sábado, 13 de outubro de 2018

Algumas reflexões sobre um estranho fenômeno chamado Jair Bolsonaro

Os chamados políticos profissionais, que a cada eleição saem às ruas para pedir votos, até agora não entenderam o que aconteceu desta vez. Por dever de ofício, os analistas políticos fazem contorcionismos e acrobacias intelectuais, para fingir que sabem explicar o fenômeno Jair Bolsonaro, mas na verdade também estão completamente perdidos, batendo cabeça, como se dizia antigamente. Tudo mudou na política, não há dúvida. E quando não há explicação, o jeito é fazer como no filme “Casablanca” e culpar os suspeitos de sempre, que hoje atendem pelo nome de “novos tempos”.

Os astrólogos da política diriam que houve a conjunção de cinco fatores sociais que se alinharam e explodiram como um Big Bang eleitoral: 1) a persistência da crise econômica e do desemprego; 2) a desmoralização da classe política pela corrupção epidêmica; 3) o primado da criminalidade e da insegurança; 4) a necessidade de acreditar no surgimento de um messias; 5) e a disseminação da comunicação via celular, whatsapp e redes sociais, que levou Bolsonaro à vitória na maior parte do país, perdendo apenas nos grotões, especialmente no Nordeste mais pobre e com menos celulares.

Na conjunção dos cinco fatores, surgiu o fenômeno Jair Messias Bolsonaro, que teve um extraordinário senso de oportunidade. Foi o primeiro candidato a se lançar, e sem ter partido, porque jamais ganharia legenda no PP. Sua campanha foi perfeita e barata, apenas viajando pelo país e plantando outdoors pelas estradas, para ressoar como voz do desapontamento coletivo.


Aos poucos, a campanha foi ganhando corpo, Bolsonaro passou a ser uma atração nos aeroportos e nos aviões de carreira. Não tinha partido nem teria exposição suficiente no rádio e TV. Mas nada disso o enfraqueceu, porque as redes sociais passaram a amplificar o discurso do candidato que expressava o descontentamento comum a todos, como uma catarse ciclópica nas nuvens da web. E quem embarcou na onda se deu bem, com a eleição em massa dos seguidores de Bolsonaro, os “antipolíticos”.

A eleição presidencial já está ganha desde a facada em Bolsonaro, mas vêm aí o dia seguinte, as semanas seguintes, os meses seguintes… Os governos dos três níveis – federal, estadual e municipal – estão quebrados. Não adianta os dois candidatos oferecerem quimeras, como ampliar a isenção do Imposto de Renda ou dar 13º para o Bolsa Família. Quem cumprir esse tipo de promessa estará enveredando pelo tenebroso caminho da irresponsabilidade fiscal, já percorrido por Dilma Rousseff até sofrer impeachment.

A dívida pública é a Esfinge que logo no primeiro dia desafiará o vencedor, que se chama Bolsonaro. Mesmo assessorado pelos generais, o capitão não conseguirá decifrar o enigma. Se tiver juízo, procurará então aconselhamento com a auditora Maria Lúcia Fattorelli, considerada uma das maiores especialistas mundiais em dívida pública. Ela lhe dirá exatamente o que fazer.

Pensamento do Dia


Falta água e sabão à 'frente democrática' do PT

Numa entrevista de porta de cadeia, o grão-petista Jaques Wagner insinuou nesta quinta-feira que todos os atores políticos comprometidos com a democracia têm a obrigação de aderir voluntariamente à “frente democrática” pró-Haddad. “A responsabilidade com o país nessa esquina da história brasileira é de voluntariado”, declarou Wagner. “Não acho que ninguém tenha que ser convidado. Quem tem responsabilidade tem que vir para dentro de uma plataforma democrática.”

A formulação de Jaques Wagner é tola e desonesta. Flerta com a tolice porque carrega nas entrelinhas a mensagem segundo a qual o PT faz ao país o favor de liderar uma cruzada anti-Bolsonaro. Roça a desonestidade porque o orador bem sabe que seu partido tornou-se um pedaço do problema, não da solução.

