheios de ódio”.

Suas palavras, que tiveram repercussão mundial e revelam desprezo pelo país que preside, ainda precisam ser analisadas.

Poucas vezes se viu um chefe de Estado zombar dessa maneira de seu próprio país.

A psicologia ainda terá que estudar essa relação que Bolsonaro fez entre homossexuais e covardes. Seja Freud ou Lacan, que examinaram a força das palavras para tentar descobrir o inconsciente de uma pessoa. Esse simbolismo da homossexualidade ligada à covardia está cheio de significados ocultos e inconfessáveis. As palavras de Bolsonaro foram um dos piores insultos feitos a todo um povo. O que também chocou é o silêncio da Justiça diante de uma das mais graves acusações que podem ser feitas contra uma nação como a que Bolsonaro acaba de fazer.

Não basta rir de seu gracejo, principalmente quando foi pronunciado no contexto de zombar do drama da pandemia, chegando a afirmar que ter medo de se infectar é coisa de covardes, pois “todos nós vamos morrer”. Mais de 160.000 mortos na pandemia seriam para Bolsonaro outros tantos covardes, como também seriam as famílias das vítimas.

Justamente Brasil e Estados Unidos são os dois países do mundo com mais vítimas mortais onde os dois presidentes minimizaram a epidemia e a instrumentalizaram politicamente.

As afirmações de Bolsonaro há poucos dias são de tal gravidade e ofendem toda a nação que não poucos perguntam sobre o silêncio da Justiça, que não interveio para punir essa loucura verbalizada pelo presidente.

Caberia perguntar como Cícero em sua famosa frase das Catilinárias: “Até quanto, Catilina, vai abusar da nossa paciência?”. A paciência dos povos quando se sentem defraudados por aqueles que deveriam defendê-los também poderia ter um limite.

O grave silêncio das instituições diante das ofensas feitas a todo o país pelo chefe de Estado poderiam acabar tendo um grande peso de responsabilidade, porque o Brasil está com sua imagem cada dia mais desprestigiada no exterior, o que também poderia criar sérios prejuízos econômicos.

Os palhaços profissionais são capazes de fazer rir pequenos e grandes. São liberadores das tensões. Os palhaços políticos, ao contrário, são perigosos porque acabam corroendo a dignidade de um povo e arrastando-o para holocaustos e genocídios.

Melhor levá-los a sério.

O derrotado e o nosso risco

O grande derrotado desta eleição é Jair Bolsonaro. Publiquei essa frase aqui no dia primeiro de novembro, com base em entrevista com o cientista político Jairo Nicolau. Existem duas dimensões da derrota, a dele mesmo e a dos seus candidatos. Por outro lado, existem as perdas diárias do Brasil com este governo. Nessa última semana, Bolsonaro debochou do país, comemorou um evento que envolvia a morte de um jovem, indicou o quanto quer interferir na Anvisa, mostrou desprezo pela vida humana, e no fim de um dia de atitudes repulsivas falou em guerra contra os Estados Unidos.

Essa última fala é tão ridícula que não merece ser analisada. O que o incomodou mesmo foi o fato de o senador Flávio Bolsonaro ter sido denunciado.

O grande projeto do presidente é ele mesmo e seus filhos. Ele é tão desagregador que dispersou até as forças com as quais chegou ao poder, há dois anos. Brigou, humilhou, traiu um grande número de aliados. Chegou a esta eleição sem partido. A Aliança, legenda que tentou criar, foi, segundo definição de Jairo Nicolau, “o maior desastre da história da formação dos partidos”. Os candidatos que apoiou estão tendo um fraco desempenho e sua reprovação está subindo.

Eleição municipal tem outra lógica, como ensinam os especialistas. Mas o bom desempenho eleitoral de administradores que levaram a pandemia a sério revela que o eleitor reprova o desprezo que o presidente demonstrou com os riscos da pandemia, que vai do “e dai?” ao “país de maricas”.

O argumento do cientista político Jairo Nicolau foi que Bolsonaro malbaratou seu próprio capital político. “Ele perde para o que poderia ter sido” se tivesse usado o impulso da sua eleição para organizar o seu campo político. Mas ele perde também pela trajetória daqueles que apoiou nesta campanha.


 A incompetência de Bolsonaro é um alívio, dado que seu projeto é obter vantagens para ele e seus filhos, desmontar a ordem constitucional e iniciar outro ciclo autoritário.

A questão é que o Brasil na gestão Bolsonaro tem perdido demais. Perdido vidas, tempo, rumo, inserção no mundo, valores civilizatórios, florestas, coesão social. Nesses quase dois anos, o país retrocedeu e as instituições foram fracas. Não defenderam o nosso patrimônio político.

Como é possível que ele não tenha enfrentado um processo de impeachment depois de ter, em plena pandemia, realizado por sete domingos consecutivos manifestações antidemocráticas?

Atentou contra a saúde e a Constituição ao mesmo tempo, e qual foi a resposta? Notas de repúdio e um processo no Supremo no qual ele não é o alvo, mas apenas os financiadores dos atos.

Bolsonaro foi para frente do quartel-general do Exército e disse que as Forças Armadas estavam com ele. E qual foi a resposta? Alguns generais, inclusive da ativa, e o ministro da Defesa estiveram com ele na maioria desses atos.

As Forças Armadas foram usadas como espantalho contra seu próprio povo. E aceitaram. A declaração do general Edson Pujol foi um alento na sexta-feira, mas com a nota de ontem voltou-se à ambiguidade.

Então, sim, a última semana foi ruim para Jair Bolsonaro. Seu filho foi denunciado pelo Ministério Público estadual, e nos Estados Unidos seu farol político foi derrotado. Perdeu do Rio a Washington. Terá um desempenho pífio nas eleições. O mais importante, contudo, é o que o país perde diariamente por ter um presidente como Jair Bolsonaro.

Ele mentiu quando disse que a vacina, desenvolvida pela China e o Instituto Butantan, provoca “morte, invalidez e anomalia”, e não foi cobrado por isso. A Anvisa teve que liberar o retorno dos testes, porque ficou escandalosa a suspensão, mas Bolsonaro deu mais um passo na destruição da credibilidade da Agência de Vigilância Sanitária indicando o coronel da reserva Jorge Luiz Kormann para a diretoria do órgão.

Ele é obviamente a pessoa errada: sem notório saber, negacionista da ciência, divulgador de fake news, autor da tentativa de manipular números da Covid. Não tenho esperança de que o Senado o rejeite. O Congresso tem ajudado o presidente a desmontar instituições confirmando todas as suas indicações desastrosas.

Uma eleição municipal tem muitos significados, mas claramente esta não fortalecerá o movimento que levou Bolsonaro ao poder. Entretanto, o triste balanço desses 22 meses e 15 dias é que Bolsonaro tem dilapidado o legado dos constituintes de 1988. E a resposta das instituições tem sido fraca diante do dimensão do risco.