quinta-feira, 7 de abril de 2022

Imagem da infâmia

 

Vlad Tanyuk, de 6 anos, junto à sepultura
 improvisada da mãe, morta pela fome, em Kiev

Bem-vindos à Estação Utopia

Lembro-me muito bem da tarde em que conheci Ruy Duarte de Carvalho. Tinha 28 anos e acabara de publicar o meu primeiro romance. Ruy Duarte era para mim uma espécie de profeta. A poesia dele, que descobri ainda adolescente, nos meses de fúria e fervor revolucionário que antecederam a independência, arrastou-me não apenas para a literatura, mas, mais do que isso, ajudou-me a descobrir e a sedimentar a minha própria identidade angolana.

Em 1998, Ruy Duarte habitava o último andar de um edifício muito degradado, na Maianga, em Luanda. Havia um salão, com estantes dobradas ao peso dos livros, que se abria sobre uma larga varanda debruçada sobre o metódico caos da capital. Quando cheguei, a varanda já estava cheia de jovens, uns sentados no chão, outros em cadeiras trôpegas, fumando, bebendo e conversando. Lembro-me do ar que se colava à pele, denso e quente, e da voz grave de Ruy Duarte, expondo as suas teses sobre a vida. Defendia essas teses recorrendo à mais pura intuição poética. Uma dessas teses me parece agora muito mais atual do que naquela época — e também muito mais assustadora.


Dizia Ruy Duarte que na chamada estação das chuvas, quando ao calor crescente se soma a umidade atmosférica, o ambiente se enche de um excesso de energia, que contamina tudo e transtorna os espíritos. A estação das chuvas desencadearia todo o tipo de grandes gestos e grandes dramas. Seria a época das mais intensas histórias de amor, das revoluções e decisões radicais, mas também das rupturas trágicas, das guerras e dos motins. A própria natureza parece, por vezes, enlouquecer, voltando-se contra a Humanidade e a vida.

Dados recentes confirmam que em períodos de temperaturas elevadas os crimes violentos tendem a aumentar. Fico pensando no aquecimento global, no derretimento de geleiras e calotas polares, e no consequente aumento exponencial de água em circulação; enfim, na brutal quantidade de energia que estamos acumulando ao nosso redor. É como se a estação das chuvas estivesse alastrando por todas as geografias e por todos os meses do ano. A estação das chuvas é agora, cada vez mais, a estação total.

Levando a sério a hipótese de Ruy Duarte de Carvalho, podemos esperar que os próximos anos sejam, para o pior e para o melhor, particularmente intensos. O pior já sabemos o que é: a multiplicação de desastres naturais, pandemias, surtos de ódio coletivo, de barbárie e de primitivismo, que podem manifestar-se de formas diversas, em alguns casos, como no Brasil ou nos EUA, ameaçando as instituições democráticas e a civilização.

O melhor talvez seja a oportunidade de recomeço que todas as grandes rupturas trazem. Sabemos onde falhamos e por que falhamos. Precisamos reunir toda essa energia bruta e caótica, toda essa inquietação primordial, e transformá-la em ideias, em ideais, em alternativas práticas aos atuais modelos de exploração de recursos.

Viveremos dias intensos. Viveremos milagres e prodígios que os nossos avós não foram capazes de prever.

Bem-vindos à Estação Utopia.

Pais de mentirinha

O Brasil vive a naturalização da mentira. Há uma nova atividade no país: a de traficante de notícias falsas. Vivemos uma decadência ética profunda
Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal

Os homens que se transformavam em barbantes

Havia uma cidade, grande, desenvolvida. As pessoas que moravam lá eram saudáveis, simpáticas e alegres. Não me lembro o nome da cidade, eu tinha quinze anos quando passei por ela, levado por meu pai. Nessa época, não me preocupava com o nome, e sim com os lugares propriamente.

Acontece que, certo dia, um habitante desta cidade saiu de casa, pela manhã, dirigindo-se ao emprego. Fez todas as coisas de praxe. Cumprimentou os vizinhos, o barbeiro da esquina, o vendeiro, os colegas no ponto do ônibus, agradeceu ao motorista, ao ascensorista, sentou-se em sua mesa.

