sexta-feira, 13 de junho de 2025
A conversa da bolha
Vivo numa bolha. Se vos parece chocante que o diga, é porque não se apercebem de que também estão dentro de uma. Sempre estiveram. Quer andem de jato privado ou no autocarro da Carris, quer comam nos restaurantes Michelin ou no café do bairro, quer vivam num prédio na periferia ou num bairro de barracas. A vossa experiência será sempre limitada pelas paredes dos lugares que habitam. De cada vez que disserem “eu tenho um amigo que”, saibam que o fazem por esse contacto direto com o que vos rodeia. É como se esticassem um braço e apenas aquilo em que tocam fosse real. Ora, essa ideia faz-vos sentido? Faz-vos sentido que só seja possível falar sobre aquilo que experienciámos diretamente?
Eu não estou em Gaza e não faço ideia do que será ver os meus filhos morrer à fome. Não devo falar sobre o que não sei? Eu não vivo numa habitação precária, sem luz nem aquecimento. Estou impossibilitada de falar sobre o problema? Ou talvez não funcione assim. Talvez só não possa falar quando o que eu digo assenta em dados estatísticos, relatórios, informações oficiais. Porque só a bolha olha para números. Devo, então, fixar-me no particular.
Se num dia passar numa rua e vir uma senhora a ser assaltada, por dois gordos carecas, devo assumir que aquela rua é um lugar perigoso – mesmo que seja a primeira vez que ali acontece um assalto – e que os gordos carecas são perigosos criminosos em potência. Ah! Também não funciona assim? Estou a fazer uma caricatura, porque sou uma privilegiada, que não sabe o que é viver em ruas onde os gordos carecas são uma ameaça constante. E um dia destes os gordos carecas vão ser mais do que nós, porque eles têm imensos filhos. E nem sequer gostam de trabalhar. Vivem todos à conta de subsídios. Não há subsídios para gordos carecas? Ah, isso não sei, mas uma vez conheci um gordo careca, que passava o dia no café sem fazer nenhum. De certeza que era porque recebia um subsídio por ser gordo careca.
Estão a ver onde nos leva este exercício? Mas, mais importante do que isso, estão a ver qual é o objetivo da conversa da bolha? A conversa da bolha é um mecanismo de desqualificação. A “bolha” serve para desacreditar o jornalismo – uma prática que obedece a regras e métodos –, para calar quem tem um pensamento diferente e, sobretudo, para erodir a confiança.
Numa sociedade em que vinga este mecanismo de desqualificação, a confiança desaparece. Deixamos de acreditar nas notícias, porque elas são escritas por jornalistas que vivem na bolha. Deixamos de acreditar em relatórios e estatísticas porque eles não confirmam aquilo que vemos na nossa bolha. E abrimos espaço a que se aniquile quem pensa de maneira diferente, queimando-o na fogueira dos inquisidores que nos salvam das bolhas.
Uma sociedade sem confiança regressa às trevas do mais primitivo individualismo. O pensamento crítico passa a ser perseguido. Ninguém pode questionar os que estão fora da bolha, porque a sua verdade passa a ser lei. Mas, ao mesmo tempo, ninguém acredita em nada, porque nos dizem que estamos a ser enganados pelo jornalixo da bolha.
A quem é que isso interessa? A quem é que interessa esta desenfreada caça à bolha, feita por gente de dedo em riste, pronta a apontar contra jornalistas, universidades e relatórios? Não é difícil ter a resposta. Interessa aos que não querem ser submetidos ao escrutínio do jornalismo e, por isso, o desclassificam. Interessa aos que querem semear o caos da descrença para oferecer a ordem da obediência e da crença cega. Interessa aos que não gostam dos resultados da ciência e do estudo e querem manter uma ignorância que lhes protege os interesses. Interessa aos que inflamam os ódios alimentados com a desigualdade que lhes serve tão bem e que nunca irão combater. Interessa aos que, no fundo, têm medo.
As experiências individuais são importantes. Mas guiarmo-nos por elas é como andar de olhos colados ao chão e não perceber que, acima da nossa cabeça, existe o céu.