Ainda não se formou defronte do comitê de campanha de Fernando Haddad nenhuma fila de lideranças políticas ávidas por aderir à “frente democrática” do PT. Ao contrário. Ciro Gomes voou para a Europa. Marina Silva trancou-se em suas mágoas. Fernando Henrique Cardoso observa a movimentação de esguelha. Todos já foram vítimas de cotoveladas de Lula e do petismo.

Novo coordenador político do comitê de campanha de Haddad, Wagner encontrou os repórteres depois de conversar com Lula na cadeia. Era portador de um recado do presidiário. Ele mandara dizer que o PT, “com seus acertos e com seus erros”, sempre respeitou a democracia e as instituições. Conversa fiada.


A teoria da conspiração contra Lula, a “alma mais honesta desse país”, joga água no moinho antidemocrático do desrespeito às decisões judiciais e da fantasia de uma imprensa venal a serviço de uma elite invisível. As coisas seriam mais simples se pessoas como Lula, Wagner e Haddad admitissem que o PT operou como caixa registradora de propinas e que a cúpula partidária foi parar na cadeia porque cometeu crimes como corrupção e lavagem de dinheiro.

Em vez de autocrítica, Wagner despejou sobre os microfones autoelogios: “Continuo dizendo que o que a gente fez pela democracia brasileira e pelo povo é infinitamente maior do que os erros, que são públicos e eu não preciso relatar.” Os petistas têm dificuldades para chamar seus crimes pelo nome. Preferem classificar de “erros”, eufemismo para roubalheira.

Além de engordar patrimônios individuais, o mensalão e o petrolão não foram senão atentados contra a democracia, mecanismos de compra de apoio congressual com verbas surrupiadas do Estado. Quem acompanhou o processo de julgamento da chapa Dilma-Temer no Tribunal Superior Eleitoral, no ano passado, pôde perceber no voto do ministro Herman Benjamin que o mandato de 2014 foi comprado com verbas sujas da Odebrecht. Ao enterrar as ações por 4 votos contra 3, o TSE apenas piorou o soneto.

Com um pano de fundo assim, tão enodoado, a formação de uma frente anti-Bolsonaro encabeçada por Haddad seria vista como uma tentativa de enxaguar a roupa suja do petismo. Salvar-se-ia não a democracia, mas o PT. O petismo parece não ter percebido o que está se passando. Bolsonaro só chegou à antessala do gabinete presidencial porque representa os interesses da maior força política existente hoje no Brasil: o antipetismo. Falta água e sabão à proposta de “frente democrática” do PT.

Agora sim

Está finalmente explicado o motivo pelo qual o deputado Jair Bolsonaro venceu o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. 

Não é nada do que você pensa. 

A população nativa, na sua ignorância de sempre, estava achando que Bolsonaro ganhou porque teve 18 milhões de votos a mais que o segundo colocado. 

Imagine. 

Acreditar numa bobagem como essa só acontece mesmo com brasileiro, esse infeliz que vive longe dos bons centros do pensamento civilizado, progressista e moderno da humanidade, na Europa e nos Estados Unidos. 

Obviamente, não temos o nível mental necessário para entender o que entendem os jornalistas, cientistas políticos, sociólogos, filósofos e outros cérebros que habitam o bioma superior de Nova York, ou Paris, e dão a si próprios a incumbência de explicar o mundo às mentes menos desenvolvidas.
Tome-se, por exemplo, a televisão francesa. 

Ali eles sabem exatamente o que aconteceu no dia 7 de outubro no Brasil: Bolsonaro ficou em primeiro lugar na eleição por causa do racismo brasileiro.
Racismo? Como assim ─ que diabo uma coisa tem a ver com a outra? Os peritos da TV francesa explicam. 