Nesse dia, no fim do expediente, o homem notou que seu pulso esquerdo parecia mais fino. “Bobagem. Impressão. Acho que estou cansado demais.” Foi para casa, jantou, viu telenovela, dormiu. Na manhã seguinte, o pulso tinha se afinado mais. E suas canelas pareciam de criança. Chamou a mulher. Ela ficou tão impressionada, que o homem se arrependeu de ter mostrado. Não havia dor, apenas fraqueza.

Partiu para o emprego. Contente, cumprimentando as pessoas e agradecendo ao motorista e ao ascensorista. No meio da tarde, porém, não conseguiu trabalhar. O pulso estava fino e dobrava-se. Maleável, sem consistência. O homem, envergonhado, puxou a manga da camisa. O mais que pôde, para que os colegas não vissem.


Mas viram. O homem tinha o corpo transformado. A cabeça, única coisa normal, caiu sobre a mesa. O torso não era mais grosso que um lápis, suas pernas e braços, finos como cordéis. Mas ele estava lúcido, coerente, o cérebro não tinha sido perturbado. Além do impacto, e da surpresa ante o estranho, o homem continuava o mesmo. Levado para casa, chamaram o médico. E o médico chamou outro médico. Porque:

– Não é o primeiro. É o terceiro, nesta semana.

Os jornais noticiaram, as notícias trouxeram à luz novos casos. Pela cidade inteira acontecia aquilo: as pessoas se adelgaçavam, tornavam-se frágeis. Em pouco tempo, outro fato surgiu, ao lado dos homens que se transformavam em barbantes. Eram os que se transformavam em vidro. Tinham que ter muito cuidado, ao andar pela rua, ao trabalhar, porque podiam se quebrar com qualquer batida. Vez ou outra, os homens de vidro se desfaziam. Em plena rua, à vista de todos. Como o vidro blindex que se estilhaça por inteiro.

Aquela população alegre, saudável, descontraída, começou a viver apavorada. Sem saber se, a qualquer momento, o vírus (seria vírus?) podia atacar. Mudando a pessoa em vidro ou barbante. Muitos começaram a se mudar, indo para cidades distantes. A Secretaria de Saúde analisou o ar, a água, tudo, em busca das causas. O ar era bom, não poluído. E as águas vinham de nascentes puras ou de poços artesianos límpidos. Pensou-se que algumas pessoas podiam estar colocando elementos venenosos na comida ou em caixas-d’água. Investigações nada concluíram.

Até hoje, nada se sabe. A cidade parece estar se habituando com a possibilidade de eventualmente alguém se transmutar. Não causa mais surpresa quando um barbante é levado pelo vento ou, em dias de chuva, é tragado pela enxurrada. Ou quando os vidros se liquefazem, no momento em que uma pessoa vira a esquina e dá um esbarrão noutra. A população se acostumou. O homem se adapta às piores condições, conformando-se com os acontecimentos. Naquela cidade, tudo é frágil, a vida humana tem a espessura de um fio. Ou é delgada como um vidro. Mas isto vai se constituindo na normalidade.
Ignácio de Loyola Brandão, "Cadeiras proibidas"

Por que nada muda na política brasileira

Algo que sempre me espantou na política brasileira é a quantidade de partidos. Atualmente, 32 legendas estão representadas no Congresso, uma pura sopa de letrinhas. Para um recém-chegado ao Brasil, é natural se perguntar qual é a diferença entre Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e Partido Social Democrático (PSD). Hoje, é claro que sei qual é – o que, por sua vez, gera a pergunta: qual das duas siglas realmente representa a social-democracia, que não é apenas um nome, mas um movimento com mais de 160 anos de história? O fato de duas legendas bem diferentes reivindicarem para si essa história mostra toda a arbitrariedade do cenário partidário brasileiro.

Definitivamente não é possível haver um número tão grande de ideias diferentes sobre a direção e o futuro do Brasil quanto o de partidos no país.

Por que, então, há 32 partidos no Congresso? E por que surgem sempre legendas novas? Por que no Brasil é impossível criar um sistema partidário compreensível e evitar a superlotação do Legislativo com uma cláusula de barreira?

O que está claro é que muitos partidos no Brasil não representam ideologia alguma. Eles não têm programas nos quais apresentam propostas concretas para o combate à pobreza, desigualdade social, desemprego e criminalidade e sobre como pretendem aumentar o acesso à educação e a qualidade de vida. Na melhor das hipóteses, encontram-se promessas e anúncios vagos nas suas declarações.