Eu não estou em Gaza e não faço ideia do que será ver os meus filhos morrer à fome. Não devo falar sobre o que não sei? Eu não vivo numa habitação precária, sem luz nem aquecimento. Estou impossibilitada de falar sobre o problema? Ou talvez não funcione assim. Talvez só não possa falar quando o que eu digo assenta em dados estatísticos, relatórios, informações oficiais. Porque só a bolha olha para números. Devo, então, fixar-me no particular.
Se num dia passar numa rua e vir uma senhora a ser assaltada, por dois gordos carecas, devo assumir que aquela rua é um lugar perigoso – mesmo que seja a primeira vez que ali acontece um assalto – e que os gordos carecas são perigosos criminosos em potência. Ah! Também não funciona assim? Estou a fazer uma caricatura, porque sou uma privilegiada, que não sabe o que é viver em ruas onde os gordos carecas são uma ameaça constante. E um dia destes os gordos carecas vão ser mais do que nós, porque eles têm imensos filhos. E nem sequer gostam de trabalhar. Vivem todos à conta de subsídios. Não há subsídios para gordos carecas? Ah, isso não sei, mas uma vez conheci um gordo careca, que passava o dia no café sem fazer nenhum. De certeza que era porque recebia um subsídio por ser gordo careca.
Estão a ver onde nos leva este exercício? Mas, mais importante do que isso, estão a ver qual é o objetivo da conversa da bolha? A conversa da bolha é um mecanismo de desqualificação. A “bolha” serve para desacreditar o jornalismo – uma prática que obedece a regras e métodos –, para calar quem tem um pensamento diferente e, sobretudo, para erodir a confiança.
Numa sociedade em que vinga este mecanismo de desqualificação, a confiança desaparece. Deixamos de acreditar nas notícias, porque elas são escritas por jornalistas que vivem na bolha. Deixamos de acreditar em relatórios e estatísticas porque eles não confirmam aquilo que vemos na nossa bolha. E abrimos espaço a que se aniquile quem pensa de maneira diferente, queimando-o na fogueira dos inquisidores que nos salvam das bolhas.
Uma sociedade sem confiança regressa às trevas do mais primitivo individualismo. O pensamento crítico passa a ser perseguido. Ninguém pode questionar os que estão fora da bolha, porque a sua verdade passa a ser lei. Mas, ao mesmo tempo, ninguém acredita em nada, porque nos dizem que estamos a ser enganados pelo jornalixo da bolha.
A quem é que isso interessa? A quem é que interessa esta desenfreada caça à bolha, feita por gente de dedo em riste, pronta a apontar contra jornalistas, universidades e relatórios? Não é difícil ter a resposta. Interessa aos que não querem ser submetidos ao escrutínio do jornalismo e, por isso, o desclassificam. Interessa aos que querem semear o caos da descrença para oferecer a ordem da obediência e da crença cega. Interessa aos que não gostam dos resultados da ciência e do estudo e querem manter uma ignorância que lhes protege os interesses. Interessa aos que inflamam os ódios alimentados com a desigualdade que lhes serve tão bem e que nunca irão combater. Interessa aos que, no fundo, têm medo.
As experiências individuais são importantes. Mas guiarmo-nos por elas é como andar de olhos colados ao chão e não perceber que, acima da nossa cabeça, existe o céu.
O que é a verdade diante da inteligência artificial?
“O que é a verdade?” (João 18:38)
A pergunta feita por Pôncio Pilatos a Jesus atravessa os séculos. Hoje, ela retorna com força em meio à enxurrada de conteúdos gerados por inteligência artificial. Imagens hiper-realistas, vozes clonadas e deepfakes colocam em xeque aquilo que nossos sentidos sempre tomaram como certo. O que vemos é realmente confiável?
Em maio deste ano, o Google lançou o Veo 3, sistema que gera vídeos tão realistas que se tornam quase indistinguíveis da realidade. Essa tecnologia não somente é um simulacro de imagens e sons, mas redefine o que entendemos como verdade visual. O irreal produz poder de convencimento por seus próprios meios. Seria isso um prelúdio da quebra da confiança nas imagens digitais?