A esquerda e o PT, nos governos do ex-presidente Lula e de Dilma Rousseff, favoreceram a “inclusão dos negros” no Brasil, e isso provocou a ascensão do ódio racial. 

Revoltados contra os “progressos” que o PT deu para os negros, os racistas brasileiros foram para o lado de Bolsonaro ─ e com isso aumentaram tanto os seus votos que ele acabou ficando em primeiro. 

Além disso, o “oficial do Exército” (coisa que o candidato deixou de ser há 30 anos), recebeu o apoio da elite rica. 

Aí fechou o esquema, resumem os comunicadores franceses: somando brancos, racistas e milionários, Bolsonaro acabou com aquela votação toda. 

Nada disso faz o menor sentido, mas nenhum mesmo ─ a começar pelo fato de que nem uma investigação do FBI seria capaz de descobrir o que, na prática, Lula e Dilma teriam feito de bom, algum dia, para algum negro de carne e osso.
Como seria possível, num país onde apenas 40% da população se declara branca, a matemática eleitoral favorecer quem não gosta de preto? 

Seria a maioria de pardos e negros, então, que estaria promovendo a ascensão do ódio racional contra si própria? 

Também é um mistério de onde saíram 50 milhões de racistas para votar em Bolsonaro ─ ou porque o candidato Hélio Lopes, conhecido como “Hélio Negão” e deputado federal mais votado do Rio de Janeiro com 350 mil votos, foi um dos seus maiores aliados na campanha eleitoral. 

Para piorar, além de negro retinto “Helio Negão” é sub-tenente do Exército, pobre e da Baixada fluminense. Elite branca?

O Brasil seria um fenômeno mundial se houvesse por aqui uma quantidade de ricos e milionários tão grande que conseguisse definir o resultado de uma eleição presidencial. 

Não dá para entender, igualmente, porque raios o candidato das elites faria a sua campanha de carro e a pé, enquanto o candidato das massas populares, Fernando Haddad, anda de cima para baixo num jatinho Citation Sovereign ─ um dos mais luxuosos do mundo, pertencente ao dono bilionário das Casas Bahia através de sua empresa de taxi-aéreo. 

(Se Haddad paga pelo aluguel já é ruim ─ de onde está saindo a fortuna necessária para isso? Se não paga é pior ainda.) 

Não dá para entender por que Bolsonaro não teve um tostão para a sua campanha e o “reformador social” Haddad, homem dos pobres, das massas miseráveis, dos sem-terra e sem-teto, das “comunidades” e das minorias, da resistência ao capitalismo, passou a eleição inteira nadando em dinheiro. 


Não dá para entender como seria possível existir no Brasil dezenas de milhões de “fascistas”, e “nazistas”, e exploradores do “trabalho escravo”, sem que ninguém tivesse conseguido perceber isso até hoje. 

Não, não dá para entender nada. 

Mas não esquente a sua cabeça; não é mesmo para você pensar em coisa complicada. 

A imprensa internacional, que tudo vê e tudo sabe, está aí justamente para explicar.

Pé na bunda

Quando o PT lutou pelo financiamento público das campanhas, e Romero Jucá aumentou o Fundo Eleitoral para R$ 3 bilhões para facilitar a vida das pessoas mais desprezadas e odiadas do Brasil, os analistas políticos tiveram a certeza de que os mesmos de sempre abocanhariam as maiores verbas de campanha, e a reeleição geral era certa. A renovação do Congresso seria impossível.