Muitos partidos, portanto, não estão muito preocupados com a prosperidade do Brasil. Com frequência, trata-se apenas de ocupar assentos no Legislativo, receber salários altos e aproveitar os mais diversos privilégios, que no Brasil são um tanto antiquados. Os parlamentares brasileiros trabalham menos, mas proporcionalmente ganham muito mais do que os alemães (em relação à renda média do seu país). E ainda podem acomodar e garantir o sustento de amigos e parentes em seus gabinetes.

Dessa maneira, muitos partidos brasileiros são meros veículos para assegurar uma vida relativamente confortável e privilegiada a determinados indivíduos. São sempre as mesmas famílias, clãs, predominantemente homens e brancos, que se beneficiam desse modelo. Por isso, nada de fundamental muda na política brasileira e novas ideias não são colocadas em pauta.


Entre os rituais desse sistema político disfuncional está a janela partidária. Para mim, nada expressa melhor o vazio programático e o oportunismo. Nas últimas duas décadas, a Câmara dos Deputados teve, em média, uma troca partidária a cada sete dias. Um dos que mais trocou de camisa partidária é justamente o presidente Jair Bolsonaro – foram ao todo nove vezes.

Essas mudanças ocorrem raramente por convicções políticas, mas muito mais pela busca de posições mais promissoras de modo a ampliar a participação no poder e o acesso a verbas. Neste ano, o período para troca de legenda chegou a ser prorrogado devido a interesses locais de parlamentares. E veja só, o inevitável Centrão, esse boa vida da política brasileira, ampliou suas bancadas e saiu fortalecido para as eleições deste ano. Ao todo, 132 parlamentares trocaram de partido. Assim, o sistema que deveria servir a todos os brasileiros se curvou mais uma vez aos interesses pessoais dos privilegiados. Não há melhor maneira de resumir a ordem social, quase feudal, do Brasil, que encontra sua continuidade na política.

Uma figura me chamou especialmente a atenção: Eduardo Cunha. Ele se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – mais uma legenda com nome enganoso, que tem apoiado, sem exceção, todos os presidentes desde Fernando Collor, passado por Lula e Bolsonaro – para se candidatar a deputado federal. Para mim, não está claro como isso será possível, pois ele continua inelegível por conta da Lei da Ficha Limpa, desde que teve o mandato de deputado cassado, em 2016. Mas ele deverá encontrar alguma maneira de entrar no Congresso com o bilhete do bolsonarismo (alguém ainda se lembra de que Bolsonaro foi eleito para combater a corrupção?) e, assim, desfrutar novamente das vantagens do foro privilegiado.

A filha de Cunha também é pré-candidata a deputada federal por algum desses partidos comutáveis. Assim como vários filhos, filhas, netos, sobrinhos e sobrinhas de políticos. Não por ideais, mas para entrar na lucrativa política. E ainda há aqueles que se perguntam por que nada muda.
Philipp Lichterbeck

A nova ordem

Ainda não sabe como e quando terminará a guerra de Vladimir Putin na Ucrânia, mas já há uma certeza: o conflito representa o fim de uma era e o marco de uma nova ordem mundial. A queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética geraram um mundo unipolar com forte hegemonia dos Estados Unidos. Foram tempos de intensa globalização da economia, com o advento das grandes cadeias produtivas globais e o fortalecimento dos valores liberais.

A guerra da Ucrânia reduziu a pó a premonição do cientista político Francis Fukuyama do fim da história e de uma ordem que seria eterna. O conflito instalou um momento disruptivo, com o restabelecimento da bipolaridade e sua consequente divisão do mundo em dois blocos geopolíticos. De um lado, a aliança norte-atlântica constituída pelos EUA e a Europa Ocidental e, de outro, o bloco eurasiano, a partir do eixo Pequim-Moscou, com tendências de se expandir para a Índia, Turquia e Irã.

O conflito bélico na Ucrânia, o primeiro envolvendo dois países europeus pós segunda guerra mundial, é a parte quente de uma nova guerra-fria. Mas há aqui uma diferença fundamental em relação à bipolaridade do século passado.