Se antes tínhamos certezas, agora o que vemos e ouvimos pode ser inteiramente fabricado, e mais, com uma aparência quase inquestionável. Não se trata apenas de separar a verdade da mentira, mas também de reconhecer os efeitos de verdade. Nesse contexto, o metaverso, como espaço onde tudo pode ser fabricado, é ao mesmo tempo um risco e um sintoma. Ele não apaga a verdade, mas expõe o seu esvaziamento de sentido. O metaverso revela um mundo em que a verdade se dissolve entre aparências bem-feitas, entre identidades modeladas e experiências hiperestéticas.
Imersos no emaranhado da pós-verdade, em que as emoções e crenças têm mais peso que os fatos objetivos, como analisa o semioticista Eric Landowski, a experiência da verdade mudou de natureza. São metamorfoses: ela é hoje uma experiência sensível, mais do que um dado fixo. Vivemos um tempo em que a verdade “se acredita por contágio”. Assim, desfazer a ideia de verdade pode parecer sedutor, especialmente em tempos em que toda afirmação é instável e toda imagem pode ser forjada. Mas talvez o mais interessante não seja abandonar a ideia de verdade, e sim reconfigurá-la: não como posse, mas como processo; não como certeza, mas como abertura; não como um dado, mas como ato relacional e ético.
A comunicação digital empobrece as relações humanas porque elimina aquilo que há de mais fundamental no encontro com o outro: o toque, o olhar, o silêncio entre as palavras. No lugar disso, temos vozes sem presença e rostos filtrados, em uma espécie de ilusão interativa que simula proximidade, mas reforça o isolamento. Falta à comunicação digital a intensidade que só a presença é capaz de proporcionar. O excesso de barulho impede uma escuta contratual com o outro. Eleva-se o efeito da solidão, numa engrenagem central desse mundo onde o outro só existe enquanto reflexo do meu desejo de ser visto. Todos falam, ninguém escuta; todos se produzem como marca, imersos na lógica da autopromoção e do marketing, falta a presença. A internet não é espaço de vínculo, mas de performance. A tecnologia redefine o que chamamos de humano, e talvez o que estejamos perdendo não seja a comunicação, mas a própria experiência de estar com o outro de verdade.
A inteligência artificial não tem coração. O pensar com o coração avalia e sente espaços antes de operar conceitos. A tonalidade afetiva da confiança no alcance do momento está na emoção, no começo do pensamento. A IA é apática. Ela calcula. Ela não tem acesso a horizontes. Ela processa dados constantes, previsíveis e controláveis ao toque na tela. Será que não estamos querendo fugir de nossas realidades, para adentrarmos a um mundo imaginário?
Agora, como criar uma agenda positiva em relação à verdade? Talvez o desafio esteja menos em resgatar uma ideia fixa de verdade e mais em propor práticas sensíveis que reabilitem a confiança simbólica. Uma agenda positiva exige um novo compromisso com o acontecimento da verdade como encontro. A era da curadoria nos exige saber o que realmente importa. Orquestrar a informação, filtrando ruídos e concentrando nossa atenção no essencial, é um pensamento inaugural para a sobrevivência da confiança na comunicação contemporânea.
A IA não atinge nível profundo e conceitual do saber. Ela não conceitua os resultados que calcula. O cálculo é diferente do pensamento porque não forma conceitos e não avança de uma conclusão para outra. A IA aprende com o passado. O futuro calculado não é verdadeiro no sentido completo da palavra. Ela carece da negatividade da ruptura, que deixa surgir o novo no sentido enfático.
Em meio a esse cenário de crise da verdade, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra A Salvação do Belo, nos alerta para um fenômeno atual: o belo, na contemporaneidade, perdeu sua profundidade e foi reduzido ao que é simplesmente agradável e prático: a curtida, o like. Mas, para Han, o verdadeiro belo é aquilo que provoca, inquieta, que tira da zona de conforto aquilo que toca o cerne da emotividade.
Esse olhar nos convida a valorizar a alteridade, a presença real do outro, que reconhecemos em sua diferença e legitimidade como sujeito no mundo. É na alteridade que talvez resida uma das saídas para reabilitar o credível na era da pós-verdade.