Mas a grande surpresa e alegria desses dias de ira foi ver gente como o onipresente e maligno Romero Jucá, o sinistro Eunício Oliveira, o trio Jovair Arantes, Cristiane Brasil e Ronaldo Nogueira (donos do Ministério do Trabalho), Lúcio Vieira Lima (irmão de Geddel), o multi-indiciado Valdir Raupp, o truculento Roberto Requião, os irmãos Sarney, Leonardo Picciani, o garoto da floresta Sibá Machado, Aníbal Gomes (parceiraço em vários processos e provável laranja de Renan Calheiros ), Marco Antônio Cabral (filho do multicondenado Sérgio), Luiz Sérgio e José Mentor, e mais 150, que foram postos na rua pelo voto popular indignado. Que também deu um rude golpe em Dilma Rousseff, por ter nos levado a uma crise que tanto contribuiu para a ascensão de Bolsonaro. O nós contra eles de Lula... deu neles. E ninguém reconhece nenhum erro.

São corruptos, ou incompetentes, ou fanáticos políticos, ou parceiros em falcatruas que desmoralizaram o Congresso, ou simplesmente burros. Tiveram o que mereceram: um pé na bunda.

Não se sabe o que será o novo Congresso, que também perdeu gente da qualidade de Cristovam Buarque e Cássio Cunha Lima, com uma maioria de novatos ainda não contaminados pelo vícios e privilégios dessa casta que se julgava intocável e suga e destrói o Brasil há décadas. Pena que Renan Calheiros, o pior de todos, escapou da degola, sabe-se lá a que preço.

Em compensação, no ódio aos políticos e no tsunami Bolsonaro, foram eleitos vários representantes da nova escória nacional, que serão até piores do que o lixo atual.

Mas humilhar essa gentalha que humilhou, roubou e atrasou o Brasil não tem preço.

Imagem do Dia

Dias de espanto

Aos homens é facultada, sob determinadas circunstâncias, a escolha de como viver e, surpreendentemente, de experimentar também formas de como morrer. Mais precisamente, de como morrer num sentido especulativo resultante de escolhas no transcurso da vida.

No final da década de 90 do século passado, o antropólogo mexicano Roger Bartra escreveu um pequeno artigo que toca nesse tema. A partir do contexto latino-americano, Bartra sugere quatro formas de experimentar a morte intelectual. A primeira é buscar a fama a qualquer custo, num campo específico de atuação ou na mídia. A segunda é tornar-se um especialista e conselheiro profissional. A terceira é o que ele chama de “morte mercantil”, uma opção assumida pelos escritores dos best-sellers do momento. Em todas se verifica a presença do vírus democrático (ou a massificação da cultura) na causa mortis. Por fim, a morte lenta, que ataca os intelectuais de esquerda que perderam seus referenciais depois do colapso do “comunismo histórico”. Eles continuam sua pregação utópica, mas demarcada por um pragmatismo cada vez mais explícito. Sem condescendência, Bartra termina o artigo brincando com os leitores a respeito da “sua morte intelectual”. Diz ele: “Eu já escolhi a minha... Mas não direi qual é!”.


Evidentemente, existem outras formas de vivenciar a morte intelectual. Há de tudo, desde a voz solitária do tribuno republicano pregando a refundação do Estado até os velhos líderes estudantis que se tornam gourmets famosos e apreciam viajar pelo mundo. Embora no campo da esquerda quase todos os intelectuais vivenciem, de alguma maneira, essa experiência, há situações drásticas como, por exemplo, a de Fernando Haddad, que decidiu experimentar a sua morte intelectual de maneira explícita e em praça pública quando assumiu, na atual campanha eleitoral, o papel de fantoche de Lula, preso em Curitiba por corrupção e com mais processos a serem julgados de gravidade similar à daquele que o condenou.

Em nosso tempo, não só os intelectuais experimentam a diversidade de formas de se aproximar ou consumar a “sua morte”. Hoje sabemos, pelo livro de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt Como as Democracias Morrem (Zahar, 2018), que também as democracias morrem não apenas por golpes de força, como antigamente. Embora as críticas feitas ao livro por Marcus André Melo em artigos recentes mereçam atenta leitura, especialmente sua crítica a respeito do desconhecimento da situação brasileira pelos autores, notadamente do papel desestabilizador da democracia promovido pelo PT.