Esta se dava entre dois sistemas antagônicos – capitalismo versus comunismo – e o alinhamento geopolítico se dava por princípios comuns e afinidades ideológicas. A guerra-fria contemporânea se apoia fundamentalmente no terreno econômico. A corrida principal não é nuclear ou bélica, é econômica e tecnológica. Pode até haver valores em jogo, uma vez que a maioria dos países da aliança atlântica tem regimes liberais, enquanto os da eurásia são iliberais, quando não ditatoriais.

Mas a China não tem a pretensão de exportar seu modelo totalitário para outros países, ao contrário dos tempos da antiga União Soviética, e sua economia é tão capitalista quanto a dos Estados Unidos, ainda que sob a forma de capitalismo de Estado.


O fato da principal batalha ser em torno da hegemonia econômica e tecnológica traz dúvidas sobre a natureza da aliança entre a Rússia e a China, reafirmada nos jogos olímpicos de inverno de Pequim. Ainda não está claro se ela é estratégica e inabalável, como a definiu Xi Jinping ou uma aliança tática, conforme considera Ronaldo Carmona, do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Isso explica nuances entre os dois países mesmo em relação à guerra na Ucrânia.

A China não condenou a invasão russa, mas defende a solução pacífica para o conflito. O pano de fundo é que a China é inteiramente integrada à economia mundial, responsável por um quinto do PIB do mundo, e beneficiou-se do processo de globalização.

O segundo grande fenômeno da nova ordem econômica mundial é a desglobalização, que antecede a guerra. Vide o Brexit e a eleição de Donald Trump. A pandemia evidenciou que a dependência das cadeias produtivas globais de insumos médicos se torna crítica em momentos de grave crise sanitária, afetando a soberania dos países.

A guerra da Ucrânia expôs a olhos nus a dramaticidade da ultra dependência dessas cadeias globais. A alta do preço do petróleo e a dependência da Rússia colocou na pauta a necessidade dos países da Europa Ocidental encontrar e investir em fontes energéticas alternativas. Mesmo no terreno militar, o conflito está levando a uma redefinição da “divisão de trabalho” vigente desde a guerra-fria passada.

Os países dessa parte do continente pouco investiam em termos bélico-militar porque o poderio dos Estados Unidos servia de “elemento de contenção”, conceito formulado em 1947 pelo diplomata americano George Kennan. Donald Trump, como presidente, reclamava do fato de seu país arcar com os custos da OTAN, exigindo que os países europeus investissem na área militar. Com a guerra da Ucrânia, a Alemanha, a França e outros países pretendem aumentar seu orçamento militar, por uma questão de segurança nacional.

Como observou Larry Fink, CEO da BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, “as punições econômicas à Rússia levarão ao desmoronamento da globalização” e vão acelerar o processo de desmontagem das cadeias produtivas globais. A China, por exemplo, já está investindo pesado para desenvolver seus próprios chips para não depender de outros países.

A desglobalização consiste exatamente em os países diminuírem a interdependência e terem mais autonomia em áreas estratégicas ou que são vulneráveis. No caso brasileiro, essa demanda ficou evidenciada em relação aos fertilizantes, face nossa dependência da Rússia. O fator custo de produção foi determinante para a formação das cadeias globais. Agora, ele não será o único. Países tendem a aceitar custos de produção maior, desde que os assegurem por meio da produção interna.

Na Nova Ordem Mundial em gestação faz todo sentido a afirmação do diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricúpero: “Pode-se chegar a um mundo em que haja dois sistemas de pagamento, dois sistemas bancários e mesmo dois sistemas de internet separados, o que atingiria a globalização no seu âmago”.

Com a economia se transformando em arma geopolítica não estamos muito distantes do quadro descortinado por Ricúpero. O Irã já criou seu sistema de Internet. Mesmo o dólar como moeda única do sistema econômico mundial pode perder esse status. Países como a China, a Rússia, a Índia e até mesmo a Arábia Saudita – aliada histórica dos Estados Unidos – já utilizam outra moeda que não a americana nas relações comerciais interpaíses da eurásia.

A bipolaridade e a desglobalização trazem novos desafios para o Brasil. Se de um lado nos identificamos com os valores do mundo ocidental, a China é o nosso principal parceiro comercial. O pragmatismo responsável – pilar fundamental da nossa cultura diplomática – aconselha a não se alinhar com nenhum dos dois blocos e a entender que é de nosso interesse um mundo multipolar em um ambiente de paz.