O pensamento humano é mais que cálculo e resolução de problemas, é uma ponte entre a subjetividade e a objetividade, o abstrato e o concreto, a sensibilidade e o raciocínio, o imaginável e o sensível, a dor e a beleza da condição humana. A questão da presença é que o pensamento humano não está apenas no mundo, mas se envolve com ele de forma plena e sensível, enquanto a máquina apenas calcula sobre ele.
Num tempo em que tudo está disponível e alcançável, nenhuma atenção profunda é formada. O foco se dispersa. O olhar para o belo não se detém, ele vagueia como um caçador. Somente as coisas tornam o mundo visível. Elas possuem visibilidade, enquanto o intangível as apaga.
Como sugeria o educador Anísio Teixeira em sua defesa da educação integral, pode-se dizer que a inteligência verdadeira só existe quando pensamento, ação e emoção caminham juntos, algo que uma máquina, por mais sofisticada que seja, não alcança, não vive. Apenas simula. A tecnologia não é indício de progresso moral da humanidade. Ética não é algo que uma máquina pode simular é um compromisso humano, que exige acautelar-se constantemente diante dos desafios e riscos éticos que as novas tecnologias apresentam.
Essa dinâmica do contágio simbólico amplifica a circulação de notícias falsas, dos simulacros políticos, das realidades fabricadas. A confiança está em crise porque os sentidos: visão e audição já não são garantias sólidas de verdade. É urgente reencantar os sentidos para compreender as complexidades da condição humana.
Logo, precisa-se buscar novos critérios para a verdade, que ultrapassem o que é imediatamente percebido. Para além de uma checagem rigorosa, responsabilidade figurativa é essencial para redefinir pactos de confiança. A confiança foi capturada pelos afetos e os sentidos estão em crise. Espaço privilegiado para a dúvida como veridicção.
E, por fim… Diante do desafio contemporâneo imposto pela tecnologia e pela pós-verdade, retoma-se a pergunta de Pilatos: O que é a verdade? É provável que a verdade não seja uma resposta fixa, mas sim um convite a exercitar nossa sensibilidade crítica para navegar entre o real e o irreal.
A pergunta de Pilatos precisa ser atualizada: O que ainda pode fazer sentido como verdade? A resposta, certamente, está em reeducar nossa sensibilidade, reconhecer os limites da percepção, mas também assumir a responsabilidade de reconstruir novos pactos de confiança simbólica. Afinal, a sociedade não se transforma por novas máquinas, mas por novas formas de comportamento.
Mauri Oliveira
Ideias fora do lugar
Em 2024, 2 bilhões de pessoas foram às urnas em mais de 60 países, no maior comparecimento eleitoral da história da democracia representativa. Paradoxalmente, o relatório de 2025 do V-Dem, índice global sobre qualidade democrática, revela que eleições livres retrocederam em 25 países; a liberdade de associação, em 22; e o Estado de Direito, em 18. A recessão democrática, observada desde 2010, se aprofundou: o nível de democracia em 2023 voltou ao patamar de 1985 em todas as regiões do mundo, especialmente na Europa do leste e na Ásia do sul e central. Hoje, cerca de 90 Estados vivem sob regimes autocráticos ou de tendência autocrática, onde estão dois terços da população mundial. Estados amplamente democráticos não passam de 80.
A recessão se agrava com o surgimento de Estados iliberais – democracias sem direitos, nas quais governos são eleitos democraticamente, mas, uma vez no poder, alteram constituições para se perpetuar, restringem direitos, fragilizam a oposição e bloqueiam o pluralismo. Jogando o jogo, subvertem as regras. Tudo “dentro das quatro linhas”. É um f enômeno contemporâneo, de múltiplas trajetórias: Rússia, Turquia, Hungria, Romênia, Venezuela... A lista é longa. É como se a democracia sofresse de uma doença autoimune, até que os cidadãos perdem a capacidade de mudar governos democraticamente.