Acontece que, ainda não estando consumada a sua morte, há atores, personalidades e mesmo partidos que começam a flertar vivamente com a experiência da morte política. A recente campanha eleitoral e seus resultados exibiram essa aproximação. O Brasil foi revolvido de cima a baixo. O resultado do primeiro turno não deixa dúvidas: acabaram-se os pactos que foram construídos durante a resistência ao regime ditatorial e mesmo os que foram estabelecidos com a democratização. Não há dúvida que os alicerces da chamada Constituição cidadã estão sendo atacados sem pena. A lúcida orientação de composição de frentes e alianças políticas articuladas em torno do centro político fracassou e isso denota o fim de uma era, sem que saibamos precisamente se está a nascer algo minimamente próximo do que foi a nossa experiência democrática até aqui. A tentativa de construção de um centro político afirmativo e autônomo não se consumou por muitas razões, a começar pela desconfiança nessa ideia mesma. Não são poucos os que entendem, apesar de ser um argumento anacrônico, que o centro é apenas um território de passagem entre a direita e a esquerda, os polos substantivos da política organizada.

Os atores que ganharam corpo desde 2013 e especialmente em 2015/2016 resolveram sair à luz do dia e disputar um jogo que cada vez mais se foi definindo como de soma zero, no qual o vencedor leva tudo. Os extremos predominaram, mas o eleitor não os sancionou em função de seus projetos para o País. O “fora isso” ou “fora aquilo” e o “nós contra eles” produziram um campo de hostilidades que fez vicejar a intolerância e o ódio. O rechaço aos políticos e aos partidos ganhou corações e mentes e instaurou o reino da antipolítica em suas diferentes versões: das visões plebeias às neoliberais, todos passaram a buscar um mundo à sua imagem e semelhança. É a vitória da cultura narcísica e a derrota da cultura democrática.

A chegada de dois polos excêntricos ao segundo turno não foi um raio em céu azul. O colapso do centro político acabou produzindo uma situação paradoxal: ele passa a ser o objeto de desejo dos dois extremos. O centro está morto. Viva o centro! Sua conquista será o que vai definir o segundo turno. E, no caso brasileiro, não apenas a futura governabilidade, mas a possibilidade real de o País continuar a viver em democracia.

Mas não será nenhuma mudança cosmética que garantirá a conquista do centro político. Os dois polos têm obsessões indisfarçáveis de visíveis inclinações autoritárias. À esquerda, não será a ancilosada noção de “frente única” (uma “frente de esquerda” ao velho estilo) o que vai angariar apoio em defesa da democracia. Haddad não passa de um construto enganoso de Lula. Não representa nem une os democratas brasileiros. Bolsonaro é a regressão aos anos pré-democracia e uma ameaça iliberal evidente.

Entre a catástrofe e o desastre, nossa frágil democracia terá de resistir para seguir respirando e ganhar sobrevida. É um momento difícil, no qual somente nos serve o “pessimismo da razão”. E o mais trágico é que não há nenhum locus facilmente reconhecível que vocalize algum “otimismo da vontade”. Atônitos, os brasileiros seguem os sinais de alerta buscando evitar, de alguma maneira, uma aproximação com a morte da democracia.

Neutralidade das tetas

No entender do povo, não há democracia nem autocracia: só há cleptocracia. Essa opinião absolutista é velha como a existência dos governos e, portanto, inextirpável
Eduardo Frieiro

Fragilidade ideológica

A onda direitista que varreu o Brasil junto com os efeitos do “antipetismo” arraigado nas almas brasileiras é a explicação recorrente e quase unânime para o desempenho exitoso de Jair Bolsonaro nesta eleição. Realmente é o que fazem supor as aparências. Mas não necessariamente é o que está depositado sob camadas menos aparentes da realidade ainda no aguardo de ser desvendadas.