Segundo Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, Estados iliberais preservam a ideia de liberdade, mas não a colocam no centro da organização estatal. Em seu lugar, adotam uma “abordagem especial e nacional”, com fundamento na homogeneização cultural, na hierarquia tradicional, na polarização política e no nacionalismo identitário. Além disso, agem de modo ambíguo: o legal e o autoritário se confundem; instituições democráticas funcionam, mas capturadas. São os chamados Frankenstates – na expressão da jurista Kim Scheppele, de Princeton –, monstros constitucionais que misturam elementos democráticos com mecanismos autocráticos, priorizando o poder sobre o Direito; são também kaquistocracias, a pior das formas mistas de governo, nas quais os valores democráticos são ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, que servem ao propósito de iludir, de legitimar pelo voto a autocracia.
Estados iliberais não surgem do nada. Estados fracos, com economias voláteis, corrupção, desigualdade, pobreza e violência, são bombas prestes a explodir. Em algum momento, dá-se a ruptura constitucional (foi o que se viu no Leste Europeu, em partes da América Latina, no sudeste da Ásia). Em contextos de crise econômica e descrença na política representativa, líderes populistas prosperam com promessas de segurança, combate à corrupção e redução da pobreza, mesmo que à custa da democracia. Tribunais regionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tentam conter o avanço autocrático, defendendo a independência do Judiciário, o devido processo legal e os direitos das minorias. Mas sua efetividade é limitada, como se viu no caso do Peru sob Fujimori. Em 2019, a Polônia recuou ante a condenação do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa à alteração da composição de sua Corte constitucional – uma exceção. A reação mais eficaz tem vindo dos Judiciários nacionais. Onde o Judiciário resistiu, o autoritarismo foi contido. Na Colômbia, em 2010, a Corte constitucional impediu a reeleição de Álvaro Uribe.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem conduzido a responsabilização pela tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O mesmo não se observa no Congresso, onde tramitam projetos como o da anistia e o de revogação dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A questão de saber se ações antidemocráticas podem ser reprimidas não é nova. Os gregos praticavam o ostracismo contra agitadores da pólis; os alemães, sob a Lei Fundamental de Bonn, a democracia militante. No Brasil, a proteção ao
Estado Democrático ocorre por meio da chamada democracia defensiva – uma forma de legítima defesa institucional, em que cabe ao Judiciário definir, em situações excepcionais, os limites da repressão a tais ações. Isso se torna mais difícil quando o Executivo e o Legislativo se omitem ou são capturados por forças autoritárias. O Judiciário, então, se vê isolado na defesa da democracia.
A democracia é complexa. Requer instituições, procedimentos, representação, eleições periódicas, legalidade e participação. Em tempos de recessão democrática, exige ainda mais: formação dos cidadãos, participação política informada, maiores investimentos em educação de qualidade para todos, acesso à informação, transparência dos governantes e prestação de contas. A democracia, assim como o Estado de Direito, não pode ser um tema distante da população; a desinformação e a descrença alimentam os Estados iliberais. Nossas democracias podem decepcionar, mas não traem. Há sempre a possibilidade de substituir governos. Já os Estados iliberais eliminam essa possibilidade.
A recessão se agrava com o surgimento de Estados iliberais – democracias sem direitos, nas quais governos são eleitos democraticamente, mas, uma vez no poder, alteram constituições para se perpetuar, restringem direitos, fragilizam a oposição e bloqueiam o pluralismo. Jogando o jogo, subvertem as regras. Tudo “dentro das quatro linhas”. É um f enômeno contemporâneo, de múltiplas trajetórias: Rússia, Turquia, Hungria, Romênia, Venezuela... A lista é longa. É como se a democracia sofresse de uma doença autoimune, até que os cidadãos perdem a capacidade de mudar governos democraticamente.
Segundo Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, Estados iliberais preservam a ideia de liberdade, mas não a colocam no centro da organização estatal. Em seu lugar, adotam uma “abordagem especial e nacional”, com fundamento na homogeneização cultural, na hierarquia tradicional, na polarização política e no nacionalismo identitário. Além disso, agem de modo ambíguo: o legal e o autoritário se confundem; instituições democráticas funcionam, mas capturadas. São os chamados Frankenstates – na expressão da jurista Kim Scheppele, de Princeton –, monstros constitucionais que misturam elementos democráticos com mecanismos autocráticos, priorizando o poder sobre o Direito; são também kaquistocracias, a pior das formas mistas de governo, nas quais os valores democráticos são ideias fora do lugar, como diria Roberto Schwarz, que servem ao propósito de iludir, de legitimar pelo voto a autocracia.
Estados iliberais não surgem do nada. Estados fracos, com economias voláteis, corrupção, desigualdade, pobreza e violência, são bombas prestes a explodir. Em algum momento, dá-se a ruptura constitucional (foi o que se viu no Leste Europeu, em partes da América Latina, no sudeste da Ásia). Em contextos de crise econômica e descrença na política representativa, líderes populistas prosperam com promessas de segurança, combate à corrupção e redução da pobreza, mesmo que à custa da democracia. Tribunais regionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, tentam conter o avanço autocrático, defendendo a independência do Judiciário, o devido processo legal e os direitos das minorias. Mas sua efetividade é limitada, como se viu no caso do Peru sob Fujimori. Em 2019, a Polônia recuou ante a condenação do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa à alteração da composição de sua Corte constitucional – uma exceção. A reação mais eficaz tem vindo dos Judiciários nacionais. Onde o Judiciário resistiu, o autoritarismo foi contido. Na Colômbia, em 2010, a Corte constitucional impediu a reeleição de Álvaro Uribe.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem conduzido a responsabilização pela tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. O mesmo não se observa no Congresso, onde tramitam projetos como o da anistia e o de revogação dos crimes contra o Estado Democrático de Direito.
A questão de saber se ações antidemocráticas podem ser reprimidas não é nova. Os gregos praticavam o ostracismo contra agitadores da pólis; os alemães, sob a Lei Fundamental de Bonn, a democracia militante. No Brasil, a proteção ao
Estado Democrático ocorre por meio da chamada democracia defensiva – uma forma de legítima defesa institucional, em que cabe ao Judiciário definir, em situações excepcionais, os limites da repressão a tais ações. Isso se torna mais difícil quando o Executivo e o Legislativo se omitem ou são capturados por forças autoritárias. O Judiciário, então, se vê isolado na defesa da democracia.
A democracia é complexa. Requer instituições, procedimentos, representação, eleições periódicas, legalidade e participação. Em tempos de recessão democrática, exige ainda mais: formação dos cidadãos, participação política informada, maiores investimentos em educação de qualidade para todos, acesso à informação, transparência dos governantes e prestação de contas. A democracia, assim como o Estado de Direito, não pode ser um tema distante da população; a desinformação e a descrença alimentam os Estados iliberais. Nossas democracias podem decepcionar, mas não traem. Há sempre a possibilidade de substituir governos. Já os Estados iliberais eliminam essa possibilidade.
Ibero-América enfrenta o desafio de uma transição verde justa
A caminhada rumo à sustentabilidade não tem um caminho único nem linear. Há múltiplos caminhos que devem ser seguidos de forma coordenada: da transformação financeira à construção de amplos pactos sociais , incluindo a pedra angular fundamental e frequentemente subestimada da educação. Compreender essa diversidade de abordagens não apenas amplia nossa compreensão de questões urgentes como a crise climática, mas também nos permite elaborar respostas mais justas e duradouras.
Um dos pilares centrais dessa transição é, sem dúvida, o financiamento . A Ibero-América, e a América Latina em particular, emerge como uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas, apesar de historicamente ter contribuído menos para o aquecimento global. Esse paradoxo é fundamental para a compreensão do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, reconhecido na Declaração do Rio de 1992 e reforçado pelo Acordo de Paris , que ressalta o dever do Norte Global de subsidiar os esforços de mitigação e adaptação do Sul Global.
Mas a discussão sobre financiamento não pode ser dissociada da realidade produtiva da região. A América Latina detém 60% das reservas mundiais de lítio e cerca de 40% das reservas de cobre, recursos estratégicos para a transição energética. Ao mesmo tempo, permanece fortemente dependente de atividades como mineração, agricultura intensiva e produção de petróleo — setores que geram renda, mas também têm impactos ambientais significativos.