Não tenho notícia de que o país fosse esquerdista em 2002 e assim tivesse se mantido pelos seguintes doze anos em que elegeu e reelegeu governantes do PT. Pelo critério das análises correntes, o brasileiro seria um povo muito volúvel. Foi de direita ao escolher Fernando Collor, aderiu ao centro quando elegeu Fernando Henrique duas vezes em primeiro turno, inscreveu-se na esquerda nas eleições e reeleições de Luiz Inácio da Silva e Dilma Rousseff, e voltou-se de novo para o direitismo ao levar Bolsonaro agora à condição de campeão do primeiro turno em situação numérica e politicamente difícil (para dizer pouco) de ser modificada.


Em nenhuma dessas ocasiões esteve em jogo a ideologia. Na maioria, o eleitor é antes de tudo um pragmático. Não é esquerdista nem direitista, é governista quando isso evoca a obtenção de benefícios, e daí faz a escolha que lhe parece mais vantajosa como demonstra a fidelidade do Nordeste ao PT — misto de gratidão e crença de que o Brasil possa ser “feliz de novo” mediante a mágica de um toque na tecla da urna.

Minoritários, os eleitores ideológicos habitam as extremidades, embora a média possa se comportar de maneira extremada quando pautada por turbulências mentais e emocionais. Duas eleições passadas foram, como esta agora, marcadas por boa dose de irracionalidade, algo comparado a uma “fé de manada” contra a qual não há argumento que dê jeito.

Fernando Collor já tinha sido um prefeito de Maceió e um governador de Alagoas nos moldes do que viria a ser na Presidência. No entanto, o eleitorado de 1989 não quis nem saber dos fatos, preferindo embarcar na simbologia do santo guerreiro. Fez o mesmo treze anos depois, quando preferiu acreditar num PT artificialmente repaginado e adaptado pelo marketing às circunstâncias a esquadrinhar racionalmente o comportamento do partido (e também do líder, Lula) nas duas décadas anteriores.

Repete o padrão agora, ao conferir a Bolsonaro atributos extraordinários que ele não tem e poderes que a um presidente não são permitidos. O eleitorado se posiciona em reação àquilo que por várias vezes escolheu mediante critérios e crenças equivocadas. Aplica força semelhante, mas em sentido contrário. O efeito “fé de manada”, contudo, é o mesmo.

Tudo isso para um resultado, lamentavelmente, cumpre informar, também desastroso. Tenha o segundo turno o resultado que tiver porque, preceito comezinho da psicologia, não se pode errar sempre esperando que um dia o erro se configure em acerto por obra do espírito santo protetor dos seres desprovidos de juízo.

O piloto sumiu

O candidato do PT à Presidência da República, Fenando Haddad, volta ao horário eleitoral hoje repaginado, vestido de verde-amarelo e com um discurso paz e amor. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu mentor intelectual e chefe político, desaparecerá da propaganda do petista. Resta saber se a dissimulação, que atende aos apelos dos setores “golpistas” que querem apoiá-lo como “um mal menor”, trará votos suficientes para vencer o pleito ou se a tática tipo “o piloto sumiu” confundirá ainda mais os eleitores. O tracking de ontem mostrava que Bolsonaro continua subindo e Haddad, caindo: a distância entre os dois seria de 18 pontos percentuais, com 10% de nulos e brancos.

Haddad mudou completamente a linha de campanha. Para chegar ao segundo turno, o PT alimentou a tática do ódio nas eleições, com o discurso “nós contra eles”, pois Lula considerava Bolsonaro o adversário ideal a ser batido no segundo turno. Quem eram “eles”? Os “golpistas neoliberais”, claro. Um post do petista Breno Altman, do site Opera Mundi, nas redes sociais, intitulado “Quem é o inimigo principal?”, no momento em que essa linha política passou a ser questionada internamente no PT, ilustra como Haddad chegou ao segundo turno: “São diferentes os alvos da primeira e da segunda volta, a meu juízo. No primeiro turno, os inimigos principais são os partidos e candidatos que comandam o bloco golpista, a começar por Geraldo Alckmin, mas se estendendo a Meirelles, Alvaro Dias, Amoedo e Marina Silva. A centro-direita deve continuar a ser destroçada por sua cumplicidade com o impeachment e a agenda antipopular, antidemocrática e antinacional do governo Temer. Sua destruição política é fundamental para a regeneração do país. Caso haja alguma chance, em algum momento, de levantar a cabeça, toda artilharia possível deve ser voltada para aniquilar os aliados de Temer.”