Portanto, considerar o financiamento para a transição ecológica requer uma abordagem sistêmica. Não se trata apenas de canalizar recursos, mas também de redesenhar o modelo de integração global da região, permitindo que ela passe de uma economia extrativa para uma economia regenerativa baseada na sustentabilidade.
Nesse mesmo sentido, é essencial construir pactos sociais amplos. A transição verde justa não será alcançada sem diálogo e consenso envolvendo governos, empresas e sociedade civil. Na América Latina, onde as desigualdades estruturais limitam profundamente as oportunidades, tais acordos devem ser democráticos e participativos.
Promover esses pactos sociais pode colocar os governos em uma posição difícil perante as elites econômicas. Por um lado, elas precisam de seus investimentos para acelerar a transição energética; por outro, precisam regular ou mesmo limitar certas atividades econômicas insustentáveis. Tudo isso mantendo o difícil equilíbrio entre sustentabilidade, redução da pobreza e crescimento econômico.
Nesse contexto, a aliança entre a América Latina e a União Europeia apresenta uma oportunidade estratégica. Iniciativas como o Pacto Verde traçam um roteiro ambicioso rumo à neutralidade climática até 2050, mas precisam ser adaptadas às realidades dos países em desenvolvimento.
A região apresentou progressos notáveis tanto em termos de energias renováveis quanto de estruturas de proteção legal. Além disso, há um claro apoio da população à cooperação birregional que promova um novo modelo de desenvolvimento, como demonstrado pelo projeto Energytran, promovido pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), que busca contribuir para uma transição justa e equitativa em ambas as regiões.
E é aqui que a educação surge como condição fundamental para dar sentido a tudo isso. Um futuro sustentável não será possível sem uma educação transformadora. A sustentabilidade deve ser construída a partir da sala de aula, nos processos educacionais e na forma como ensinamos a habitar o planeta de forma responsável.
Os sistemas educacionais devem oferecer ferramentas para construir uma sociedade mais justa e equitativa: habilidades verdes, conexão com a terra, metodologias ativas e professores capacitados para promover mudanças. As escolas devem ser espaços para a construção de uma visão compartilhada de futuro, que promova a vida, a convivência e a sustentabilidade.
Essa transformação educacional requer apoio político e um lugar prioritário na agenda internacional. Nesse contexto, espaços de governança global como a COP30 — a próxima conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, a ser realizada em 2025 no Brasil — são essenciais. Não apenas porque permitem o cumprimento de compromissos internacionais ou a visibilidade da urgência de ações, mas também porque são uma plataforma para colocar a educação no centro do debate.
Este evento de renome internacional, que este ano conta com o apoio organizacional da OEI, deve, além de abordar questões-chave como ação climática e financiamento, reconhecer a educação para o desenvolvimento sustentável como um pilar estratégico. Mais do que um gesto simbólico, é um compromisso com o longo prazo e com a construção de uma cidadania capaz de apoiar e sustentar acordos globais.
Para tanto, é necessário fortalecer o sistema multilateral por meio de uma coordenação eficaz entre os níveis multilateral, regional e nacional, alinhando os planos nacionais de desenvolvimento com os objetivos internacionais. Somente assim será possível mobilizar financiamento, promover soluções duradouras e posicionar a educação como motor de uma transição justa.
A América Latina desempenha um papel crucial no futuro do planeta. Abriga metade da biodiversidade mundial e quase 60% de suas florestas tropicais. Seu caminho rumo à sustentabilidade definirá não apenas seu destino, mas o de toda a humanidade. Avançar nessa direção exige compromisso político, consenso social e uma educação capaz de formar cidadãos comprometidos e solidários.
Um dos pilares centrais dessa transição é, sem dúvida, o financiamento . A Ibero-América, e a América Latina em particular, emerge como uma das regiões mais afetadas pelas mudanças climáticas, apesar de historicamente ter contribuído menos para o aquecimento global. Esse paradoxo é fundamental para a compreensão do princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas, reconhecido na Declaração do Rio de 1992 e reforçado pelo Acordo de Paris , que ressalta o dever do Norte Global de subsidiar os esforços de mitigação e adaptação do Sul Global.