Intérprete fiel da lógica política petista, Altman antecipava o que viria depois: “No segundo turno, por óbvio, o inimigo principal será o neofascismo representado por Jair Bolsonaro. A inversão de objetivos táticos é tudo o que deseja o partido do golpe para buscar um caminho que enfraqueça a polarização entre Haddad e o capitão reformado, dando algum fôlego para uma candidatura de centro que possa ser apresentada como ‘mais viável’, ‘mais moderada’, para derrotar o neofascismo.” Haddad manteve a rotina de visitas semanais a Lula, vestiu a camiseta vermelha da campanha Lula livre e chegou ao segundo turno sem mudar o discurso. Não esperava, porém, que a transferência de votos do petista batesse no teto tão cedo, bem abaixo da rejeição que fez Bolsonaro subir ainda mais e quase vencer no primeiro turno.

“Aconteça o que aconteça, na delícia ou na dor, um objetivo estratégico terá sido alcançado nessas eleições: a destruição da centro-direita, do centro golpista, como alternativa viável para o comando do país”, disparou Altman, quando isso aconteceu. “A soma do arco Alckmin-Marina, somando Amoedo, Meirelles e Alvaro Dias, mal chega a 20% das intenções de voto. Essa é uma vitória importante do campo popular, que pavimenta o segundo turno e a marcha rumo ao triunfo em 28 de outubro.” Essa estratégia, porém, se tornou uma maldição para Haddad. A maioria dos partidos derrotados no primeiro turno optou pela neutralidade, alguns já se posicionam para permanecer em oposição, outros para aderir ao novo governo, vença Bolsonaro ou Haddad. Por ora, acompanham o jogo da arquibancada.

Entretanto, ninguém morre de véspera numa eleição tão disputada, ainda mais para presidente da República. Desde a reeleição de Lula, o PT tem uma fórmula eficaz para disputar o segundo turno: a tática do medo. Não será diferente agora, com a ajuda de atitudes fascistas dos partidários de Bolsonaro. Poderia ter sido usada antes, mas isso não interessava, porque o objetivo era o atual confronto. O problema de quem vende a alma a Mefistófeles, como Dr. Fausto, é que o Diabo quererá o seu corpo no inferno. Foi o que aconteceu com Haddad. Bolsonaro é acusado de machista, misógino e homofóbico, isso despertou os maus instintos das profundezas de uma sociedade traumatizada pela violência, pela corrupção e pela desestruturação das famílias. Essa narrativa até agora não foi capaz de superar a força do antipetismo, porque o partido governou como uma espécie de erva daninha.

Bolsonaro, porém, sentiu a pressão em relação a temas que atingem diretamente a população mais pobre. Nas eleições de 2006, quando Lula foi reeleito, Alckmin foi derrotado porque se disseminou que ele venderia a Petrobras e o Banco do Brasil e acabaria com o Programa Bolsa Família, que abriga 13 milhões de famílias. A tática se repetiu contra José Serra, em 2010, e Aécio Neves, em 2014. Agora está sendo usada novamente. Não foi à toa que Bolsonaro anunciou que não pretende privatizar as estatais e vai criar o 13º do Bolsa Família. A radicalização e a disseminação do ódio nas redes sociais, por uma militância que não mede as consequências do que escreve, já evoluem para confrontos físicos, que precisam ser contidos, porque isso a sociedade não suporta. Não fazem parte do jogo democrático, são atitudes realmente fascistas.