Mas a discussão sobre financiamento não pode ser dissociada da realidade produtiva da região. A América Latina detém 60% das reservas mundiais de lítio e cerca de 40% das reservas de cobre, recursos estratégicos para a transição energética. Ao mesmo tempo, permanece fortemente dependente de atividades como mineração, agricultura intensiva e produção de petróleo — setores que geram renda, mas também têm impactos ambientais significativos.
Portanto, considerar o financiamento para a transição ecológica requer uma abordagem sistêmica. Não se trata apenas de canalizar recursos, mas também de redesenhar o modelo de integração global da região, permitindo que ela passe de uma economia extrativa para uma economia regenerativa baseada na sustentabilidade.
Nesse mesmo sentido, é essencial construir pactos sociais amplos. A transição verde justa não será alcançada sem diálogo e consenso envolvendo governos, empresas e sociedade civil. Na América Latina, onde as desigualdades estruturais limitam profundamente as oportunidades, tais acordos devem ser democráticos e participativos.
Promover esses pactos sociais pode colocar os governos em uma posição difícil perante as elites econômicas. Por um lado, elas precisam de seus investimentos para acelerar a transição energética; por outro, precisam regular ou mesmo limitar certas atividades econômicas insustentáveis. Tudo isso mantendo o difícil equilíbrio entre sustentabilidade, redução da pobreza e crescimento econômico.
Nesse contexto, a aliança entre a América Latina e a União Europeia apresenta uma oportunidade estratégica. Iniciativas como o Pacto Verde traçam um roteiro ambicioso rumo à neutralidade climática até 2050, mas precisam ser adaptadas às realidades dos países em desenvolvimento.
A região apresentou progressos notáveis tanto em termos de energias renováveis quanto de estruturas de proteção legal. Além disso, há um claro apoio da população à cooperação birregional que promova um novo modelo de desenvolvimento, como demonstrado pelo projeto Energytran, promovido pela Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), que busca contribuir para uma transição justa e equitativa em ambas as regiões.
E é aqui que a educação surge como condição fundamental para dar sentido a tudo isso. Um futuro sustentável não será possível sem uma educação transformadora. A sustentabilidade deve ser construída a partir da sala de aula, nos processos educacionais e na forma como ensinamos a habitar o planeta de forma responsável.
Os sistemas educacionais devem oferecer ferramentas para construir uma sociedade mais justa e equitativa: habilidades verdes, conexão com a terra, metodologias ativas e professores capacitados para promover mudanças. As escolas devem ser espaços para a construção de uma visão compartilhada de futuro, que promova a vida, a convivência e a sustentabilidade.
Essa transformação educacional requer apoio político e um lugar prioritário na agenda internacional. Nesse contexto, espaços de governança global como a COP30 — a próxima conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, a ser realizada em 2025 no Brasil — são essenciais. Não apenas porque permitem o cumprimento de compromissos internacionais ou a visibilidade da urgência de ações, mas também porque são uma plataforma para colocar a educação no centro do debate.
Este evento de renome internacional, que este ano conta com o apoio organizacional da OEI, deve, além de abordar questões-chave como ação climática e financiamento, reconhecer a educação para o desenvolvimento sustentável como um pilar estratégico. Mais do que um gesto simbólico, é um compromisso com o longo prazo e com a construção de uma cidadania capaz de apoiar e sustentar acordos globais.
Para tanto, é necessário fortalecer o sistema multilateral por meio de uma coordenação eficaz entre os níveis multilateral, regional e nacional, alinhando os planos nacionais de desenvolvimento com os objetivos internacionais. Somente assim será possível mobilizar financiamento, promover soluções duradouras e posicionar a educação como motor de uma transição justa.
A América Latina desempenha um papel crucial no futuro do planeta. Abriga metade da biodiversidade mundial e quase 60% de suas florestas tropicais. Seu caminho rumo à sustentabilidade definirá não apenas seu destino, mas o de toda a humanidade. Avançar nessa direção exige compromisso político, consenso social e uma educação capaz de formar cidadãos comprometidos e solidários.
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